“O que conta são as ações, e não as palavras.” Compreendo perfeitamente a máxima e concordo, mas não podemos descurar a importância das palavras. Da força que elas têm. Do seu poder real. De como elas conseguem mudar o rumo de uma história, decidir se assumimos a careca ou se nos disfarçamos do mundo, se apanhamos o avião por amor ou se, depois das palavras, resolvemos ficar porque, afinal, não vale a pena. As palavras são as ações em poesia. Existem e têm corpo mesmo que não lhes vejamos a forma, e agem como se fossem ações, invadindo realmente a vida de quem as ouve.
Adoro palavras. Fazem-me agir. São elas que me permitem ser criativa e dada, porque dou palavras, para me dar em amor. Foram sempre elas que me fizeram entender os meus próprios pensamentos e foram sempre elas a música de fundo que ouvi para os acalmar. Quando estive doente e em todas as fases difíceis da minha vida, as palavras foram o melhor e o pior, e lidar com elas foi a minha verdadeira missão.
E assumindo esta importância vital das palavras, arrisco também dizer que, se perguntarem aos doentes oncológicos o que mais lhes custou durante a doença, eles irão afirmar: ouvir determinadas palavras.
Já vos contei as barbaridades que ouvi quando estava doente. Talvez a maior tenha acontecido quando saí do último sítio onde me deveria acontecer algo do género – da igreja. Tinha eu 13 anos, estava em fase de tratamentos e fui com a família à missa. Eles foram certamente suplicar pela minha sobrevivência, e eu, como sou orgulhosa e não gosto de pedir favores a ninguém, fui só agradecer o que já tinha. Logo que entrei na igreja percebi que estava a ter mais atenção do que o próprio Deus, uma vez que os pescoços só se viravam na minha direção. Incrédulas por me verem sem cabelo, ou por me verem viva, não sei, as pessoas não disfarçaram os olhares e o espanto, e eu rezei (literalmente, não estivesse na missa) para que me tornasse invisível. Acho que quis o lugar de Deus e ele quis o meu. Finalmente, quando saí da igreja (e agora juro que isto parece um sketch), uma beata, vestida de preto da cabeça aos pés, que frequentava diariamente a igreja, o coro da igreja e que só não dormia no altar porque isso é espaço para as “oferendas”, e a beata não se oferece a ninguém, veio direita a mim, pegou-me pelo braço, como se fosse uma professora a pôr-me de castigo, e muito assustadoramente rosnou-me:
“Ouve lá, és tu que tens o ‘câncare’, não és? Ouvi dizer que ias morrer.”
E foi isto. Claro que não respondi nada. Só me lembro dos seus olhos esbugalhados e do meu braço levantado, puxado por ela, e de ficar imóvel, chocada, sem reação, incrivelmente apavorada, sem perceber o que queria aquela personagem dizer com morrer e, sobretudo, com “câncare”. A minha mãe apareceu disparada, disse qualquer coisa à mulher e tirou-me dali a correr, enquanto barafustava palavras porque tinha ouvido umas tão horríveis dirigidas à filha.
A partir deste dia achei que deveria existir uma outra Bíblia e que, por mim, chamar-se-ia “As Palavras que Nunca te Direi” – a Escritura sagrada, lida e estudada por todos, que explica o que não se deve dizer a um doente oncológico e que entusiasma ao jejum das palavras. “Se não tiver nada de jeito a dizer, esteja caladinho durante 40 dias.”
Quanto à beata em questão, continua a frequentar diariamente a igreja, o coro da igreja e a maldizer os pecadores que usam brincos onde não deveriam, têm tatuagens e cabelos pintados e que envergonham as famílias, porque se juntam, como os bois, em vez de se casarem. A beata em questão continua a dizer “câncare” e a achar incrível que a miúda não tenha morrido, “mas olha que não deve faltar muito”. Apesar de não ter tatuagens, nem brincos nem o cabelo pintado, a cachopa “conta anedotas com cancro” e envergonha a família, porque com a “morte não se brinca” – mas se não brincasse com a morte, nem quando a beata me perguntou por ela, não estaria aqui, sã da minha cabecinha, mesmo que condenada pela beata da minha vizinha.
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