Carlos Daniel: “Jorge Jesus não é o único que pensa futebol”

Carlos Daniel: “Jorge Jesus não é o único que pensa futebol”


Faz as três coisas de que mais gosta: debates políticos, comentário desportivo e apresentação do “Jornal da Tarde”. 


Continua a achar que as pessoas olham para os jornalistas desportivos com algum desdém?

Sim, acho que as coisas não mudaram muito, apesar de o futebol dar grande visibilidade e de serem cada vez mais as pessoas de outras áreas a comentar o fenómeno desportivo. Quanto aos jornalistas desportivos, continuam a ser olhados de uma forma negativa, injustamente, apesar de eu ter a certeza que o desporto é uma belíssima escola de técnica profissional. Infelizmente, há vários redatores que consideram que o desporto é um departamento à parte. Ou seja, a Sociedade, o Internacional, a Cultura e a Política estão todos juntos. A secção de Desporto da RTP em Lisboa está no andar de cima e o resto das editorias estão no andar de baixo. Não concordo, pois isso acaba por dificultar que os jornalistas de desporto se sintam parte de um todo. Não deve haver nenhuma área do jornalismo em que os consumidores estão tão bem informados como a do desporto. Podes enganar-te numa notícia de política, trocar um nome numa notícia internacional, mas dificilmente surge um protesto imediato nas redes sociais. No desporto é quase automático. E, por isso, esse acréscimo da atenção do consumidor obriga-te a um maior cuidado e ajuda-te a fazer com mais rigor o teu trabalho.

É acusado em alguns meios de ser benfiquista. Vivendo no Porto, não deve ser fácil…

Nunca falo na questão clubista. Entendo a curiosidade, mas o jornalista profissional não tem clube. Como sabe, também faço política e nunca ninguém me ligou a um partido, por que razão me hão de ligar a um clube? Não entro em questões de clubites. As pessoas tem todo o direito a ter clube, o jornalista tem obrigação de não deixar que essas questões interfiram na sua atividade. Os meus amigos sabem todos qual é o meu clube. É impossível gostar de futebol e não se ter uma preferência, mas isso não tem nada a ver com a profissão.

Como reage a essas insinuações de que favorece o Benfica?

Houve tempos em que me irritava com isso e arrependo-me de ter respondido a essas provocações. Combato a clubite doentia, não a alimento.

É capaz de ver um jogo de uma forma normal, sem estar a ver a questão das táticas e a tomar apontamentos?

Sim, embora muitas vezes dê por mim a pensar que tenho de ver o jogo só pelo prazer e não estar a ver se jogam pelas laterais ou pelo centro, se as coisas acontecem por acaso ou se se vão repetir. Mas, no fundo, é o mesmo que acontece na política. Quando ouvimos o discurso de um político, não tentamos automaticamente relacionar essas afirmações com outras que proferiu em sentido contrário? Não tentamos perceber se fazem sentido? É óbvio que nós, jornalistas, ouvimos e vemos as coisas de uma maneira diferente das pessoas que não estão tanto por dentro dos assuntos. É normal.

Tem errado muito na apreciação de alguns jogadores? Recordo-me que sempre disse mal de Jardel, o defesa do Benfica.

Não tenho essa ideia, mas reconheço que foi um jogador que evoluiu muito, embora nunca vá ser um defesa de topo mundial. Mas já me enganei muitas vezes na apreciação de alguns jogadores. O que me lembro mais é do Nolito, que jogou no Benfica e que nunca pensei que fosse ter um grande futuro, mas ele está a provar o contrário, quer no campeonato espanhol quer na seleção. Nunca pensei que viesse a ser pretendido pelo Barcelona. Também achei que o Carlos Queiroz era a escolha certa para a seleção e enganei–me, embora tivesse parcialmente razão, já que com o regresso de Queiroz à seleção, o futebol das camadas jovens sofreu outra vez uma revolução, com as pessoas que Queiroz foi buscar. Basta olhar para os resultados que se têm conseguido… Mas é absurdo pensar que quem faz opinião nunca se engana.

O que acha de Jorge Jesus?

