Preferia não o fazer


Uma página em branco é a exibição de alguma coisa que pode ser escrita.A cópia pode ser a convocação de um original e misturar citações é difícil


Há uns anos trabalhava eu numa fábrica de revistas cujo proprietário devotava uma adoração sem limites a certa publicação brasileira. Tal era essa identificação que o homem mandava copiar até as próprias capas da capitosa revista para as reproduzir nas suas. Uma vez mandou plasmar a capa da própria semana da publicação em questão, criando algum zunzum no meio, até porque, como é natural, a revista original vendia-se em muitos quiosques em Portugal. O diretor de turno, cumpridor e um pouco incomodado, mandou um email a desculpar-se pelo sucedido. Do outro lado veio uma resposta pronta: “Não faz mal, nós próprios copiamos de uma revista dos ‘Estates’, e já ouvi dizer que eles tinham também copiado de uma outra. Para falar verdade, ninguém ainda descobriu quem foi o autor da ideia original, mas se você encontrar me avisa.”

Sempre achei que não há originais sem cópia e que o que é preciso é copiar bem e as vezes suficientes para nos enganarmos e tropeçarmos num original. Enrique Vila–Matas, no seu “Bartleby & Companhia”, encarna um narrador que tinha deixado de conseguir escrever “originais”, porque tinha deixado de conseguir copiar. Na sua juventude tinha escrito um pequeno romance sobre a impossibilidade do amor e, devido a um trauma familiar decorrente dessa publicação, tinha abandonado a escrita: “Renunciei radicalmente a fazê-lo, tornei-me um bartleby [assim mesmo em minúsculas, Bartleby, o copista, retratado por Herman Melville, que dizia sempre “preferia não fazer”].” E acrescenta algumas páginas depois o autor: “Este incidente deixou-me tão deprimido que estive 25 anos sem escrever nada. Há pouco tempo (…) li um livro que me ajudou a reconciliar-me com a condição de copista. Acho que o riso e o gozo que me proporcionou a leitura do ‘Instituto Pierre Menard’ me ajudou a preparar o terreno para a minha decisão de cancelar o velho trauma e voltar a escrever. ‘Instituto Pierre Menard’, romance de Roberto Moretti, é ambientado num colégio em que ensinam a dizer ‘não’ a mais de mil propostas, desde a mais disparatada até a mais atraente e difícil de se recusar. Trata-se de um romance com toques de humor e uma paródia muito engenhosa do Instituto Benjamenta de Robert Walser. De fato, entre os alunos do instituto encontram-se o próprio Walser e o escrevente Bartleby. Quase nada acontece no romance, exceto que, ao concluírem seus estudos, todos os alunos do Pierre Menard saem dali convertidos em consumados e alegres copistas.”

Em busca pelo Google, para confirmar este romance de Roberto Moretti com um nome que faz alusão ao conto de Borges “Pierre Menard, autor del Quijote”, dou no blogue Pulsão Negativa, com o post “Roberto Moretti”: “Uma busca no Google encontra várias pessoas com o nome Roberto Moretti (um escultor, um ciclista, um epidemiólogo, etc.), mas aparentemente nenhum escritor. A livraria Amazon tampouco tem um autor com este nome em seu catálogo. Estaríamos perante o primeiro dos cinco farsantes do livro (Vila-Matas disse numa entrevista que ‘en Bartleby hay cinco autores y cinco libros inventados que pasan por reales’)?” 

Recorro neste estranho caso em que o original copiado não existe a uma entrevista que fiz a Manuel António Pina em que ele cita alguém em busca dessa pedra- -de-toque entre o real e a fantasia: “Joaquim Manuel Magalhães, ao falar do regresso ao real, disse: ‘Mas há alguma coisa que não seja real? Tudo é real. O problema é que há muitas realidades. O sonho é tão real como estar acordado.’”

