Coma. “Enquanto isso, eu escrevo. Para quando ele acordar”

Coma. “Enquanto isso, eu escrevo. Para quando ele acordar”


O irmão de Bettina Bopp. Itamar, está em coma há mais de uma década. Há dois anos, a professora criou um blogue onde conta ao irmão o que se passa na família. As publicações são lidas em 120 países


Bettina Bopp é professora num colégio e também dá aulas de inglês, para além de escrever peças de teatro e guiões. Bettina Bopp é brasileira, paulista. Há 11 anos o seu irmão Itamar tinha 41. Ita  [o petit nom usado pela irmã]  trabalhava no comércio automóvel quando se sentiu mal, com dores de cabeça e de peito. Ainda foi até ao hospital, onde teve um enfarte seguido de uma longa paragem cardíaca. Durante 40 minutos os médicos tentaram reanimá-lo. “Por causa da baixa qualidade de oxigenação cerebral por tanto tempo, Ita entrou em estado vegetativo persistente”, conta Bettina ao i. Itamar ainda está entre nós. Mas está há onze anos em coma. Hoje tem 52 anos, mais um do que a irmã. E, segundo os médicos, é impossível prever se irá acordar.

Bettina acredita nisso, por isso criou um blogue onde, através das palavras de que tanto gosta, conta ao irmão tudo o que vai acontecendo na família. O nome escolhido para o blogue é simples. Tão simples como os pequenos grandes prazer da vida, quase sempre os melhores. Tão simples que magoa em igual medida à esperança que anuncia, mesmo para quem não conhece Itamar, ou sequer Bettina. O blogue desta irmã que espera há mais de uma década chama-se “Pra quando você acordar”.

“Eu sentia que precisava lidar de forma diferente com o turbilhão de sentimentos que passei a viver depois do que aconteceu com o Ita. Encontrei, no blogue, a possibilidade de me afastar dele sem culpa. Abri mão do contacto tão próximo e comecei a escrever”, explica. O diário online começou a ser escrito há mais de dois anos: no primeiro post, Bettina conta algo tão corriqueiro como o facto de ter um gato. “Você não vai acreditar, mas eu tenho um gato! Eu sei, ter gatos não parece com a gente, nunca ninguém teve gato na nossa família, não está no nosso DNA! Mas eu tenho. Há sete anos! Desde um pouco depois que você dormiu [sic]”, escreveu a professora. Ao i explicou o critério das partilhas que vai fazendo. “Resolvi que colocaria em palavras tudo o que estava vivendo, como se fossem as conversas que teria com meu irmão se ele estivesse acordado. Conto tudo para ele: as novidades da família, a situação do Brasil, sobre os amigos que me encontram e perguntam por ele, sobre como tanta coisa mudou desde que ele dormiu. Às vezes apenas jogo conversa fora. Às vezes desabafo minha dor”.

Cada vez mais testemunhamos a internet e as redes sociais como meio de afastamento, com as relações virtuais a sobrepor-se às pessoais. Mas também é verdade que, quando alguém parte ou, como Itamar, vive num limbo, partilhar vivências com o mundo, ainda que de forma simbólica, é uma forma de catarse.

“Ajuda-me muito a matar as saudades. O blogue permitiu-me viver sem culpa. Converso com ele pelo blogue e assim sinto o Ita mais presente para mim. É como se as nossas conversas pudessem fazê-lo viver fora das quatro paredes do quarto. Como se ele pudesse conhecer o mundo e vivenciar as coisas quotidianas”, conta Bettina.

Itamar vive em casa da mãe, em São Paulo, com cuidados médicos domiciliares permanentes. E o blogue, que é no fundo uma plataforma para que esta família chegue para alguém que está tão perto e tão longe, tem sido  uma terapia para todos. “Recebo muito apoio dos meus filhos, da minha mãe e do Fabio, meu outro irmão. Todos acompanham semanalmente o blogue e os meus filhos já escreveram algumas conversas também. Meus amigos e amigos do Ita elogiam muito e também acreditam ser uma forma de senti-lo mais perto”.

Escrever nem sempre é fácil, muito menos quando as novidades não são boas. Para Bettina há um texto que custou mais do que os outros. “Por exemplo, contar-lhe [ao Ita] sobre a morte do nosso pai, cinco anos depois dele entrar em coma, acho que foi especialmente difícil”.

Entretanto, o blogue “Pra Quando Você Acordar” tem milhares de visualizações e a autora recebe cada vez mais retorno dos leitores. “Surpreendem-me muito as manifestações de carinho que recebo. Elas vêm em forma de mensagens, orações, partilhas dos textos… Uma corrente de energia positiva das pessoas que me acompanham e me escrevem, seja porque estão passando por algo parecido ou simplesmente porque me desejam o bem”. E quem lhe deseja o bem está espalhado, literalmente, pelo mundo inteiro: as publicações são lidas em mais de 120 países.

Ainda assim, Bettina não tem ilusões sobre o futuro – que crê incerto -, mas admite que escrever lhe dá esperança. “É uma maneira de colocar a dor para fora, de organizar as minhas ideias. Trouxe-me paz, permitiu-me viver novamente”. No entanto, assume que a dor da situação continua a pesar. Ainda choro muito quando lembro que aquele Itamar que eu tanto amei não está mais aqui. Mas a alma, a essência dele está aqui, em algum lugar”.

A forma como encara um processo tão complexo como o coma de um familiar tão próximo tem mudado, no entanto, com o passar dos anos. “Antes, queria que ele voltasse, porque, afinal, isso seria o melhor para mim. Mas quem disse que seria o melhor para ele? Hoje já consigo pensar que quero que ele volte se isso for o melhor para ele – e se ele quiser. Enquanto isso, eu escrevo. Para quando ele acordar”.