É um treinador excecional ao nível do treino, é o mais marcante da última década no futebol português, a seguir ao José Mourinho, mas como tem um ego muito grande, acaba por não corrigir alguns erros. Ele conseguiu muito pela sua intuição, é um autodidata genial, mas funciona muito no mesmo caminho, pois não está atento ao que se passa ao lado. E não é, seguramente, a única pessoa que pensa futebol…

Acha que Jorge Jesus está próximo da qualidade de José Mourinho?

Não quero ser injusto nem para um nem para o outro. José Mourinho é o melhor treinador da história do futebol português e um dos melhores do futebol mundial. Faz os dois primeiros anos no Porto e ganha, faz o mesmo no Chelsea, depois no Inter. Já em Madrid só ganhou um campeonato em três, mas o Real Madrid só ganhou um campeonato nos últimos oito e foi esse. Há um futebol português antes do Mourinho e um depois do Mourinho. E nos últimos anos tem sido muito marcado pelo Jorge Jesus, por isso acho que qualquer comparação pode ser injusta para qualquer um deles.

A linguagem do futebol mudou muito e é considerado um grande especialista.

Acho que houve uma mudança na forma de balizar o jogo nos últimos anos, que para mim é o estudo do jogo. E uma coisa está sempre ligada a outra, sou apenas mais um nesse processo de ir à procura das razões substantivas que explicam porque é que uma equipa joga de determinada maneira. O jornalista é, muitas vezes, quem fica a olhar o que está à volta do jogo, e eu acredito que o jornalista, analista, comentador, o que quiser chamar, tem qde entrar mais no jogo. Porque para comentar estas questões é preciso ser um grande especialista em futebol. Quem gosta de futebol tem tanta competência como eu para avaliar a competência de Bruno de Carvalho ou Luís Filipe Vieira; já os aspetos do jogo é diferente. Aí é que acho que entro, não apenas eu, mas também muita gente que o faz há uns anos em Portugal. Acho que é importante dizer isto: o futebol tem grosso modo 100 anos, mas estudado tem 20, 30 anos no máximo. Quando se construíram as pirâmides no Egito já existia engenharia, senão não tinham sido feitas. Não era, todavia, estudada como foi depois. O futebol, que é uma atividade muito mais recente, está a viver uma mudança, o jogo está a ser muito mais bem preparado e, portanto, obriga-nos a conhecê-lo melhor.

Há um pouco de contradição no que disse. Antigamente dizia-se, por exemplo, “repare como os médios estão juntos das defesas”. Hoje fala-se das entrelinhas, a pressão alta, o pivô… Acha que faz sentido essa linguagem?

Sim, de forma genérica, até por isso é que escrevi o livro (risos). Acho que há coisas que não se podem dizer de outra maneira.

Por exemplo, segunda bola faz sentido?

Segunda bola é a bola de ressalto. Os conceitos organizam o pensamento em todas as áreas, mas claro que não se deve dizer sair “da zona de pressão” na televisão. Mas deve-se falar assim na universidade. A comunicação social deve ter uma linguagem intermédia entre uma linguagem básica, de balneário, que era a que dominava na televisão, e a outra mais técnica. Reconheço que, às vezes, possa haver um excesso desse tipo de linguage,m mas não me parece que seja um problema. Também acho que há uma recusa da nova terminologia em ficarmos agarrados a uma velha linguagem mais superficial. E isso recuso. Não podemos cair no excesso, eu tento não cair. O meu desafio ao escrever o livro “Futebol a Sério”, como jornalista, foi: “Há aqui uma série de conceitos, uma série de imagens técnicas do futebol, mas vou tentar mostrá-los ao espetador comum e tentar que isso o ajude a observar o jogo. As pessoas têm liberdade de seguir apenas a bola ou insultar o árbitro, cada um está no seu pleno direito. Acredito é que a nova forma de olhar o jogo tinha fatalmente de resultar em conceitos que têm nomes. Por exemplo, a expressão jogar em bloco alto ou baixo é português simples e nada estratosférico. Mas muita gente não deve conhecer a expressão de bloco, que explico no livro, que é a distância que vai entre a primeira linha de jogadores e a última. É isso que define um bloco. No outro dia ouvi o Jorge Jesus a comentar na TVI e ele só falava em zonas de construção, entre linhas, e acho que é uma linguagem cada vez mais comum. É muito difícil falar hoje sem usar certos conceitos.

