Desde os atentados de 11 de Setembro de 2001 que o tema do terrorismo global foi rei e senhor nos assuntos do Direito Internacional. Contudo, a mudança de paradigma no terrorismo internacional da galáxia Al Qaeda para o Estado Islâmico veio alterar significativamente este enquadramento. Por um lado, implicou – e continua ainda a implicar – uma revisão profunda do que a primeira década do século XXI nos ensinou sobre o terrorismo internacional. Por outro lado, provocou um movimento populacional nas fronteiras da Europa e, até, para dentro delas, dando lugar a uma crise de refugiados sem precedente recente neste espaço geográfico. E como se uma crise de refugiados não fosse por si só suficiente, esta, aparentemente, traz outra crise associada, que é a crise do conceito de refugiado, motivada pela profunda desconfiança no outro, em parte alimentada pelos meios de comunicação e pela cegueira reactiva das redes sociais, provando que se Deus, pelo que se conta, conseguiu por um homem a separar as águas, infelizmente parece incapaz de por a maioria de nós a separar os assuntos. Com tudo isto, como não saudar esta publicação que nos dá a conhecer uma série de contos sobre refugiados escritos por autores portugueses e que pretende mostrar, que mais não seja, que muitas condições humanas cabem nessa palavra?
Mas a verdade é que Uma Terra Prometida – Contos sobre Refugiados consegue algo quase impossível, isto é, tornar uma intenção óbvia e limpa num terreno pantanoso de péssima execução e mercantilismo. Antes de passarmos ao livro propriamente dito, contudo, importa fazer referência a um dos precursores e fundadores do Direito Internacional moderno, Francisco de Vitoria (c. 1486-1546), frade dominicano e autor maior da Escola de Salamanca. Numa das suas obras de maior relevo, Relectio Prior de Indis, uma espécie de Magna Carta dos direitos dos nativos, Vitoria aborda as questões suscitadas pelos Descobrimentos e pelo contacto com as populações ameríndias, nomeadamente os problemas da conquista e da evangelização. Neste obra Vitoria desenvolve uma argumentação curiosamente actual para observarmos aquele que é, como se disse, um dos temas mais relevantes do Direito Internacional contemporâneo: os refugiados.
Procurando harmonizar o jusnaturalismo medieval e o legado aristotélico com as necessidades de um mundo recém-globalizado, Vitoria elevou o direito de comunicação à categoria de alicerce do Direito Internacional, como decorrência inultrapassável da natural sociabilidade humana. A sociabilidade é uma evidência face à necessidade de cooperação para a sobrevivência, já que ao homem “foram negadas pela providência muitas coisas que foram atribuídas e concedidas aos restantes animais”. O direito de comunicação, do qual o direito a migrar e a procurar melhores condições é corolário, é tão parte fundamental do Direito Internacional como o direito à segurança, e é, principalmente, anterior à ideia de fronteira e, mesmo, ao mais remoto embrião daquilo a que, a partir da época de Vitoria, vamos chamar Estado. Negar ao outro a comunicação é negar-lhe parte elementar daquilo que nos torna humanos.
Estes temas estão no fundamento e na origem daquilo que é hoje o Direito Internacional e qualquer discussão que, ainda que remotamente, os envolva, não poderá furtar-se a considerá-los. E, por outro lado, evidencia o quão grande parte da “argumentação” a este propósito se aproxima mais da xenofobia e da ignorância mútuo do que de uma hierarquização de valores jurídicos tão primordiais.
A xenofobia é a forma de incompreensão mais intolerável, mas existem outras formas de incompreensão particularmente preocupantes e uma delas, da qual Uma Terra Prometida padece, é a insensibilidade sensível ou, por outras palavras, a banalidade do bem. Um exemplo paradigmático desta ignorância é a partilha de fotos e notícias acerca dos refugiados nas redes sociais que, para além de revelar um certo engano relativamente à verdadeira relevância que a nossa pegada digital poderá ter nos dá uma falsa, mas aparentemente acalentadora sensação de que estamos a fazer alguma coisa pelo outro. As redes sociais, principalmente o facebook e o twitter, deram a cada utilizador uma impressão de pedestal mas que, na maioria dos casos, é afinal um pedestal sem ouvintes ou com ouvintes tão alienados quanto os partilhadores da mais recente denúncia que esteja na moda. Uma Terra Prometida é o equivalente literário desta forma de ignorância e insensibilidade.
