Uma carrinha de nove lugares pode ser um forno. De tal forma que as problemáticas se repetem, há que ter atenção à temperatura, esperar pelo borbulhar dos alimentos para acionar o modo grill, panóplia de opções que se confundem com a luta das janelas abertas ou do ar condicionado, puxa aqui, destapa ali. E se os humores são distintos o que dizer dos termóstatos pessoais, sobretudo quando subjugados pelo inferno da Andaluzia. Ainda assim, o forno lá acaba por cozinhar, igual a dizer que a carrinha beijou o seu destino com os alimentos intactos. Façamos o favor de traduzir nutrientes por seis pessoas, pequena milícia pacífica que apesar de rogar pragas ao calor sabe ao que vem. Estacionamos no bairro de San Miguel, em Jerez de la Frontera, mais precisamente na rua onde se encontra o estúdio de Mercedes Ruiz, bailaora de flamenco que é figura de proa na cidade onde nasceu, talento à solta por essas jaulas internacionais, vulgos palcos. Assim o é, de tal forma, que será “Déjame Que Te Baile”, a sua mais recente criação, a encerrar o Festival de Almada, que hoje começa. Qualquer ensaio requer os seus preparativos. Sim, nem precisam de pedir, esta é a nossa deixa para ir ao boteco da esquina – que há coisa que não são para jornalista ver – pedir a água mais fresca que a arca contiver. Segue-se o óbvio olhar estranho-curioso-intrigado dos locais, pelo menos até as apresentações serem feitas, até os ésses começaram a dobrar-nos a língua para o sotaque necessário à compreensão, até uma das senhoras de xaile preto se levantar para mostrar um poster gigante de Mercedes Ruiz. Aí, se ainda restavam dúvidas de merceeiro desatento, tudo se esfuma, rapidamente entendemos o carinho que a bailaora carrega, “as gentes do flamenco abordam-me muitas vezes na rua, desejam-se felicidades, nasci nesta rua, é um bairro com enorme tradição no flamenco, isso explica esse poster”, confessa-nos, mais tarde. É que de vez a vez é preciso avançar e recuar no curso dos eventos, as analepses e prolepses desta vida, as mesmas que agora nos guiam ao ensaio de “Déjame que te baile”. Na amostra para a tal milícia absorver, Mercedes Ruiz faz-se acompanhar por um cantor e um percussionista, gente que é guiada pelos tacões dos sapatos da bailaora, numa formação em meia lua que, devido ao reduzido tamanho do estúdio de Ruiz e da disposição em que a curta audiência se expõe, mais parece uma jam session. Só que esta é de flamenco e sem guitarras. O cantor segura a cábula na dobra dos calções, claro, há que cantar também com as mãos, achar o ritmo do que aqui se evoca, marcado também por chinelos de enfiar o dedo, e deixar a estrela maior brilhar. Umas vezes em confronto consigo, ao espelho, outras em amena cumplicidade com os seus músicos, Mercedes Ruiz é uma artista densa. A leveza de saber sorrir no flamenco, que não tem que ser apenas drama, como a própria nos confirma: “Com o flamenco podes divertir-te, podes ser positivo, desde que esse seja o teu desejo. E a verdade é que se não transmitir boa energia ao público isso ressente-se no espetáculo. O que tento é que seja tudo espontâneo, se tenho que me rir rio, se tenho que me estar mais fechada estou, o que importa é que a audiência o receba de forma natural”. Um génio nem sempre sai aos seus, ainda que seja prematuro, ainda que tenha começado a fazer flamenco aos quatro e se tenha estreado em palco aos sete, nenhum membro da família de Ruiz tinha um historial nesta arte. “Há gente que o descobre cedo, outros mais tarde, nasci em Jerez e o flamenco nasceu comigo. Quando estou a dançar não estou no uso da razão, é o meu corpo a exprimir-se, não sei explicar”.Nós também nem sempre sabemos. Mas se estamos numa de explicações, aproveitamos para inquirir a bailaora sobre o que lhe diz que um espetáculo de flamenco encerre um festival de teatro: “O flamenco, quando é bem feito, com sentimento e profundidade, agrada a gente de todo o mundo. E claro que o flamenco tem uma componente teatral, estamos sempre a interpretar alguma coisa. Além disso, o ‘Déjame que te baile’ é um espetáculo muito fresco, vivo, sei que será visto pelas gentes do teatro mas puxa para uma elegância, algo fino, o público vai gostar, penso”. A milícia, a bordo do seu forno disfuncional, cumpriu o regresso à boleia das havaianas a bater, com a certeza de que o flamenco vai ao teatro e que os tacões de Mercedes Ruiz, vão estar no Festival de Almada. Quanto a nós, na Andaluzia, só voltamos no inverno.O i viajou a convite da Companhia de Teatro de Almada.
Festival de Almada. Dar um baile ao teatro
Fomos a Jerez de la Frontera conhecer Mercedes Ruiz, bailaora que encerra, a 18 de julho, o festival que hoje começa. “Déjame Que Te Baile” é o espetáculo em questão, mas a viagem não foi só flamenco