Porque acha que é considerado o Pep Guardiola do comentário desportivo?

Foi um pouco uma piada do Manuel José. Sou fã do futebol do Guardiola e foi uma simpatia essa expressão. Mas tenho de dizer com uma certa vaidade que recorrentemente recebo elogios. Vou num táxi e dizem-me que gostam muito dos meus comentários, numa barbearia a mesma coisa. Tenho de sentir algum orgulho nisso, mas não me considero nada o suprassumo. Este efeito de alguma coisa resulta. Acho que há duas qualidades que reúno que me ajudam a ter algum sucesso: o gosto efetivo pelo jogo e a capacidade de comunicação. Gosto de o explicar, às vezes demasiado depressa, de uma forma simples.

Quanto tempo leva a preparar um jogo que vai comentar?

Depende mas, em média, levo meia hora. Para o Euro precisei de dois a três dias para conhecer todas as equipas, para me identificar com as características de cada jogador, a forma como jogam nos seus clubes e na seleção.

O facto de se dar com muitos jogadores e treinadores não o inibe de fazer críticas?

Não me inibe, mas reconheço que é muito mais fácil dizer mal de quem não conheço do que de quem conheço. Quem disser o contrário está a mentir. Mas quem me conhece sabe bem que não deixo de criticar quando o devo fazer. Por exemplo, Fernando Santos fez o prefácio do meu livro, mas se tiver de criticar a seleção neste Europeu não vou deixar de o fazer. Pode ficar chateado, mas é a vida. As minhas críticas são sobre os aspetos técnicos, mas sei que já fui várias vezes injusto com algumas pessoas, apesar de não o ter feito de propósito, como é óbvio. Claro que quando criticas alguém sabes que essa pessoa pode ficar chateada. Ainda recentemente encontrei um árbitro que me disse que eu tinha dito muito mal dele. Perguntei: “Mas acha que esteve bem nesse jogo?” “Não, foi dos piores jogos da minha vida” (risos).

O que acha que o seu livro acrescenta ao futebol?

Documentei-me muito para explicar o fenómeno do futebol. Tento explicar por que razão a Holanda de 74 jogava naquele sistema, por que razão o Porto de Pedroto usava determinado sistema, etc. Li muitos livros e revi muitos jogos das diferentes décadas. No livro tento explicar algumas coisas do Pedroto, que foi um homem que esteve muito à frente do seu tempo, que ficou em primeiro lugar num curso de treinadores em França, nos anos 60, que foi o primeiro treinador a ganhar um campeonato da Europa, em 61, com uma equipa de juniores. Mas também conto alguns episódios curiosos que o Romeu, que era jogador do Pedroto, me contou: Num Sporting-Porto há um penálti e o Pedroto chamou o Romeu e disse-lhe que o Oliveira era capaz de bater o penálti para um lado e que o Vaz ia defender, mas que ele tinha de se posicionar em determinado espaço para fazer a recarga. E assim foi, e o Romeu, depois de marcar o golo, correu para o banco a dizer que o homem era bruxo!

Com o conhecimento todo que tem, não pondera ser treinador ou secretário técnico? Se um dos três grandes o convidasse, ponderava aceitar?

Não tenho essas pretensões, mas claro que ponderava. É cada vez mais improvável, mas é o mesmo que se me perguntassem se ponderava concorrer à Câmara do Porto ou de Matosinhos, claro que ponderava. Não sei o que me vai apetecer fazer daqui a dois anos. Hoje não penso nisso porque a RTP me proporciona fazer as três coisas de que mais gosto: moderar debates políticos, fazer comentários desportivos e apresentar noticiários. A minha empresa deixa-me fazer isso e ainda me incentiva. O que posso querer mais?

Mudando de assunto: também toca numa banda. Dão muitos concertos e ganham dinheiro com isso?

Sim, é um cantinho de prazer. Fazemos vários espetáculos, montados profissionalmente, apesar de sermos amadores. Tocamos em várias festas em várias localidades. Ainda há dois meses tocámos em Miranda do Corvo. Tocamos essencialmente memórias, músicas dos anos 80/90. No meio do espetáculo também contamos histórias com piada, mas é mais com o Ricardo.

