Podia passar-se num futuro próximo distópico esta primeira parte da tetralogia “O Nosso Desporto Preferido” de Gonçalo Waddington, que estreia hoje às 21h00 no Teatro Nacional D. Maria II, se não estivéssemos a ler o título, “Presente”. Será por isso presente este tempo em que um grupo de humanos fechado não sabemos bem há quanto tempo num laboratório também não sabemos bem onde faz uma investigação e experiências para tentar dar continuidade à sua espécie numa fase em que, de acordo com o caminho natural da evolução, se transita de uma civilização tipo zero para uma civilização tipo I. Uma investigação em nome da qual estarão dispostos a abdicar de muito, não de tudo, especialmente não do seu desporto preferido, que só a seguir vamos descobrir qual é.
Temos então uma mesa com quatro cadeiras de frente mais uma à cabeceira, Última Ceia futurista-totalitária em que vem o líder da investigação sentar-se ao centro. Continuamos sem perceber onde estamos, não saberemos nunca afinal, no fim tudo se resume ao badminton. Não estranhemos por isso se Gonçalo Waddington nos diz que andava a ler “O Arco-Íris da Gravidade” quando começou a preparar esta peça, que é possível que haja qualquer coisa de Pynchon nisto. Como um homem que já foi polvo e que se transforma em cão se disser “não”.
“Ele disse não”, não se pode dizer não, pode? Talvez seja tudo um bocado mais arbitrário do que parece. Talvez não. Propõe então o cientista que lidera a investigação (Pedro Gil) que se trabalhe para a criação de uma espécie humana livre de necessidades básicas como a alimentação ou a digestão – entretanto já foi preciso abdicar de tudo o que não era absolutamente indispensável à investigação, a investigação que é o barco onde estão todos juntos e pelo mesmo, esse “laboratório de Noé” – ou até mesmo “toda e qualquer prática sexual”, coisa considerada uma afronta, mas para quê procriar se são estes cinco humanos fechados num laboratório (será mesmo um barco?) os últimos da sua espécie.
Mas entre disputas há que aguardar pelo que ainda vem porque há uma experiência que a crescer na barriga de um deles (Carla Maciel), a quem podíamos dar um nome mas não vamos porque há muito que não há nomes aqui. “Há quanto tempo não ouvem o vosso nome? Eu esqueci-me do meu.” Uma obsessão com o eu e com palavras num lugar em que não só há homens que foram polvos como cadeiras que falam e querem pode sentir, “deixar de ser metáfora”.
Civilização tipo I O Presente em que se encontram estes últimos humanos é o tempo em que se transita para a civilização tipo I, de acordo com a escala estabelecida pelo astrofísico russo Nikolai Kardashev. “Uma civilização tipo I é uma civilização que deixa de extrair energia dos combustíveis fósseis, uma civilização que consegue prever e alterar, proteger-se, no fundo, dos os fenómenos meteorológicos, uma civilização que tem uma língua comum apesar de continuarem a existir as línguas de todos os países. Se repararmos, por este tipo de descrição estamos a entrar nesta fase. Se alguém nos viesse visitar à Terra saberia ‘há uma língua comum que eles falam todos’ e depois os ditos regionalismos: o português e o chinês, tendo em conta o tamanho do cosmos”, explica Gonçalo Waddington sobre o que esteve no princípio de “O Nosso Desporto Preferido”, no Teatro Nacional D. Maria II até sábado e a 17 de junho no Rivoli, no Porto. “Agora estamos na fase mais complicada de todas, que é a transição do tipo zero para o tipo I. Nós nem I somos. E há indícios mas às vezes vemos recuos, como por exemplo esta história de quererem fazer perfurações petrolíferas no Algarve.”
Badminton ou sexo? No final vai dar tudo ao badminton, já dissemos, pelo menos enquanto não houver outros avanços civilizacionais, pelo menos enquanto as palavras ainda forem estas. E a não ser que o desporto preferido seja afinal o sexo. Ou tudo o que tiver competição, até a linguagem. “Interessa-me entrar pela questão mais irónica e sarcástica de outra coisa que é a própria linguagem, porque o teatro é linguagem, a linguagem é a base de tudo, a base do processo civilizacional. Por isso é que há uma personagem [o líder da investigação] que tenta falar tão rebuscadamente. Mais tarde vamos perceber que a preocupação dele é que isso não se perca no futuro. Que não se perca a beleza da poesia, a elegância do discurso, quando ele próprio já se deixa por aquelas outras pessoas que gostam de dizer umas asneiras e falam de coisas muito básicas como a vida sexual delas.”
Qualquer desporto será útil perante o cenário de um presente que é todo ele uma enorme pausa. “A verdade é que eles estão fechados ali e eles são os únicos. A brincadeira disto é tentar perceber que aqueles gajos são a última amostra dos seres humanos e eles próprios apercebem-se que não são um número suficiente para sobreviver. Que mesmo que tenham filhos entre eles isso só vai servir para adiar uma coisa que é inevitável que é o nosso fim. Portanto o melhor é acabarmos já.”