O mundo do Museu da Presidência

O mundo do Museu da Presidência


Há cerca de um ano, o i fez uma reportagem sobre o Museu da Presidência. Republicamo-la agora


O Museu da Presidência foi inaugurado ainda durante o mandato de Jorge Sampaio. Já tem no seu espólio toda a documentação de Sampaio e parte da de Cavaco Silva que deverá deixar tudo no museu quando abandonar Belém. Tem os arquivos completos dos três presidentes da ditadura. Da primeira República o arquivo mais completo é o de António José de Almeida, encontrado em baús de ferro numa adega em Penacova

À uma da manhã do dia 4 de outubro, o segundo tenente Mendes Cabeçadas, a bordo do cruzador Adamastor, consulta o relógio de bolso e confere: é a hora combinada para o bombardeamento do Palácio das Necessidades, sítio onde hoje fica o Ministério dos Negócios Estrangeiros e naquele tempo era a casa do rei. O ato de Mendes Cabeçadas marca “a hora zero da República” e o relógio do homem que liderou a revolta a bordo do cruzador é a primeira peça que o visitante do Museu da Presidência vê ao entrar.

Diogo Gaspar é o diretor do Museu da Presidência desde o início, há 10 anos, ainda Jorge Sampaio era Presidente da República. O Presidente que inaugurou o museu entregou mais de 100 caixas de arquivos, o atual Presidente também já disponibilizou parte do seu arquivo pessoal e tudo indica que quando deixar o Palácio de Belém, em março de 2016, entregará toda a sua documentação de político e Presidente ao museu.

Mas o museu da Presidência não dispõe dos arquivos de todos os presidentes da República. Mário Soares seguiu a fórmula americana e tem o seu arquivo na Fundação com o seu nome. Ramalho Eanes, o primeiro presidente eleito, mantém na sua posse o arquivo de Presidente. E se o Museu da Presidência tem no seu espólio o arquivo completo do marechal Costa Gomes, segundo Presidente da República a seguir ao 25 de abril, doado pela viúva, o arquivo de António de Spínola, o primeiro Presidente a seguir à Revolução, mantém-se nas mãos dos herdeiros. No entanto, o manuscrito do livro “Portugal e o Futuro”, que foi um dos símbolos desencadeadores do golpe de Estado, está no museu.

O arquivo mais completo de um presidente da I República é o de António José de Almeida, mas não existe nada de Manuel de Arriaga. Diogo Gaspar considera incompreensível que o arquivo do primeiro Presidente da República, o açoriano Manuel de Arriaga, continue nas mãos da família. “Lamento que o arquivo do primeiro Presidente da República se mantenha nas mãos da família, que tanto quis homenagear o estadista com a dignidade do Panteão Nacional, e não entrega os arquivos de Manuel de Arriaga ao museu da Presidência”, afirma o diretor do museu. Para Diogo Gaspar, os arquivos de Manuel de Arriaga “deveriam ser do domínio público”. O presidente do museu até entende que o arquivo de Spínola, por exemplo, não esteja no museu: “Tem que se compreender que o pós-25 de abril está muito presente, envolve pessoas que estão vivas”. Mas a falta de vontade dos descendentes de Manuel de Arriaga para entregar o arquivo do primeiro presidente da República não lhe merece complacência.

Os três Presidentes da Ditadura Quando os responsáveis do museu abordaram as famílias dos três homens que foram presidentes da República durante a ditadura – Óscar Carmona, Craveiro Lopes e Américo Thomaz – as famílias “ficaram absolutamente surpreendidas”. Custou-lhes a acreditar que a democracia quisesse pôr num museu a história da ditadura. “Todos os familiares entregaram os arquivos dos presidentes. Acho que pensaram que jamais em tempo algum alguém lhes fosse pedir os arquivos”, conta Diogo Gaspar.

O arquivo de Américo Thomaz é muito extenso, porque o último Presidente da ditadura guardava todos os papéis – e anotava tudo numas agendas minúsculas da Sacor, que agora estão no museu da Presidência.