Dizem que gosta de imitar o Rui Reininho.

Sim, é o meu pequeno pecado. É uma brincadeira.

Nasceu em Paredes, onde passou parte da infância. Do que se recorda?

Tive uma infância de grande proximidade familiar, com avós, pais e tios e com os meus dois irmãos. O mais velho morreu há quatro anos. Fui sempre um miúdo extrovertido, bem-disposto e que gostava, de certa forma, de palco, nomeadamente nas festas na escola. Era bom aluno, mas não era o menino certinho. Joguei hóquei em patins durante algum tempo até que entrei no futebol, onde fui até aos juniores.

Começou a ler jornais desportivos com que idade?

Em casa dos meus pais liam-se muitos jornais, o “JN”, “O Comércio do Porto”, “O Primeiro de Janeiro”. Recordo-me de em muito miúdo esperar pelo dia em que saía “A Bola”, o “Record” e a “Gazeta dos Desportos” e ir procurar aos ardinas se os jornais já tinham chegado no autocarro.

Desistiu dessa paixão de jogar porquê?

Porque entretanto fui para a faculdade, no Porto, além de que o bichinho da rádio já mexia, pois fazia alguns programas de música antes de me lançar nos relatos de futebol. Curiosamente comecei a fazê–los com as minhas coleções de cromos, imaginando jogadas de uns para os outros. Simulava transferências, jogadas, etc. Podemos dizer na brincadeira que inventei o football manager. A minha mãe costuma dizer que aprendi a ler aos quatro cinco anos com os tais cromos. Quando entrei na primária sabia juntar letras por causa dos nomes dos jogadores. Ainda guardo algumas dessas coleções mais antigas. Na rádio comecei a fazer relatos da equipa do Paredes, pois eles andavam à procura de alguém que tivesse jeito e sugeriram o meu nome. Fizemos um teste, colocando a equipa principal do Paredes contra as reservas, e fiz o relato. Gostaram e começou aí a minha carreira na rádio, isto com 16 anos. Em 1989 concorri à Rádio Comercial, já que havia um concurso público, e mandei uma cassete com relatos meus e outras brincadeiras que tinha feito na Rádio Paredes. Chamaram-me para uma entrevista e acabei por ficar. Estive lá um ano, pois a Antena Um convidou-me a seguir e aceitei. Foi um tempo fantástico, um miúdo de 19 anos a entrar numa redação e a conviver com pessoas que me habituei a ouvir na rádio e a ver na televisão. Ia para os estádios e fazia os relatos de que tanto gostava. Foram tempos magníficos. Depois fui para a TSF, onde também fazia relatos e participava nos programas desportivos, até que em 1997 a RTP me convidou para os quadros e aí deixei os relatos na TSF.

Recorda-se de algum episódio mais complicado em estádios de futebol?

Vivemos situações complicadas, pois nós fazíamos os relatos, nalguns dos estádios, no meio dos sócios da equipa da casa. Era muito difícil garantirem a nossa segurança. Não era fácil gritar golo da equipa adversária. Recordo-me de um Salgueiros-Porto, jogado no Estádio do Bessa, em que se decidia, salvo erro, a permanência do Salgueiros na primeira divisão ou o Porto ser campeão. Para infelicidade dos relatores, o Porto marcou um golo a cinco minutos do fim, o que significava praticamente a descida do Salgueiros. Imagine o que não foi o olhar e as atitudes dos adeptos do Salgueiros ao ouvirem-nos gritar o golo do Domingos. Como se explica aos adeptos da equipa da casa que temos de fazer a festa do golo? Ficámos praticamente sequestrados durante mais de meia hora. Estávamos a ver quando éramos agredidos fisicamente, mas felizmente não chegou a acontecer. Chegámos a ter de esperar que os sócios saíssem para podermos abandonar os estádios. Num Braga-Porto, à saída, os sócios do Braga abanavam o carro da equipa da rádio… Tivemos muitas situações dessas. Claro que, hoje, as condições são muito melhores e não se fazem relatos no meio dos sócios. Nessa altura da rádio já colaborava com a RTP. Para um miúdo de Paredes, tudo era fantástico. Dinheiro, sucesso, mas nunca fui de me deslumbrar…

Estava a fazer o curso de Sociologia e já tinha emprego. Lembra-se qual foi o primeiro ordenado?

