Orange Is The New Black. Esqueçam o livro, vejam a série

Orange Is The New Black. Esqueçam o livro, vejam a série


No próximo dia 17 estreia, na Netflix, a quarta temporada de “Orange Is The New Black”, a série inspirada no livro escrito por Piper Kerman.


O cinema norte-americano de massas tem, infelizmente, vindo a definhar. Entre readaptações, sequelas e os imensos tentáculos do dinheiro da Disney, a indústria cinematográfica tem procurado demonstrar vitalidade à custa do seu passado, cada vez mais abastardado por um revivalismo pouco exigente.

Sem uma memória histórica remota, o espírito americano sempre pareceu capaz de criar costumes e tradições naquilo a que a longuíssima história europeia chamaria um breve instante. Contudo, se olharmos para a forma como o cinema dos anos zero e dez tem revisitado e reinterpretado o seu passado, até mesmo o mais recente, ficamos claramente com a ideia de que essa capacidade se está a esgotar. “Boyhood”, de Richard Linklater foi, em muito tempo, a única obra verdadeiramente original produzida em solo norte-americano.

É impressionante que isto aconteça ao mesmo tempo que uma geração de realizadores brilhantes como Wes Anderson, Darren Aronofsky, Paul Thomas Anderson ou Harmony Korine se tem vindo a solidificar, quase sempre arredada dos prémios mais apetecíveis, provando como acertadíssimas as palavras de Sick Boy em “Trainspotting” quando, em relação aos Óscares, diz apenas “that means fuck all”.

A televisão, pelo contrário, parece percorrer um outro caminho. Em tempos era fácil e rápido nomear as séries que, em qualidade e investimento, eram capazes de rivalizar com as suas contrapartes no cinema. Isto criava uma nítida barreira entre o que era o dinheiro, os atores e os realizadores de televisão e o que eram os mesmos no cinema.

Hoje em dia esta barreira faz cada vez menos sentido, não só porque cada vez mais encontramos grandes atores de cinema entre os elencos das séries mas principalmente porque a qualidade geral das séries de televisão é hoje um dado a ter em conta. “Mad Men”, “Breaking Bad”, “House of Cards”, “Fargo”, “Transparent” e “Horace and Pete” são apenas alguns exemplos de séries que, neste momento, se sobrepõem a praticamente tudo o que é produzido em cinema.

Mesmo num campeonato em que a televisão tem já uma certa tradição, as séries de tribunal, o último ano legou-nos “American Crime Story: The People vs. OJ Simpson” que é só a melhor filmagem de um julgamento a ter passado num ecrã, capaz de traduzir na perfeição os tempos e as tensões de uma sala de audiências como nem os melhores filmes do género alguma vez conseguiram. “Orange Is the New Black”, não estando talvez ao nível das anteriormente nomeadas, faz ainda parte desta leva de séries.

Contudo, como acontece tantas vezes, e ao contrário do mito absurdo de que o livro é sempre melhor do que o filme/série (o que David Fincher e Danny Boyle, por exemplo, já provaram estar completamente errado), a adaptação é incomparavelmente melhor que o livro. Nas séries, ao contrário do que acontece com o cinema, o papel de destaque, isto é, a ideia condutora da obra, pertence ao argumentista. Um caso paradigmático pode ser aqui citado para ilustrar esta ideia. Joseph Stefano, produtor e coargumentista de “Outer Limits”, foi um dos principais responsáveis pelo sucesso de “Psycho”, tendo um papel preponderante naquilo que viria a ser a versão final do argumento.

Contudo, no recente filme sobre Hitchcock, com Anthony Hopkins no papel do grande realizador, a importância de Stefano no filme é reduzida a uma breve referência e, por mais escandalosa e inexata que esta espécie de omissão tenha sido, pouca gente pareceu importar-se.

Aquilo que torna “Orange Is The New Black” uma série a seguir tem tudo a ver com o trabalho de Jenji Kohen, o argumentista, e do competentíssimo elenco e muito pouco a ver com o material original.

“Orange Is The New Black: O Ano Que Passei Numa Prisão de Mulheres”, de Piper Kerman, conta a história de uma licenciada mediana que, presa nas trivialidades da classe média, parte para uma curtíssima vida de crime – justificada apenas na pura rebeldia –, a qual, três anos mais tarde, a colocará num estabelecimento prisional.

O livro pretende ser uma memória dos meses de detenção e uma visão antropológica da população feminina encarcerada, tudo proporcionado pelo completo fosso financeiro, intelectual e familiar entre a autora e as suas colegas de choldra. Vendido como um relato profundo e fidedigno de uma experiência pessoal, numa tensão permanente entre trágico e cómico, capaz de traduzir os códigos e as hierarquias próprias do mundo prisional feminino, talvez cumpra aqui alertar o leitor para que, no final, pior do que parecer pouco fidedigno, na verdade tudo parece muito pouco verosímil. Da mesma forma que, na série, o humor e o exagero logram produzir retratos que, mesmo fantasiosos, têm um significativo valor humano, o ambiente criado no livro parece uma união diabólica entre uma prisão e o “Feiticeiro de Oz”.

O grande problema deste livro está no seu propósito: Piper Kerman atravessa toda uma experiência prisional demonstrando a capacidade de aprendizagem e empatia próprias de uma princesa da Disney, anulando em embrulhos absurdos praticamente todas as histórias de valor humano que à sua volta vão acontecendo e, pior que tudo, exagerando a sua pequena história de rebeldia, ficando, no final, a ideia de que a autora olha para o enorme desvio que a sua condição de detida significou como o resultado de uma rebeldia não muito diferente de quem, aborrecida com os parâmetros de comportamento próprios da classe média, envereda pelo sadomasoquismo.

O que Piper Kerman logra com este livro explora mais ou menos os mesmos meandros que atraem quem quer que seja para a leitura de E. L. James.