Mudar a escola – um desafio ao ministro da Educação, ao CNE e, no fundo, a todos os cidadãos, para descobrirmos “o espaço azul entre as nuvens”


Escrever, ler e contar fazia sentido como objetivo escolar para a burguesia dos séculos XVIII e XIX. Hoje, com a revolução tecnológica, social e a autenticidade de valores, já passámos a fase de o ser humano ser apenas um “androide melhorado”. Fica o humilde desafio: coragem! Revolucionem a escola, fazendo dela um centro de ensino/aprendizagem…


Está a acabar o ano letivo. Gabamo-nos (e bem) de termos cada vez mais crianças e adolescentes no sistema educativo. Devemos agradecer à democracia o facto de as crianças poderem frequentar a escola porque terão mais hipóteses de se realizar no conjunto, que são, de cidadãos, profissionais e seres humanos.

A escola, por ser um fenómeno tão grande, coloca-nos problemas de consciência, filosóficos, conceptuais e práticos. Todavia, questioná-la é quase um tabu. A escola parece intocável, e professores, auxiliares, alunos e pais descartam-se de responsabilidades, atribuindo sempre a culpa aos “outros”.

Para quê a escola?, dá vontade às vezes de perguntar. Para quê, se as crianças são tão felizes a ver televisão e a brincar com os iPads e consolas? Será que as escolas se transformaram, afinal, em “infantários com garantia de 12 anos”?

Durante décadas, ou mesmo séculos, ser “instruído” era saber ler, escrever e contar. Tudo isto basicamente para não se ser enganado nos negócios e ter mais acesso ao poder. Nos séculos xviii e xix, e até no xx, quem precisava da escola era a burguesia. Havia também a questão do poder – quem fosse culto influenciava os destinos da nação – e o clero soube compreender isso, e sagazmente acarinhou (e acarinha!) sistemas de ensino. Os nobres eram, na maioria, iletrados e não é por acaso que o primeiro rei de Portugal alfabetizado foi D. Dinis. Aliás, como o conde de Lippe disse, no século xviii: “Sargento, aprenda a ler, porque o mais provável é os seus oficiais superiores serem nobres e, portanto, não o saberem.” No ensino se fabricaram as revoluções e o livre pensamento iluminista, mas sempre a partir dos jovens burgueses que a ele tinham acesso.

Aterrámos no século xxi, em que as coisas são diferentes. O ser humano evoluiu muito, não na sua matriz fisiológica e antropológica, mas no que se espera do seu desempenho. A revolução tecnológica veio impor que se questione tudo, que se repense muito e que se mude outro tanto.

Escrever, ler e contar? Onde isso vai! Com androides, robôs, internet e outras tantas coisas, o sistema de educação tem de mudar para ser de ensino/aprendizagem, onde todos, docentes, alunos e auxiliares, pais, se sintam melhorados dia-a-dia, gostem do local onde estão, se emocionem com o que aí acontece, se transcendam como seres humanos, socializem, aprendam a relacionar-se com o próximo, com respeito e cidadania, desenvolvam a solidariedade, a empatia, a preocupação com os demais, e domem o monstro egoísta e omnipotente que há em si, aprendendo as várias facetas exclusivas do ser humano, das ciências às humanidades, da tecnologia às artes, da música ao desporto e ao exercício físico, da filosofia à leitura, do simplesmente estar à atividade mais febril. Onde todos sintam ser “ricos de si mas pobres do outro”. Onde deem a mão à cultura, à estética e à ética, nas suas diversas vertentes, e alcancem outros universos de transcendência.

Isto implica rever os curricula e, porventura, “baralhar e tornar a dar” as diversas disciplinas, estabelecendo pontes e ensinos comuns entre disciplinas e, porque não, “misturando” Física com História e Geografia com Língua Portuguesa, entre tantas outras. Porque não estabelecer objetivos pedagógicos atualizados, ver a adequação do que é ensinado ao quotidiano e, de uma forma prospetiva, ao percurso de vida individual de cada aluno dentro do que é expectável a sociedade evoluir. Parece-me fundamental e urgente.