Eu queria ir para Direito, mas não entrei por uma décima, e fui então para Sociologia. Creio que queria ir para Direito porque via a Margarida Marante e o Miguel Sousa Tavares na televisão e achava que o melhor curso para seguir jornalismo era o de Direito. No Porto ainda não havia um curso público de Jornalismo e o que existia não garantia licenciatura. Pensei então que o que se adaptava melhor ao que queria seguir era o de Sociologia. Mas nessa altura eu já trabalhava na Comercial, já ganhava o meu dinheiro. O primeiro ordenado que terei recebido foi na Rádio Paredes, pois pediram-me para trabalhar num mês de férias e deram-me 17 contos. Na Comercial tenho ideia de o primeiro vencimento ter sido de 40 contos. Depois passei para 90.

Nessa altura não deveria haver muitos estudantes na sua situação.

Não, mas eu, apesar de ter 19 anos e já estar na rádio, não era um deslumbrado nem um gastador. Felizmente, sempre tive uma vida desafogada, os meus pais sempre viveram bem, à custa de muito trabalho, pelo que o dinheiro não me deslumbrava. Claro que na faculdade não havia naquela altura muitos estudantes com carro. Eu tinha um Citroën Visa, dado pelos meus pais, mas depois comprei um com o meu dinheiro, um Citroën AX.

Na faculdade não era visto de outra forma por trabalhar na rádio?

Até ao terceiro ano, não. Os meus colegas que gostavam de futebol sabiam que eu fazia relatos, mas quando comecei a colaborar mais com a televisão, aí é que as coisas mudaram. Repare que estamos a falar numa altura em que ainda não havia televisão privada, portanto era normal que as pessoas todas vissem quem aparecia na RTP…

A fama trazia-lhe algumas vantagens… Era muito assediado na faculdade?

Digamos que tinha algum sucesso (risos). Costumo dizer que tinha um aspeto normal, mas a partir do momento em que passei a ter uma caixa à volta da cabeça, as coisas mudaram um pouco. Do que me orgulho é que fiz o curso sem perder uma disciplina e de ter tido uma média de 14 trabalhando na rádio e na televisão ao mesmo tempo. Normalmente, estava na rádio de manhã e na televisão à tarde, e ia às aulas nos intervalos da rádio e da televisão, onde era apenas colaborador e, por isso, não tinha trabalho todos os dias. Teria sido melhor aluno ainda podendo ir às aulas, mas foi possível fazer o curso com a leitura dos livros e de bons apontamentos que alguém me passava das aulas. Tinha colegas que me deixavam fotocopiar cadernos inteiros de apontamentos.

Começou a ter outro comportamento em público?

Talvez numa situação ou outra, mas nada de especial. Recordo-me é de ter sido convidado para apresentar o “Jornal da Tarde” precisamente na minha última Queima das Fitas… Não podia ficar mal, mas também não queria perder a festa… Por isso, na véspera dormi à tarde e acabei por me deitar um pouco mais cedo do que seria normal, mas correu tudo muito bem na apresentação do telejornal, que era e é o segundo noticiário mais importante da RTP. Comecei na semana em que o Ayrton Senna morreu, o que foi um turbilhão de notícias e de emoções. Tinha começado a colaborar com a RTP em 1991 e em 1994 convidaram–me para apresentar o “Jornal da Tarde”, mas só em 97 é que entrei para os quadros e aí tive de deixar a TSF, onde já estava há cinco anos. Pelo meio apresentei um programa da manhã na televisão, que foi uma experiência enriquecedora, mas que não me conquistou totalmente. Aquilo era muito entretenimento e eu tinha de dar uma vertente mais jornalística. Ao fim de seis meses desisti e fui ganhar bastante menos para a área de informação, onde era mais feliz.

Dois anos depois de entrar nos quadros da RTP vai para a SIC, mudando-se para Lisboa. Não sentiu muito a mudança?

Não, nunca me senti um jornalista regionalista e, como já conhecia bem Lisboa, até pelos vários trabalhos que tinha feito, adaptei-me muito bem à capital.

Mas há grandes diferenças?

