Ler é poder ser mais livre!


Surgem estas reflexões depois de uma tarde passada na Feira do Livro de Lisboa. Um espaço para visitar, fruir, passear… e cheirar os livros, vê-los, folheá-los, admirá-los, mesmo que acabe por não se comprar muitos. Mas há sempre umas pechinchas, os livros do dia e as happy hours… 


Os livros são a nossa memória coletiva e, mais, são um espaço de liberdade e uma fronteira civilizacional. Não é por acaso que é o aparecimento da escrita que define a passagem da pré-História para a História, há cerca de 8.000 anos. Aliás, os livros surgiram também como gritos de revolta e exercícios de emancipação – cito o caso de Les Misérables ou de Animal Farm, para só citar dois, embora tenham também sido usados por algozes da Humanidade, como seja o Mein Kampf de Hitler ou o Livro Vermelho de Mao Zedong. Todavia, tirando as escassas exceções em que os livros foram veículos de abastardamentos da condição humana, a literatura esteve ao lado da democracia, do livre pensamento e da dignificação do ser humano, mesmo que para contar uma simples história, relatar vivências ou expressar ideias e sentimentos, como na poesia – basta ver, aliás, a sanha persecutória dos regimes ditatoriais relativamente aos livros, escritores e leitores, censurando, punindo e fazendo muitas vezes autos de fé.

Antes da escrita havia a tradição oral, de geração para geração, mas adulterando-se e perdendo pormenores, em função do tempo, das recordações e também dos interesses e juízos de valor do narrador. Os livros vieram estruturar a palavra e sedimentá-la, perpetuando-a.

Ler é, também, um espaço. Um espaço de tranquilidade, que se pode rever, controlar, que exige dedicação e que permite retomar o tempo do Homem, o tempo do Tempo, a parte endorfínica da nossa vida. Ler é ver, mexer, sentir, cheirar, parar o Tempo e saborear.

Quem lê, escreve melhor, fala melhor e será, seguramente, uma pessoa e mais estruturada, sabedora e livre.

É ideia geral que as crianças cada vez leem menos. Provavelmente será verdade, sobretudo se restringirmos o verbo “ler” à leitura de livros que não os da escola, os de informação “pura e dura”, ou os epifenómenos (e isto não é um juízo de valor) como O Diário de… ou qualquer outro bestseller de vida tão esporádica quanto efémera.

Os livros e a leitura são espaços de recreação, calma, tranquilidade, exploração táctil e olfativa, que dão o prazer de folhear, pousar e refletir, parar e pensar, imaginar, criar cenários, usar a experiência pessoal para entender o conteúdo, e esse privilégio está a ser cilindrado pelos ecrãs e pela falsa comunicação dos “cem mil amigos” das redes sociais, como se essa interação fosse mais do que pobre, limitada, de show-off e mentirosa.

Os atuais pais já não pertencem a uma geração com hábitos de leitura, seja por falta de tempo e cansaço, seja porque preferem diversões que exigem menos das “células cinzentas”, como televisão, internet ou revistas “cor-de-rosa.

A própria sociedade volta as costas aos livros. Compram-se menos, oferecem-se menos, usam-se menos. Numa sociedade que exige tudo “à la minute”, que usa e deita fora, que desperdiça, claro que os livros, como símbolo da calma, do tempo, do voltar atrás e “(re)saborear certas passagens, não poderiam estar na moda. É impossível uma página escrita competir com um ecrã. É utopia querer que o ritmo de um romance combata de igual para igual a ação de um filme ou de uma série televisiva.

As crianças habituaram-se a hábitos de leitura praticamente nulos. Na própria Escola, os manuais de ensino são “user friendly”, interativos, recheados de figuras, desenhos e fotografias, reduzindo o texto quase a zero. Compreende-se do ponto de vista didático e pedagógico. É mau no sentido de estimular a leitura. Quando algum professor tem a ideia “bizarra” de dar um livro a ler para depois comentar a maioria dos alunos (e encarregados de educação) pensará: “Que seca! Que pincel!”.

É pena que a memória escrita, o mistério, o esforço de imaginação e de abstração que a leitura de um livro representa sejam considerados “incómodos” que só se farão por obrigação. A realidade virtual substituiu algumas funções do cérebro humano. Encaro isso com grande mágoa.

Dentro de alguns anos os clássicos terão caído em desuso, amarelecerão nas prateleiras das livrarias, substituídos por histórias de mais fácil “digestão”. Os livros de aventuras e os romances que alegraram a infância de tantas gerações serão considerados obsoletos, antiquados, ridículos, na apreciação de crianças e adolescentes hipercríticos e menos tolerantes.

Todavia, podemos inverter esta tendência se, além de estimular a leitura e controlar os hábitos televisivos, darmos o exemplo e desenvolvermos nas crianças a capacidade e o talento de escrever. Escrever e ler andam a par. O vocabulário aumenta, a gramática melhora, a construção de frases torna-se mais fluida e mais coerente e uma coisa leva imediatamente à outra. Escrever. Apenas escrever, sejam diários, poemas, contos, apontamentos de viagens, o que seja.

Torna-se urgente inverter a tendência. Não há soluções mágicas. Os hábitos culturais, para se sedimentarem, sobretudo quando vão contra a “lógica” e o facilitismo do sistema, exigem esforço e tempo. Não se compram no hipermercado nem na farmácia. Depois da pré-História veio a História. Não podemos admitir que, depois desta, venha o vazio, o caos e a iliteracia. Porque virá, com eles, a diminuição da liberdade.

Pediatra.

