Viveremos para sempre


Crónica de Afonso de Melo, em Paris


O homem esfarrapado da Place Saint Michel arrasta atrás de si um gigantesco urso de peluche cor-de-rosa, escuro de lama e de lixo. Dirige-se às escadas do metro e desaparece nas catacumbas da cidade.

No Quay d’Orsay, um pai, uma mãe e dois filhos pequenos preparam-se para dormir encostados à parede, um lençol sem cor a cobrir os quatro. Sorriem. Talvez se recordem do velho provérbio romano: «Sorri. Sorri sempre. Não é por causa de um sorriso que tem de nascer uma profunda amizade».

Cicatrizes de Paris. Gente ao relento. «O Inferno está vazio e todos os demónios estão aqui», lê-se n’«A Tempestade».

Um demónio em forma de urso de peluche; em forma de uma família que se prepara para dormir, lá onde os escapes dos automóveis são o sol que os acordará pela manhã.

Cicatrizes que se repetem. Gente descamisada, crianças adulteradas, velhos sem saída. Onde está Deus perfeito e infinito a esta hora? Descansa ainda, hoje que é domingo? O dia que lhe é consagrado.

Filmes e poemas povoam a minha adolescência. Vi as «Vinhas da Ira» no Cinema Europa. Quantas vezes? Nem eu sei. Sei que sei de cor passagens inteiras. A ira de Tom Joad: «Estarei no grito dos revoltados e no riso das crianças quando têm fome e sentem que vão comer». A rapariga grávida que amamenta um velho decrépito. Filme cru. Duro como o livro.

Duro como a cidade, agora que a noite se põe.

E depois o fim: «We’re gone to live forever because we are the people!»

O povo: infinito como Deus.

Viveremos para sempre


Crónica de Afonso de Melo, em Paris


O homem esfarrapado da Place Saint Michel arrasta atrás de si um gigantesco urso de peluche cor-de-rosa, escuro de lama e de lixo. Dirige-se às escadas do metro e desaparece nas catacumbas da cidade.

No Quay d’Orsay, um pai, uma mãe e dois filhos pequenos preparam-se para dormir encostados à parede, um lençol sem cor a cobrir os quatro. Sorriem. Talvez se recordem do velho provérbio romano: «Sorri. Sorri sempre. Não é por causa de um sorriso que tem de nascer uma profunda amizade».

Cicatrizes de Paris. Gente ao relento. «O Inferno está vazio e todos os demónios estão aqui», lê-se n’«A Tempestade».

Um demónio em forma de urso de peluche; em forma de uma família que se prepara para dormir, lá onde os escapes dos automóveis são o sol que os acordará pela manhã.

Cicatrizes que se repetem. Gente descamisada, crianças adulteradas, velhos sem saída. Onde está Deus perfeito e infinito a esta hora? Descansa ainda, hoje que é domingo? O dia que lhe é consagrado.

Filmes e poemas povoam a minha adolescência. Vi as «Vinhas da Ira» no Cinema Europa. Quantas vezes? Nem eu sei. Sei que sei de cor passagens inteiras. A ira de Tom Joad: «Estarei no grito dos revoltados e no riso das crianças quando têm fome e sentem que vão comer». A rapariga grávida que amamenta um velho decrépito. Filme cru. Duro como o livro.

Duro como a cidade, agora que a noite se põe.

E depois o fim: «We’re gone to live forever because we are the people!»

O povo: infinito como Deus.