Numa noite de meados de junho de 1816, o poeta Lord Byron e os seus convidados discutiam filosofia e literatura à volta da lareira de uma bela mansão na margem do Lago Genebra quando o anfitrião propôs que fizessem um jogo.
«Cada um de nós vai escrever uma história de terror», sugeriu. Para um pequeno grupo de pessoas cultas e ligadas às letras, era impossível não estabelecer um paralelo com o Decameron, de Giovanni Boccaccio (1313-1375), que começa com dez jovens a procurarem refúgio da peste numa casa de campo. Para passar o tempo, entretêm-se a contar histórias entre si.
Em 1816, o verão estava invulgarmente frio e não convidava a passeios pelas montanhas vizinhas ou a atividades ao ar livre – mesmo durante o dia. A erupção do Tambora (nas Índias Orientais Holandesas, atual Indonésia), em abril do ano anterior, cobrira o céu de poeira e cinzas, tapando o sol com um «nevoeiro seco» e provocando nos meses seguintes uma redução significativa da temperatura do outro lado do mundo: em maio de 1816, Nova Iorque registava temperaturas abaixo de zero; em junho nevou em vários pontos da América do Norte; na Europa, multiplicavam-se as tempestades. Vivia-se aquele que ficaria conhecido para a História como o ‘Ano sem Verão’.
Uma das hóspedes de Byron em Genebra, Mary Shelley, descreveu assim as paisagens por onde passou durante a viagem para a Suíça no mês de maio de 1816: «Nunca se viu um cenário mais desolador. As árvores nestas regiões são incrivelmente grandes e erguem-se em aglomerados dispersos sobre o território selvagem coberto de branco; a vasta extensão de neve era salpicada só por estes pinheiros gigantescos e pelas estacas que delimitavam a estrada».
Jovem promissora
Filha de dois escritores célebres, apesar de ter apenas 18 anos Shelley era já uma jovem promissora e mãe de um bebé do famoso poeta inglês Percy Bysshe Shelley, com quem casaria no final desse ano. Além deste e do filho, acompanhava-a nesta viagem a meia-irmã, Claire Clairmont, que por sua vez se envolvera sentimentalmente com Byron. O petit comité retido na mansão à beira do lago era completado por John William Polidori, médico pessoal de Byron, que trazia os seus conhecimentos científicos para as sessões de leitura e discussões à volta da lareira que seguiam pela noite adentro, enquanto lá fora a chuva e a trovoada não davam tréguas.
‘Vi o hediondo fantasma’
Foi depois de um desses serões que Mary Shelley teve um pesadelo de contornos incrivelmente realistas: «A noite avançava enquanto conversávamos, e mesmo a hora das bruxas já tinha passado quando nos retirámos para descansar. Quando pus a cabeça na almofada não adormeci, mas também não se pode dizer que estivesse a pensar.
A minha imaginação, de forma espontânea, possuiu-me e guiou-me, dotando as sucessivas imagens que surgiram na minha mente de uma vivacidade muito para lá dos limites habituais de um sonho. Eu vi – com os olhos fechados, mas com uma visão mental nítida –, vi o pálido estudante das artes sacrílegas ajoelhado ao lado da coisa que tinha composto. Vi o hediondo fantasma de um homem estendido, e então, graças a um qualquer poderoso motor, a dar sinais de vida e a agitar-se com um movimento tosco e semi-vital». O episódio, relatado no prefácio à edição de Frankenstein de 1831, resume o nascimento de uma obra-prima da literatura fantástica e de um dos monstros mais célebres da cultura popular.
Em agosto, Mary Shelley comprou em Genebra um caderno de notas, hoje conservado na Biblioteca Boldleiana de Oxford, e começou a escrever o primeiro esboço de Frankenstein. A história pode resumir-se nalgumas linhas: numa expedição ao Pólo Norte, a tripulação do navio do capitão Walton avista e recolhe o moribundo Dr. Victor Frankenstein. A bordo, este recorda a história da sua vida, que o capitão por sua vez transmite à irmã, através de sucessivas cartas. Nelas, Walton conta como o jovem Frankenstein cresceu em Genebra, tendo depois ido para a Alemanha estudar ciências naturais e alquimia. Obcecado pelos estudos, acaba por conseguir compor, a partir de cadáveres, um homúnculo. Descobrindo um terrível segredo há muito perseguido, consegue em seguida dotá-lo de vida. É provável que tenham sido as trovoadas que presenciou em Genebra a inspirar a Shelley a forma como o cientista da história ‘ressuscita’ a sua criatura – com uma centelha de eletricidade.
Dois clássicos do terror
Publicado anonimamente – porventura para contornar o preconceito contra as mulheres escritoras – a 1 de janeiro de 1818, Frankenstein tornou-se um êxito imediato, ainda que polémico. Mas não foi o único clássico de terror a sair da casa alugada por Byron naquele frio verão de 1816. O anfitrião começou também uma história inspirada em lendas eslavas que o seu amigo e médico pessoal Polidori desenvolveria nos anos seguintes. Vampyre – A Tale, de 1819, é considerado hoje um precursor de Drácula, de Bram Stoker (1897), e o pai de uma extensa prole mais ou menos legítima de livros de vampiros.
Terá sido a erupção do Tambora – e a posterior ausência de verão nesse ano de 1816 – a responsável por termos hoje estas pérolas da literatura? Mary Shelley deixou uma pista no prefácio de 1831: «A estação estava fria e chuvosa e aos serões acotovelávamo-nos à volta dos toros incandescentes da lareira, e ocasionalmente divertíamo-nos com histórias alemãs de fantasmas que calhava caírem-nos nas mãos. Estes contos estimulavam em nós um desejo de imitação».
Não será por isso abusivo supor que um clima mais aprazível teria levado o pequeno grupo de amigos a ocupar o seu tempo de outra forma, com caminhadas nas montanhas vizinhas e atividades ao ar livre. Parece certo, também, que o clima desolador daquele verão se insinuou nos estados de espírito, inspirando textos de tonalidades sombrias. Como o poema Darkness (Escuridão), de Lord Byron:
«Tive um sonho, que não foi um sonho.
O sol brilhante foi extinto, e as estrelas
Vagueavam na escuridão do espaço eterno,
Sem raios, nem caminhos, e aterra gelada
Balançava cega e escura no céu sem luar».
Alguém diria que estas linhas pessimistas foram escritas em pleno verão?