Isso não exclui, claro, que mesmo sem contar com as inutilidades objetivas que se transmitem, há informação e conhecimentos que têm de ser dados e que são como as fundações de uma casa: “feias e porcas”, mas que serão depois encobertas e que sustentarão a casa e evitarão que caia ao primeiro abanão. Todavia, convenhamos que essa base estrutural é pouco entendida nos objetivos e maçadora nos conteúdos, pelo que há que arranjar uma nova forma de a transmitir e incutir que seja minimamente lógica e lúdica. Muitos dos insucessos educativos começam na incompreensão das razões da escolaridade e de certas matérias. Desculpem o aparte, mas ficava grato se algum dos leitores me explicasse qual o interesse (salvo para a ponta do icebergue dos académicos matemáticos) de saber multiplicar potências, ou seja, de saber quanto é 98×76…

A evolução civilizacional e democrática das sociedades é diretamente proporcional à escolarização dos seus cidadãos. Haverá coragem neste país para se pensar seriamente no que se pretende com a escola? Nos ritmos de ensino, nas longas aulas em que os alunos têm de estar quietos e calados, em que não se respeita nem a biologia nem a psicologia das crianças? Nos conteúdos, na forma, no sentido disto tudo (ou na falta dele)?

Levar isto à prática faz com que se tenha de repensar praticamente tudo e abandonar alguns dos métodos de gerações anteriores. Mas se tudo mudou, o Ensino não deve ficar estático – era como continuar a fazer televisão como se fazia nos anos 50 ou jornais juntando letras em tipografias antigas. Senhor ministro, senhores membros do CNE, senhores responsáveis pelos partidos políticos, senhores professores (a começar pelo ad æternum líder da Fenprof), fica o desafio. Em vez de estar sempre a “mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma” (Lampedusa dixit) ou a perder tempo com epifenómenos, rasguemos o manto negro que nos cobre para descobrir – haja coragem, recompensada pela lufada de ar fresco e pela eficácia do resultado – o “espaço azul entre as nuvens”, e não apenas aquele que está pintado para a eternidade no fabuloso quadro de Monet.

Pediatra.

Escreve à terça-feira


Mudar a escola – um desafio ao ministro da Educação, ao CNE e, no fundo, a todos os cidadãos, para descobrirmos “o espaço azul entre as nuvens”


Escrever, ler e contar fazia sentido como objetivo escolar para a burguesia dos séculos XVIII e XIX. Hoje, com a revolução tecnológica, social e a autenticidade de valores, já passámos a fase de o ser humano ser apenas um “androide melhorado”. Fica o humilde desafio: coragem! Revolucionem a escola, fazendo dela um centro de ensino/aprendizagem…


Está a acabar o ano letivo. Gabamo-nos (e bem) de termos cada vez mais crianças e adolescentes no sistema educativo. Devemos agradecer à democracia o facto de as crianças poderem frequentar a escola porque terão mais hipóteses de se realizar no conjunto, que são, de cidadãos, profissionais e seres humanos.

A escola, por ser um fenómeno tão grande, coloca-nos problemas de consciência, filosóficos, conceptuais e práticos. Todavia, questioná-la é quase um tabu. A escola parece intocável, e professores, auxiliares, alunos e pais descartam-se de responsabilidades, atribuindo sempre a culpa aos “outros”.

Para quê a escola?, dá vontade às vezes de perguntar. Para quê, se as crianças são tão felizes a ver televisão e a brincar com os iPads e consolas? Será que as escolas se transformaram, afinal, em “infantários com garantia de 12 anos”?

Durante décadas, ou mesmo séculos, ser “instruído” era saber ler, escrever e contar. Tudo isto basicamente para não se ser enganado nos negócios e ter mais acesso ao poder. Nos séculos xviii e xix, e até no xx, quem precisava da escola era a burguesia. Havia também a questão do poder – quem fosse culto influenciava os destinos da nação – e o clero soube compreender isso, e sagazmente acarinhou (e acarinha!) sistemas de ensino. Os nobres eram, na maioria, iletrados e não é por acaso que o primeiro rei de Portugal alfabetizado foi D. Dinis. Aliás, como o conde de Lippe disse, no século xviii: “Sargento, aprenda a ler, porque o mais provável é os seus oficiais superiores serem nobres e, portanto, não o saberem.” No ensino se fabricaram as revoluções e o livre pensamento iluminista, mas sempre a partir dos jovens burgueses que a ele tinham acesso.

