Do ruído retirar formas, em furiosa elisão, interpretar contra o sentido que se impõe, num desvio sensível dos sinais, que já não vão tão seguros mas denunciam a sua perturbação. Como se restasse a um homem defender a sua sombra, e não um lugar certo no mundo, ser antes a barragem que preenche cada instante e logo se move, se ausenta. As palavras cheias de um peso apropriado, essa posse que faz variar as coisas, a própria luz que incide nelas, definindo um tom – e se este souber provocar atrito, tanto melhor. “Espantalhos meus,/ motins ao longe Um lamento rói/ a dor rente ao ruço da gola Se possível,/ em chão novo Uma arma sempre à mão”… Rui Baião não cai bem no lote, se aos poetas vamos chamar aqueles que com cada frase conquistam para a rotina do bom senso mais uns metros, que sobre a dor puxam o lençol para apagar aquelas expressões que causam desconforto aos convidados.
“Errar por extenso Exclui-me/ de uma única sombra Eterniza/ seu sem rumo sem abrigo Se/ a memória não me trai Mentes-me/ de toda a maneira O rigor do riso,/ e seus afluentes Só de pinça,/ as ocas baias do desejo, os dedos/ por noites residuais Onde se lê/ : náufrago: trapo Que sal/ Irão olhar”. Está muito bem vir notar a rarefacção com que este discurso ata o seu nó expressivo, a aspereza que faz desta sintaxe um tormento para a língua, mas vir elogiar a sua falta de cerimónia e exaltar um insurrecto paisagismo que reage aos “padrões líricos em voga” impondo “ruínas incessantes”, isso, no final de contas, não passa de cruzar a rua, brincar aos opostos. É atirar-lhe para as mãos uma baioneta e destiná-lo às trincheiras.
Na verdade este exercício, “nos antípodas da bela poesia, cantável e mansinha” – como atesta Manuel de Freitas em recensão ao livro publicada a 5 de Março na revista "E" do semanário de "referência" português, Expresso –, correrá os mesmos riscos que o outro, o de se disciplinar, cair numa pauta do lado revel, e passar os dias a peneirar “as fezes expostas” em busca de algo menos digerido. De resto, importa notar como aquele poeta, editor e crítico, na maior parte dos seus textos prescinde de analisar nexos menos aparentes e, na base de um modelo judicativo, se limita a trajar o seu gosto de canône, não fazendo mais do que apadrinhar ou excluir do seu exclusivíssimo clube este ou aquele autor.
Assim, ao invés de nos contentarmos com as bancadas para adeptos oferecidas por uma crítica de apito nos beiços, que se limita a policiar fronteiras, será mais proveitoso desdobrar uma obra, abri-la contra o fundo de si mesma, para perceber como se debate, quando passa do prejuízo e alcança o tal efeito de posse. “Pela boca morre o gosto Salta/ à língua, o nervo aí Fogo enorme/ salitre do som Uma alma de raiz/ abana Morre branda, a morte/ por um lenho A culpa, se os cães/ forem noites mancas A cal ao canto/ da boca Enquanto isso, o sono/ monta o poiso Vem vadio/ e excêntrico, à volta do pavio”.
Nuns momentos evasiva, noutras assoberbada, mas sempre lutando, às vezes no que parece o limite dos sentidos, esta poesia não se mostra propriamente interessada em “deslumbrar” (como sabe a M.F.) Se há algo de verdadeiramente notável nela é o quanto a sua recusa parece reflectir o desamparo, o imprevisível, a violência imprecisa dos desastres. É isto que a impede de se reconduzir a uma mera vigília estética: o seu erro não é frio nem parece calculado.
"Noizz"
de Rui Baião
Editor: Companhia das Ilhas, 2016