Verdi, Schubert, Strauss, Mozart e Wagner são cúmplices silenciosos deste enredo. Cinco bustos que não largam a ação, que tudo testemunham, estão lá quando Klara (Rita Cabaço) é presa por ter engravidado do seu professor de canto (Dinis Gomes), estão lá quando a mãe da estudante (Luísa Cruz) faz um playback estoico e programado – por favor não comparar esta interpretação às performances vistas nos programas da manhã – estão lá e hão de estar, deixar-se ficar. Por outro lado Luís Miguel Cintra, e por consequência toda a estrutura do Teatro da Cornucópia, não é muito de ficar a ver.
Já andava com Frank Wedekind desde a época em que uma epifania o confrontou com um vento distinto, “uma sensação mais moderna”, diz-nos, “do que os seus grandes contemporâneos como o Strindberg, o Ibsen e o Tchekhov”. Está na hora de “Música” – para além dos constrangimentos habituais, elenco reunido, timings, agendas livres de sobreposições – porque a banda aqui presente gosta de pensar, ou, melhor ainda, provocar esse pensamento: “Entusiasmou-me o que nela está contido de reflexão e de pensamento sobre a hipocrisia social, as relações entre os homens serem todas postiças, bem como a relação da arte com a vida, estando as relações dos homens minadas a arte tem muita dificuldade em inserir-se na sua verdadeira função”, conta Cintra. “Música”, peça escrita por Frank Wedekind em 1906, estreia hoje no São Luiz Teatro Municipal, e por aqui fica até 10 de julho.
E neste palco, mais do que nunca, a vida é tramada. Tanto que, sem nos deixar perceber os eventos anteriores, nos joga desilusão fora, a ironia cruel de uma jovem cantora que por um acidente tudo perde. “Só se sabe que em vez de estudar música fizeram troça dela, não sabemos se ela foi para a cama com o professor por chantagem ou se foi vontade, o que é terrível é que isso influencie o curso e que ela não possa continuar a estudar. A própria vocação artística dela aparece de uma maneira muito estranha, é óbvio que ela não gosta muito de cantar, gosta da glória que teria sido ter ido cantar àquele festival”, conta o encenador.
Pensemos no título “Música”, quando tudo o que importa, ou aquilo que acaba por ser relevante nesta história, é tudo menos canto. A atrocidade deste destino está entre o negócio e a forma mais bárbara de se tratar o feminino, a mulher como objeto é sinónimo de desconforto na cadeira. Ou seja, Wedekind sabia o que fazia. O mesmo se pode dizer de Luís Miguel Cintra. Que a “Música” junta momentos pseudomusicais, playbacks que Luísa Cruz faz na perfeição.
Mas não é tudo. Há ainda Ödön von Horváth, dramaturgo austro-húngaro que na sua denúncia do crescimento fascista pela normalização do quotidiano encontrou em “A Hora do Amor” – peça radiofónica que fez a partir de testemunhos de amantes na rua – a sua forma de dizer que nem sempre os manifestos amorosos nos salvam da intempérie. Vai daí e ainda sobra espaço para um programa, espécie de showcase do vazio em que estamos, de rádio feito por João Reixa. “Música” devia ser para todos os ouvidos.