Aterrámos no século xxi, em que as coisas são diferentes. O ser humano evoluiu muito, não na sua matriz fisiológica e antropológica, mas no que se espera do seu desempenho. A revolução tecnológica veio impor que se questione tudo, que se repense muito e que se mude outro tanto.

Escrever, ler e contar? Onde isso vai! Com androides, robôs, internet e outras tantas coisas, o sistema de educação tem de mudar para ser de ensino/aprendizagem, onde todos, docentes, alunos e auxiliares, pais, se sintam melhorados dia-a-dia, gostem do local onde estão, se emocionem com o que aí acontece, se transcendam como seres humanos, socializem, aprendam a relacionar-se com o próximo, com respeito e cidadania, desenvolvam a solidariedade, a empatia, a preocupação com os demais, e domem o monstro egoísta e omnipotente que há em si, aprendendo as várias facetas exclusivas do ser humano, das ciências às humanidades, da tecnologia às artes, da música ao desporto e ao exercício físico, da filosofia à leitura, do simplesmente estar à atividade mais febril. Onde todos sintam ser “ricos de si mas pobres do outro”. Onde deem a mão à cultura, à estética e à ética, nas suas diversas vertentes, e alcancem outros universos de transcendência.

Isto implica rever os curricula e, porventura, “baralhar e tornar a dar” as diversas disciplinas, estabelecendo pontes e ensinos comuns entre disciplinas e, porque não, “misturando” Física com História e Geografia com Língua Portuguesa, entre tantas outras. Porque não estabelecer objetivos pedagógicos atualizados, ver a adequação do que é ensinado ao quotidiano e, de uma forma prospetiva, ao percurso de vida individual de cada aluno dentro do que é expectável a sociedade evoluir. Parece-me fundamental e urgente.

Isso não exclui, claro, que mesmo sem contar com as inutilidades objetivas que se transmitem, há informação e conhecimentos que têm de ser dados e que são como as fundações de uma casa: “feias e porcas”, mas que serão depois encobertas e que sustentarão a casa e evitarão que caia ao primeiro abanão. Todavia, convenhamos que essa base estrutural é pouco entendida nos objetivos e maçadora nos conteúdos, pelo que há que arranjar uma nova forma de a transmitir e incutir que seja minimamente lógica e lúdica. Muitos dos insucessos educativos começam na incompreensão das razões da escolaridade e de certas matérias. Desculpem o aparte, mas ficava grato se algum dos leitores me explicasse qual o interesse (salvo para a ponta do icebergue dos académicos matemáticos) de saber multiplicar potências, ou seja, de saber quanto é 98×76…

A evolução civilizacional e democrática das sociedades é diretamente proporcional à escolarização dos seus cidadãos. Haverá coragem neste país para se pensar seriamente no que se pretende com a escola? Nos ritmos de ensino, nas longas aulas em que os alunos têm de estar quietos e calados, em que não se respeita nem a biologia nem a psicologia das crianças? Nos conteúdos, na forma, no sentido disto tudo (ou na falta dele)?

Levar isto à prática faz com que se tenha de repensar praticamente tudo e abandonar alguns dos métodos de gerações anteriores. Mas se tudo mudou, o Ensino não deve ficar estático – era como continuar a fazer televisão como se fazia nos anos 50 ou jornais juntando letras em tipografias antigas. Senhor ministro, senhores membros do CNE, senhores responsáveis pelos partidos políticos, senhores professores (a começar pelo ad æternum líder da Fenprof), fica o desafio. Em vez de estar sempre a “mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma” (Lampedusa dixit) ou a perder tempo com epifenómenos, rasguemos o manto negro que nos cobre para descobrir – haja coragem, recompensada pela lufada de ar fresco e pela eficácia do resultado – o “espaço azul entre as nuvens”, e não apenas aquele que está pintado para a eternidade no fabuloso quadro de Monet.

Pediatra.

Escreve à terça-feira