Se não fazemos mais nada que copiar, mesmo que copiemos aquilo que não existe, o que torna criador este ato de escrever? Giorgio Agamben, no seu “Bartleby, Escrita da Potência”, vem recuperar o cabalista árabe, Abraham Abulafia: “A criação divina é concebida como um ato de escrita, na qual as letras representam, por assim dizer, o veículo material através do verbo criador de Deus.” A criação do mundo seria um ato de inteligência divina que se pensa a si mesma. “Na tradição árabe posterior, a criação foi, por isso, assimilada a um ato de escrita”, sendo o agente o anjo da Pena (Qalam). A passagem do inexprimível ao exprimível e a criação da potência ao ato que transforma uma folha branca em algo com sentido são feitas por “uma letra da qual tu és o sentido”, segundo dizem estes cabalistas, garante Agamben. 

Eu, copista, me confesso. Quando leio algo que me agrada, sinto que já cá estava antes de o ter lido, como se fosse meu. No fundo, aquilo que escrevo não passa de cópias de cujos autores não me lembro. A esse respeito sigo a “Espuma dos Dias”, sobretudo num texto feito de citações, ao calhas, de três livros, e complementadas com outras para lhes dar a aparência de um sentido mínimo. É uma espécie de “cadavre exquis” dos surrealistas.

“Na vida, o essencial é emitirem-se opiniões a priori a propósito de tudo. Efetivamente, bem se vê que as massas erram e os indivíduos têm sempre razão. É forçoso que a tal respeito nos abstenhamos de deduzir regras de conduta: para serem seguidas, estas não devem ter necessidade de ser formuladas. Existem apenas duas coisas: o amor, de todas as maneiras, com raparigas belas, e a música de Nova Orleães ou Duke Ellington. O resto deveria desaparecer, porque o resto é feio, e as poucas páginas de demonstração que se seguem vão buscar toda a força ao facto de a história ser inteiramente verdadeira, já que a imaginei de uma ponta à outra. A sua realização material, propriamente dita, consiste de uma forma essencial na projeção da realidade, em atmosfera rebatida e aquecida, sobre um plano de referência irregularmente ondulado e apresentando distorção. Como se vê, um processo confessável, a havê-los.” – Boris Vian, 10 de março de 1946.

Jornalista


Preferia não o fazer


Uma página em branco é a exibição de alguma coisa que pode ser escrita.A cópia pode ser a convocação de um original e misturar citações é difícil


Há uns anos trabalhava eu numa fábrica de revistas cujo proprietário devotava uma adoração sem limites a certa publicação brasileira. Tal era essa identificação que o homem mandava copiar até as próprias capas da capitosa revista para as reproduzir nas suas. Uma vez mandou plasmar a capa da própria semana da publicação em questão, criando algum zunzum no meio, até porque, como é natural, a revista original vendia-se em muitos quiosques em Portugal. O diretor de turno, cumpridor e um pouco incomodado, mandou um email a desculpar-se pelo sucedido. Do outro lado veio uma resposta pronta: “Não faz mal, nós próprios copiamos de uma revista dos ‘Estates’, e já ouvi dizer que eles tinham também copiado de uma outra. Para falar verdade, ninguém ainda descobriu quem foi o autor da ideia original, mas se você encontrar me avisa.”

Sempre achei que não há originais sem cópia e que o que é preciso é copiar bem e as vezes suficientes para nos enganarmos e tropeçarmos num original. Enrique Vila–Matas, no seu “Bartleby & Companhia”, encarna um narrador que tinha deixado de conseguir escrever “originais”, porque tinha deixado de conseguir copiar. Na sua juventude tinha escrito um pequeno romance sobre a impossibilidade do amor e, devido a um trauma familiar decorrente dessa publicação, tinha abandonado a escrita: “Renunciei radicalmente a fazê-lo, tornei-me um bartleby [assim mesmo em minúsculas, Bartleby, o copista, retratado por Herman Melville, que dizia sempre “preferia não fazer”].” E acrescenta algumas páginas depois o autor: “Este incidente deixou-me tão deprimido que estive 25 anos sem escrever nada. Há pouco tempo (…) li um livro que me ajudou a reconciliar-me com a condição de copista. Acho que o riso e o gozo que me proporcionou a leitura do ‘Instituto Pierre Menard’ me ajudou a preparar o terreno para a minha decisão de cancelar o velho trauma e voltar a escrever. ‘Instituto Pierre Menard’, romance de Roberto Moretti, é ambientado num colégio em que ensinam a dizer ‘não’ a mais de mil propostas, desde a mais disparatada até a mais atraente e difícil de se recusar. Trata-se de um romance com toques de humor e uma paródia muito engenhosa do Instituto Benjamenta de Robert Walser. De fato, entre os alunos do instituto encontram-se o próprio Walser e o escrevente Bartleby. Quase nada acontece no romance, exceto que, ao concluírem seus estudos, todos os alunos do Pierre Menard saem dali convertidos em consumados e alegres copistas.”