Para mim é relativamente indiferente viver numa ou noutra cidade. O que marca a diferença é estar longe da família e dos amigos. O meu crescimento na SIC foi imenso, pois passei a lidar com uma realidade diferente, outro conceito.

Mas qual é a diferença entre uma televisão pública e uma privada?

Essencialmente, duas coisas: uma maior preocupação com as audiências por parte das privadas e uma maior proximidade entre colegas, pelo menos no que diz respeito às redações de Lisboa, pois nós no Porto, como somos menos, temos muita proximidade uns com os outros. Quando voltei à RTP levei comigo alguma dessa cultura da preocupação com as audiências. Era natural que na RTP isso não acontecesse tanto naquela altura, devido ao hábito de anos sem concorrência.

Chegou a dizer que a melhor decisão da sua vida profissional foi ter ido para a SIC, mas que ter regressado à RTP não foi seguramente uma grande decisão.

Não, eu não disse isso. O que afirmei foi que na vida profissional a única decisão que tomei e que não tenho a certeza de ter sido a melhor foi ter regressado à RTP, até porque não tenho o contrafactual. Não sei o que teria sido a minha vida se tivesse continuado na SIC, onde estava bem.

Regressou à RTP por razões monetárias?

Não, voltei muito mais pelas razões do projeto que me apresentaram. Era como se me estivessem a dizer que tinha condições e carta branca para escolher a equipa e pôr a redação a funcionar como achava que deveria ser, com as minhas ideias. E quando se tem 30 anos e se tem essa oportunidade, e sobretudo a ideia de que nada é irreversível, como ir para o Porto e pensar que poderia voltar para Lisboa dali a três anos, é fascinante. Além disso, voltei para a junto da minha família.

Liderou, portanto, o projeto da RTP N, herdeira da NTV.

A RTP N resulta da NTV, que funcionava ali paredes meias com a RTP mas muito autónoma, criada pelo Carlos Magno. Depois a redação da NTV acaba por ser absorvida pela RTP, aí eu já era subdiretor de informação do Porto e podemos dizer que fui um dos protagonistas da absorção de uma redação pela outra.

O N é de notícia mas toda a gente associava ao norte. Acha que é preciso uma estação de serviço público com um olhar do norte?

Nunca me pareceu fazer sentido haver um canal do norte do serviço público de televisão. Na RTP, como em tudo, há decisões e o que se tentou foi fazer uma evolução do N para as notícias, chegámos a ter spots no ar para que se tornasse o canal de informação da RTP que no fundo é hoje, com avanços e recuos. Depois sou diretor adjunto durante três anos da RTP N, entre 2008 e 2011 e era assumidamente já o canal de informação e com muitos programas que ainda hoje fazem parte da RTP 3.

Há uma frase sua que diz que não há notícias no horário nobre no Norte.

Está a perguntar isso num contexto e eu disse-o noutro. Mas as pessoas perguntam: “Mas porque é que faz o Jornal da Tarde e não faz o Telejornal?”. Já fiz jornais à noite na SIC e durante mais de um ano na RTP N, mas o jornal mais relevante que existe fora de Lisboa é o jornal da hora de almoço da RTP. Para um tipo que trabalha no Porto e que tem lá a sua carreira, apresentar esse jornal é relevante.

Mas gostava de apresentar o Telejornal.

Já apresentei muitas vezes e acho que não correu mal. Não estou a dizer que não quero, mas sinceramente prefiro hoje apresentar um debate político como tenho feito, como nas noites eleitorais, congressos, campanhas, prefiro isso. Ou seja, que a empresa me permita continuar a apresentar noticiários sem ser necessariamente o Telejornal mas que me permita fazer outras coisas sem ter necessariamente de apresentar o Telejornal. Mas é verdade que nunca fui convidado. E isto não é mágoa nenhuma, com a mesma facilidade que digo que não é aquilo que mais anseio também é um facto que isso nunca se colocou dentro da RTP. O único convite que tive para vir fazer noticiários à noite para Lisboa foi da SIC e vim.

Então viria se o convidassem da RTP?

Não tenho a certeza, dependeria muito do contexto. Não excluo de forma nenhuma mas também não posso dizer que vinha a correr porque não é verdade.

Como vê a queda das audiências dos canais de informação da RTP?

