Psicopata Americano. A promessa do horror

Psicopata Americano. A promessa do horror


Foi há 25 anos que Bret Easton Ellis publicou a sua obra maior, “Psicopata Americano”. Uma nova tradução do romance adaptado ao cinema no ano 2000 com Christian Bale no papel do protagonista, Patrick Bateman, está agora nas bancas portuguesas


Poucas coisas trazem mais notoriedade a um livro que uns pozinhos de polémica. Trata-se de algo que a comunidade literária – autores, críticos e, principalmente, editores – já há muito intuiu e que, de certa forma, conseguiu instrumentalizar a seu favor, para não dizer mesmo domesticar. As instituições de poder, contudo, parecem permanecer num eterno oblívio, renovando, de tempos a tempos, os seus impulsos de censura, algo particularmente difícil de compreender quando estamos a falar de instituições com uma tradição sedimentada, como é o caso das escolas, dos governos ou da igreja.

Psicopata Americano, de Bret Easton Ellis, é um excelente exemplo para ilustrar este tema. A estratégia de promoção adoptada aquando do seu lançamento original, bem como o alvo quase unidireccional da censura e crítica ao texto, focou-se num truque próprio da literatura de crimes reais, isto é, na promessa quase permanente de detalhes terrivelmente violentos, inexplicavelmente desumanos. Residiu aqui parte do sucesso de A Sangue Frio, praticamente o inventor do género, e os seus seguidores pouco tiveram de alterar a este propósito. Este mecanismo, reforçado pelos impulsos de censura que o poder ainda não aprendeu a cercear, têm quase sempre o mesmo resultado: a curiosidade do leitor.

Pouco da escrita, da promoção e das polémicas em redor de Psicopata Americano fugiu ao conteúdo hiperviolento e ao comportamento transgressivo das suas personagens principais, a começar logo pela escolha de um título que indicia muito mais do que entrega. E os efeitos de tudo isto são curiosíssimos. Por um lado, permitiram ressuscitar em pleno um autor que, depois de uma estreia fulgurante e ainda hoje notável, com Menos que Zero, se afundara numa versão universitária e inconsequente dessa mesma estreia com As Regras da Atracção. Por outro lado, e bem vistas as coisas, levaram o livro ao mesmo lugar a que, provavelmente, a ausência de censura o teria levado.

Psicopata Americano é, por direito próprio e alheio às polémicas que o rodearam, o melhor livro de Bret Easton Ellis, o que pode até nem querer dizer tanto assim. É verdade que, em momentos, parece uma espécie de bingo dos tópicos preferidos do autor, com personagens recorrentes de outras histórias, um desfile de objectos e marcas que ficaria mais à vontade num museu de cultura pop de finais do século XX, bem como personagens cuja apatia geral nos deixa num limbo opinativo entre uma marca de estilo e a falta de recursos para densificar a sua dimensão humana. O livro, contudo, sobrevive relativamente bem aos lugares-comuns do autor, quer por ser infinitamente mais pessoal que o biografismo martelado da maioria dos seus textos, quer por, nos seus melhores momentos, elevar a apatia e o grau zero de consciência de grande parte das personagens a uma paródia eficaz de um mundo financeiro aparentemente obcecado com armações da Oliver Peoples e a textura e tinta dos cartões-de-visita.

Publicado pela primeira vez há 25 anos, evento aproveitado por esta edição portuguesa, Psicopata Americano acompanha Patrick Bateman, um yuppie que parece desenhado para confirmar todos os preconceitos acerca do tipo, rodeado por outros yuppies desenhados exactamente com os mesmos propósitos e tão padronizados que as próprias personagens na maior parte das vezes não sabem muito bem com quem é que estão a falar. À medida que o romance avança, numa torrente permanente de referências pop (o melhor disto são as análises à música dos anos oitenta, que, por si só, já fariam a leitura valer a pena), Bateman – que, noutro detalhe típico do autor, já aparecera como personagem secundaríssima em As Regras da Atracção, enquanto irmão do protagonista Sean Bateman –, dá início e depois escalada a uma série de crimes, cada vez mais violentos, cada vez mais sanguinolentos, entre violência contra animais, tortura, violação, mutilação, canibalismo e necrofilia, até um nível tal de horror que os próprios personagens da história, quando confrontados com uma confissão, interpretam tudo como uma piada, ficando o leitor na mesma dúvida. Este é, aliás, o grande feito de Ellis com Psicopata Americano, o lograr convocar todos os seus recursos e tiques enquanto escritor, elevá-los ao cubo e criar, assim, um exagero tal em que a paródia às próprias custas, o humor e, melhor que tudo, a permanente dúvida o tornam uma leitura entretida e um dos mais interessantes jogos entre a loucura e a violência. Ainda que sem chegar sequer perto das qualidades do estilo e do ritmo de Fitzgerald n’O Grande Gatsby, é com este livro que podemos aparentar Psicopata Americano. A diferença é que um despedaça o grande ethos americano, o outro hiperboliza-lhe a morte.

Esta nova edição portuguesa, para além de um arranjo gráfico finalmente apropriado ao texto, apresenta uma tradução para o português, por conta do escritor Hugo Gonçalves, incomparavelmente melhor que a anterior da Teorema, onde as más soluções de tradução apartavam o leitor de grande parte das melhores piadas e jogos de palavras do livro. A tradução de Hugo Gonçalves denota uma familiaridade muito particular com a obra de Bret Easton Ellis, algo que a obra do próprio tradutor, a espaços, também já exibia, tal como logra readaptar o texto ao tom e ao ritmo que a língua portuguesa tantas vezes impõe contra o inglês e que, na tradução anterior, o tornavam tão postiço.  

 

Edição: Marcador / Tradução de Hugo Gonçalves / 456 páginas / 21,50€