Escreve à terça-feira


Ler é poder ser mais livre!


Surgem estas reflexões depois de uma tarde passada na Feira do Livro de Lisboa. Um espaço para visitar, fruir, passear… e cheirar os livros, vê-los, folheá-los, admirá-los, mesmo que acabe por não se comprar muitos. Mas há sempre umas pechinchas, os livros do dia e as happy hours… 


Os livros são a nossa memória coletiva e, mais, são um espaço de liberdade e uma fronteira civilizacional. Não é por acaso que é o aparecimento da escrita que define a passagem da pré-História para a História, há cerca de 8.000 anos. Aliás, os livros surgiram também como gritos de revolta e exercícios de emancipação – cito o caso de Les Misérables ou de Animal Farm, para só citar dois, embora tenham também sido usados por algozes da Humanidade, como seja o Mein Kampf de Hitler ou o Livro Vermelho de Mao Zedong. Todavia, tirando as escassas exceções em que os livros foram veículos de abastardamentos da condição humana, a literatura esteve ao lado da democracia, do livre pensamento e da dignificação do ser humano, mesmo que para contar uma simples história, relatar vivências ou expressar ideias e sentimentos, como na poesia – basta ver, aliás, a sanha persecutória dos regimes ditatoriais relativamente aos livros, escritores e leitores, censurando, punindo e fazendo muitas vezes autos de fé.

Antes da escrita havia a tradição oral, de geração para geração, mas adulterando-se e perdendo pormenores, em função do tempo, das recordações e também dos interesses e juízos de valor do narrador. Os livros vieram estruturar a palavra e sedimentá-la, perpetuando-a.

Ler é, também, um espaço. Um espaço de tranquilidade, que se pode rever, controlar, que exige dedicação e que permite retomar o tempo do Homem, o tempo do Tempo, a parte endorfínica da nossa vida. Ler é ver, mexer, sentir, cheirar, parar o Tempo e saborear.

Quem lê, escreve melhor, fala melhor e será, seguramente, uma pessoa e mais estruturada, sabedora e livre.

É ideia geral que as crianças cada vez leem menos. Provavelmente será verdade, sobretudo se restringirmos o verbo “ler” à leitura de livros que não os da escola, os de informação “pura e dura”, ou os epifenómenos (e isto não é um juízo de valor) como O Diário de… ou qualquer outro bestseller de vida tão esporádica quanto efémera.

Os livros e a leitura são espaços de recreação, calma, tranquilidade, exploração táctil e olfativa, que dão o prazer de folhear, pousar e refletir, parar e pensar, imaginar, criar cenários, usar a experiência pessoal para entender o conteúdo, e esse privilégio está a ser cilindrado pelos ecrãs e pela falsa comunicação dos “cem mil amigos” das redes sociais, como se essa interação fosse mais do que pobre, limitada, de show-off e mentirosa.

Os atuais pais já não pertencem a uma geração com hábitos de leitura, seja por falta de tempo e cansaço, seja porque preferem diversões que exigem menos das “células cinzentas”, como televisão, internet ou revistas “cor-de-rosa.

A própria sociedade volta as costas aos livros. Compram-se menos, oferecem-se menos, usam-se menos. Numa sociedade que exige tudo “à la minute”, que usa e deita fora, que desperdiça, claro que os livros, como símbolo da calma, do tempo, do voltar atrás e “(re)saborear certas passagens, não poderiam estar na moda. É impossível uma página escrita competir com um ecrã. É utopia querer que o ritmo de um romance combata de igual para igual a ação de um filme ou de uma série televisiva.

As crianças habituaram-se a hábitos de leitura praticamente nulos. Na própria Escola, os manuais de ensino são “user friendly”, interativos, recheados de figuras, desenhos e fotografias, reduzindo o texto quase a zero. Compreende-se do ponto de vista didático e pedagógico. É mau no sentido de estimular a leitura. Quando algum professor tem a ideia “bizarra” de dar um livro a ler para depois comentar a maioria dos alunos (e encarregados de educação) pensará: “Que seca! Que pincel!”.

É pena que a memória escrita, o mistério, o esforço de imaginação e de abstração que a leitura de um livro representa sejam considerados “incómodos” que só se farão por obrigação. A realidade virtual substituiu algumas funções do cérebro humano. Encaro isso com grande mágoa.

Dentro de alguns anos os clássicos terão caído em desuso, amarelecerão nas prateleiras das livrarias, substituídos por histórias de mais fácil “digestão”. Os livros de aventuras e os romances que alegraram a infância de tantas gerações serão considerados obsoletos, antiquados, ridículos, na apreciação de crianças e adolescentes hipercríticos e menos tolerantes.

Todavia, podemos inverter esta tendência se, além de estimular a leitura e controlar os hábitos televisivos, darmos o exemplo e desenvolvermos nas crianças a capacidade e o talento de escrever. Escrever e ler andam a par. O vocabulário aumenta, a gramática melhora, a construção de frases torna-se mais fluida e mais coerente e uma coisa leva imediatamente à outra. Escrever. Apenas escrever, sejam diários, poemas, contos, apontamentos de viagens, o que seja.

Torna-se urgente inverter a tendência. Não há soluções mágicas. Os hábitos culturais, para se sedimentarem, sobretudo quando vão contra a “lógica” e o facilitismo do sistema, exigem esforço e tempo. Não se compram no hipermercado nem na farmácia. Depois da pré-História veio a História. Não podemos admitir que, depois desta, venha o vazio, o caos e a iliteracia. Porque virá, com eles, a diminuição da liberdade.

Pediatra.

Escreve à terça-feira