Para ser sincero, tenho estado um pouco mais distante de alguns números e não quero entrar muito por aí. Para já os canais são liderados por pessoas que estimo, meus colegas de trabalho e que estão a fazer o melhor. Sobre isso digo sempre a mesma coisa: a RTP quando faz audiências perde qualidade, e quando ganha qualidade perde audiências. Quando faz números, as pessoas dizem mal porque se tornou comercial, e quando faz qualidade perde números, e critica-se por se tornar menos relevante. Temos um tipo de público específico no contexto europeu, que tem uma adesão ao fenómeno telenovela que é incomum no espaço europeu e que condiciona a programação, sobretudo ao nível dos canais generalistas. Em relação aos canais de notícias acredito que a RTP está alinhada com o que deve ser o serviço público de televisão correndo o risco de não ir atrás de alguns temas sensacionalistas, que claramente estão a entrar muito mais nos canais de informação do que entravam há dez anos.

Em 2011 achava que era possível a RTP N ultrapassar a SIC Notícias. Hoje vemos a RTP 3 com uma audiência residual. Acha que a CMTV está a levar outros canais para um caminho que a RTP não pode entrar?

Sim, em boa medida sim. Que não pode entrar não, que não deve. Poder pode sempre. A CMTV é um canal que merece todo o respeito mas é um canal diferente dos outros canais de notícias pois inclui telenovelas e filmes eróticos: Respeitando essa opção empresarial, acho que a RTP não pode por telenovelas e filmes eróticos e isso em termos de audiência é relevante. A CMTV provavelmente faria também uma audiência forte sem isso, mas a verdade é que tem.

Acha que os outros canais já estão a seguir o mesmo caminho?

Eventualmente. Não quero ser injusto porque não vejo todos tantas vezes como queria, nos últimos meses não tenho visto até por via do livro que escrevi — vejo muito o que sou obrigado a ver, como debates políticos de atualidade e nem sempre ligo muito às grelhas de programação.

Que espaço é que sobra para a RTP com os outros canais a apertar?

A ideia do serviço público em televisão e de determinados programas de televisão. O serviço público é um contrato que se estabelece entre uma empresa e os cidadãos de um país que pagam esse serviço, e a expectativa é que esse serviço seja referência de alguma coisa. Se acreditas que podes ser referência ao nível do debate político, do debate desportivo, do tipo de alinhamento de notícias, do tipo de assuntos que cobres, da forma como aborda determinados assuntos, não tenho dúvidas que a RTP 3, neste caso, mas numa linha de coerência com os outros canais da empresa, pode marcar a diferença e continuar a ter público. Diz-me assim: “Pode não ter a capacidade de ser líder como tu supunhas há algum tempo? A CMTV não tinha surgido nem estava para surgir, a TVI 24 não estava inundada de futebol no seu horário noturno e naquela altura, eu estava na direção e recordo isso com alguma graça, foram os melhores momentos em termos de números do canal de notícias da RTP. Era possível pensar nisso, o caminho depois mudou, seguiu-se outro rumo. Na altura dizia-se muito que o problema do canal de notícias da RTP era ter a direção no Porto, a verdade é que a direção passou a estar em Lisboa e até hoje os números não melhoram substancialmente em função disso e portanto acho muitas vezes que as desculpas fáceis levam a más conclusões. É sempre fácil dizermos “como é que um canal de informação não pode ser dirigido no Porto?” Não, um canal de informação não pode é ser feito no Porto. Dirigido, com a capacidade de comunicar que tu tens hoje é possível. Um administrador da RTP perguntava há já uns anos “Porquê que o Jornal da Tarde tem de ser feito no Porto?” e eu respondia: “Porquê que o telejornal tem de ser feito em Lisboa?”. Se o local onde está o apresentador não interfere nos alinhamentos, qualquer telejornal pode, em tese, ser apresentado num sítio qualquer. Acredito é que se há uma justificação que me parece indiscutível para a existência do serviço público é a presença relevante fora do principal centro, que é Lisboa. A capital tem esse peso específico, mas o que é normal é que o serviço público compense e vá à procura de alguma coesão territorial para afirmar outros protagonistas, outras realidades e não só apenas aquelas que surgem em Lisboa.