Pouco interessa a qualidade dos contos presentes nesta recolha, da mesma forma que poucas responsabilidades podemos inculcar nos seus autores pelo tremendo disparate que esta edição é. O problema não está nos contos, como não está na escolha dos autores ou em qualquer outro factor que, em circunstâncias normais, presidiriam a uma avaliação deste livro. Tão-pouco há grande problema com a iniciativa de escrever um livro com contos sobre refugiados, se bem que, a título pessoal, me pareça deliciosamente irónico que um livro que pretende reforçar a consciência do leitor para o problema dos refugiados o procure fazer através de histórias ficcionadas, quando há milhares de histórias reais à espera de serem contadas, contra a crueldade estatística da síntese entre imagens de impacto e números de mortos que têm povoado a abordagem noticiosa a este tema.
Como pode, então, um livro que afirma um propósito digno e que reúne um conjunto de autores que não cabe questionar, maioritariamente composto por romancistas publicados e reconhecidos, ser o que este é: uma tempestade perfeita de futilidade, insensibilidade e empreendedorismo editorial? Simples, o problema está na intenção. É que a intenção, neste livro específico, é perfeitamente sondável. Senão vejamos.
Um mínimo de respeito, seja pelo tema seja pelos autores que a este volume emprestaram as suas palavras, exigiria um prefácio decente, capaz de explicar, até contra o que eu próprio escrevi atrás acerca dos problemas entre histórias ficcionadas e histórias reais, que a ficção é uma resposta combativa à realidade, que, por exemplo, não se limitasse a dizer que a palavra refugiado tem um sentido potencialmente mais amplo que aquele que, na actualidade, mais imediatamente identificamos mas, ao invés, o demonstrasse, nomeadamente através do recurso a exemplos da ficção. Mas, quando lemos o prefácio que, suponho, foi escrito por José Fanha, organizador da obra e autor auto-incluído, descobrimos que se tratou de um desafio para “criar uma colectânea de contos” e que o tema foi escolhido porque é “extremamente actual” e porque querem “homenagear todos aqueles que têm e tiveram de fugir à fúria das diversas barbáries caídas sobre a humanidade”, a coisa começa a cheirar a esturro. O mesmo pensa a editora que, em declarações ao Jornal de Notícias, afirmou que este volume reúne “nove histórias que nos obrigam a uma viagem à realidade daqueles que nada têm a perder e cuja única motivação é a sua enorme esperança num futuro melhor, (…) [h]istórias que, por nos falarem dos limites do humano, muito além dos laços culturais, geográficos ou religiosos, poderiam, afinal, ser sobre qualquer um de nós”. É possível que os editores estejam já de tal forma embrenhados nos esquemas típicos da promoção comercial que nem se dêem conta do quão genéricas e inapropriadas estas fórmulas resultam quando aplicadas ao tema que o livro pretende abordar, mas mais do que isso, o que é evidente é que a intenção do livro sem apoio num verdadeiro prefácio de enquadramento, sem estar inserida num evento ou programa institucional de apoio ao tema – e não estou a restringir-me ao apoio financeiro – tresanda a esquema publicitário, principalmente num livro que inclui, completamente a despropósito, citações do Papa Francisco e de articulados da Convenção de Genebra relativa ao Estatuto de Refugiado e numa editora que, na mesma declaração ao Jornal de Notícias, se define como uma chancela apostada em “promover um estilo de vida independente, intimista, invencível e apaixonante”.
Uma Terra Prometida reúne nove contos de igual número de autores portugueses, cujo interesse é bastante desigual. Merecem especial destaque, pela positiva, os contos de Afonso Cruz e Ana Margarida Carvalho, tal como o de Sérgio Luís de Carvalho que, bem melhor que o prefácio, justifica uma ambição mais universal e menos colada à actualidade que o tema dos refugiados também merece. No extremo oposto, Nuno Camarneiro é o autor do conto mais reiterativo que li nos últimos anos, intitulado Vinte e poucos anos, e cujo narrador nos recorda logo na primeira frase que, na altura dos factos, tinha vinte e poucos anos e que passa todo o resto do conto a despejar estereótipos dos vinte e poucos com o único objectivo aparente de que o leitor nunca se esqueça de que está a ler algo típico dos vinte e poucos anos.
Uma Terra Prometida – Contos sobre Refugiados
Organização de José Fanha
Contos de Afonso Cruz, Ana Margarida De Carvalho,Carlos Vale Ferraz, Filomena Marona Beja, Nuno Camarneiro, Miguel Real,Cristina Carvalho, José Fanha e Sérgio Luís de Carvalho
Editor: In Edições
Páginas: 192
Preço: 15,99€