No dia 25 de Abril, Américo Thomaz escreve: “Depois de 28 anos de trabalho acabo aqui a minha vida oficial. Daqui por diante esta agenda só contém o que estava projetado fazer”. Thomaz tinha programado para 30 de Abril a sua visita anual à capela da Senhora da Saúde, no dia 2 de Maio uma visita a Barcelos e a Viana do Castelo no dia 3. Não se realizaram. Numa das agendas, Américo Thomaz escreve que foi ter com Salazar, já internado em estado grave, para lhe comunicar de que já não era presidente do Conselho. Salazar pode não ter ouvido – ou percebido. Mas na agenda de Thomaz está lá: “Fui ter com o Presidente do Conselho para o informar que deixou de ser Presidente do Conselho”.

A autoridade de Carmona Salazar corrigia os discursos de Américo Thomaz, mas Carmona nunca permitiu ao presidente do Conselho que lhe corrigisse os discursos. Há, aliás, uma carta em que Óscar Carmona ameaça Salazar com a demissão. “Existe um rascunho de uma carta que o Presidente Carmona manda a Salazar onde diz que não lhe admite que lhe corrija os seus discursos e avisa que a qualquer momento pode exercer os seus poderes”, conta Diogo Gaspar, para quem “Carmona não era o Presidente de Salazar” e teria alguma autoridade sobre Salazar por ser co-responsável pela sua ascensão.

Com Thomaz era diferente. Há um texto em que Thomaz quer iniciar um discurso a dizer “agradeço aos portugueses” e Salazar corrige por cima: “Um Presidente nunca agradece”. Os arquivos dos presidentes da República estão dispersos. Por exemplo, o de Teófilo Braga, “um arquivo completíssimo”, pertence à Biblioteca Pública de Ponta Delgada. O museu da presidência tratou e descreveu, mas devolveu-o aos Açores. Parte do arquivo de Bernardino Machado está no museu Bernardino Machado em Famalicão.

Quando se pensava que os arquivos de Teixeira Gomes tinham sido totalmente destruídos antes da sua partida para o exílio, o Museu da Presidência conseguiu comprar o arquivo diplomático do antigo Presidente da República e embaixador. Foi uma história rocambolesca: apareceu uma pessoa no museu, a quem ninguém deu crédito inicialmente, a afirmar que queria vender um arquivo de Teixeira Gomes. Uma pessoa de Braga que se estava a desfazer da casa dos avós encontrou um caixote cheio de letras de câmbio e vendeu-as – mas afinal era o arquivo diplomático de Teixeira Gomes. O antigo proprietário da casa de Braga tinha sido secretário de Teixeira Gomes em Inglaterra, quando o escritor ali foi embaixador depois do 5 de Outubro. Quando Teixeira Gomes parte para o exílio, o secretário fica com o arquivo diplomático, que hoje é do Estado português.

O resgate dos arquivos de António José de Almeida, os mais completos de que o museu da presidência tem sobre a I República, também foi uma operação curiosa. Foram encontrados numa casa de Vale da Vinha, concelho de Penacova, numa casa pertencente ao viúvo da filha de António José de Almeida. Desde os anos 30 que estavam numa cave, guardados em baús de ferro, numa adega com ratos “que parecia uma caverna de Ali-Babá”, como diz Diogo Gaspar. Estão agora na posse do Estado 850 caixas de documentos de António José de Almeida, da infância até quase à morte. Está lá o relatório do 5 de Outubro.

O Museu da Presidência gostava de reunir, para além dos arquivos dos presidentes da República, arquivos de políticos contemporâneos, como os primeiros-ministros, e também de candidatos à Presidência da República. “Onde está o arquivo de Vasco Gonçalves?”, interroga-se Diogo Gaspar. “Pode acabar em algum caixote do lixo!” Mas em história 40 anos não é tempo nenhum.

Artigo publicado em 2015