Em busca pelo Google, para confirmar este romance de Roberto Moretti com um nome que faz alusão ao conto de Borges “Pierre Menard, autor del Quijote”, dou no blogue Pulsão Negativa, com o post “Roberto Moretti”: “Uma busca no Google encontra várias pessoas com o nome Roberto Moretti (um escultor, um ciclista, um epidemiólogo, etc.), mas aparentemente nenhum escritor. A livraria Amazon tampouco tem um autor com este nome em seu catálogo. Estaríamos perante o primeiro dos cinco farsantes do livro (Vila-Matas disse numa entrevista que ‘en Bartleby hay cinco autores y cinco libros inventados que pasan por reales’)?” 

Recorro neste estranho caso em que o original copiado não existe a uma entrevista que fiz a Manuel António Pina em que ele cita alguém em busca dessa pedra- -de-toque entre o real e a fantasia: “Joaquim Manuel Magalhães, ao falar do regresso ao real, disse: ‘Mas há alguma coisa que não seja real? Tudo é real. O problema é que há muitas realidades. O sonho é tão real como estar acordado.’”

Se não fazemos mais nada que copiar, mesmo que copiemos aquilo que não existe, o que torna criador este ato de escrever? Giorgio Agamben, no seu “Bartleby, Escrita da Potência”, vem recuperar o cabalista árabe, Abraham Abulafia: “A criação divina é concebida como um ato de escrita, na qual as letras representam, por assim dizer, o veículo material através do verbo criador de Deus.” A criação do mundo seria um ato de inteligência divina que se pensa a si mesma. “Na tradição árabe posterior, a criação foi, por isso, assimilada a um ato de escrita”, sendo o agente o anjo da Pena (Qalam). A passagem do inexprimível ao exprimível e a criação da potência ao ato que transforma uma folha branca em algo com sentido são feitas por “uma letra da qual tu és o sentido”, segundo dizem estes cabalistas, garante Agamben. 

Eu, copista, me confesso. Quando leio algo que me agrada, sinto que já cá estava antes de o ter lido, como se fosse meu. No fundo, aquilo que escrevo não passa de cópias de cujos autores não me lembro. A esse respeito sigo a “Espuma dos Dias”, sobretudo num texto feito de citações, ao calhas, de três livros, e complementadas com outras para lhes dar a aparência de um sentido mínimo. É uma espécie de “cadavre exquis” dos surrealistas.

“Na vida, o essencial é emitirem-se opiniões a priori a propósito de tudo. Efetivamente, bem se vê que as massas erram e os indivíduos têm sempre razão. É forçoso que a tal respeito nos abstenhamos de deduzir regras de conduta: para serem seguidas, estas não devem ter necessidade de ser formuladas. Existem apenas duas coisas: o amor, de todas as maneiras, com raparigas belas, e a música de Nova Orleães ou Duke Ellington. O resto deveria desaparecer, porque o resto é feio, e as poucas páginas de demonstração que se seguem vão buscar toda a força ao facto de a história ser inteiramente verdadeira, já que a imaginei de uma ponta à outra. A sua realização material, propriamente dita, consiste de uma forma essencial na projeção da realidade, em atmosfera rebatida e aquecida, sobre um plano de referência irregularmente ondulado e apresentando distorção. Como se vê, um processo confessável, a havê-los.” – Boris Vian, 10 de março de 1946.

Jornalista