O resgate de Eduardo Batarda à medida que avançamos na sua “escuridão improvável”

O resgate de Eduardo Batarda à medida que avançamos na sua “escuridão improvável”


Julião Sarmento não acredita que o público português tenha já sido formalmente apresentado a Eduardo Batarda, pintor com uma obra que ele gostaria de ter feito. Assim, encarregou-se ele mesmo de escolher as peças que melhor sugerem o seu “puzzle infinito”


Compreende seis décadas o arco temporal abarcado na exposição “Myse en Abyme”, com pinturas de Eduardo Batarda mas segundo um olhar do também pintor, Julião Sarmento. Um dos artistas portugueses com maior projeção internacional e que assim se propôs resgatar a obra do amigo de uma turva perspetiva que, segundo ele, tem impedido que se reconheça a verdadeira importância do trabalho deste “artista de artistas”.
A mostra inaugurou esta sexta-feira no Pavilhão Branco do Museu de Lisboa, no Campo Grande, onde ficará até 28 de agosto e surge como uma  reivindicação do seu comissário, que procura fazer justiça a uma obra que soube progredir  “na superfície escura da água oleosa da prática artística nacional”. As suas escolhas procuram desfazer ideias feitas sobre Batarda, reunindo um conjunto de 21 obras, algumas nunca mostradas em público, que colocam desde logo problemas em enquadrar e catalogar este pintor.
Batarda contou ao i que lhe foi difícil ouvir os pressupostos com que Sarmento partiu para esta exposição, defendendo que a “má reputação” do seu trabalho se devia a não ter tido, até ao momento, uma exposição à sua altura: “Eu vou fazer uma exposição finalmente boa”, disse-lhe Sarmento.
“Houve um parti pris dele que não sei se se baseia completamente na realidade”, refere Batarda. “Ele disse-me: ‘Quando se fala do teu nome, tem muito a ver com trabalhos dos anos 1970, sobre papel, umas bonecadas… Para já, vamos pôr isso tudo de fora.’ Coisa que fez.”

 

O título da exposição é uma indicação muito clara da perspetiva de Sarmento sobre uma obra que se organiza como “um puzzle infinito”, e como imagens em vertigem, dentro umas das outras, numa “espécie de versão bidimensional das bonecas russas”, como escreve o comissário no texto que abre o catálogo da exposição. Além de ser uma obra que toma a pintura como uma tradição, e que, por isso, nos seus distintos períodos, dialoga ou confronta um amplo quadro de referências dentro da arte moderna, Sarmento chama a atenção para uma coincidência total entre a obra e a personalidade, o próprio discurso de Batarda. E, neste ponto, refere que Batarda  “não é amável, nem simpático nem de fácil digestão”, mas “ácido e virulento, desesperadamente urgente”.
Ao i, Julião Sarmento explicou a sua admiração pelo amigo e pela sua obra não só pelo seu caráter “tão particular, e pessoal de desenvolver a arte”, mas por a sua visão singular ser um reflexo  de “uma espécie de homem do renascimento”: “É um tipo cheio de erudição, cultíssimo, extremamente criativo e com uma variedade de interesses de tal ordem que o tornam uma pessoa fora do comum. O trabalho que faz é um trabalho que eu gostaria de ter feito.”
Eduardo Batarda expõe desde 1966, data das primeiras obras recolhidas para “Mise en Abyme”, que vão até 2010. Entre as principais exposições do percurso do pintor destacam-se a de 1975, na Fundação Calouste Gulbenkian, com o seu trabalho como bolseiro, a retrospetiva do Centro de Arte Moderna, em 1998, a mostra no Centro de Arte Manuel de Brito, em 2009, e a retrospetiva “Outra Vez Não”, no Museu Serralves, no Porto, em 2011, na sequência do Grande Prémio Arte EDP, que lhe fora atribuído.
Com a inauguração, foi também lançado o catálogo da exposição, no qual Julião Sarmento procura, “através de uma cronologia iniciada em 2016, percorrer todos os anos com produção artística de Eduardo Batarda, até 1965”, com uma peça representativa de cada ano – meta só parcialmente atingida uma vez que, em alguns anos, por motivos de diversa ordem e mesmo por o autor se forçar a períodos de interrupção, não ter produzido qualquer obra.
Além da apresentação de Sarmento, o catálogo conta com textos do crítico e historiador Pedro Faro (Lisboa, 1976) e do comissário espanhol David Barro (Ferrol, 1974), integrando ainda um pequeno caderno com a correspondência entre Sarmento e Batarda enquanto a exposição era planeada.
Faro faz uma excelente síntese da obra do pintor notando como “ao longo de cerca de 50 anos, Eduardo Batarda tem explorado as possibilidades deste campo já minado [o universo artístico contemporâneo], com uma postura cínica, altamente corrosiva, talvez a única capaz de libertar aquele campo das suas armadilhas e amarras. (…) Com temas apoteóticos, empolgantes ou banais, vivem alegremente o apocalipse, numa melancolia pós-pop, cínica, e realizam um trabalho de dissolução, desvalorização e relativização da linguagem, sublinhando a importância da ação como ação”.

 

Nascido em Coimbra, em 1943, Eduardo Batarda frequentou a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e os Cursos de Pintura da Escola Superior de Belas Artes de Lisboa (1963-1968). De 1968 até 1971, cumpriu o serviço militar obrigatório, em plena guerra colonial e, de 1971 a 1974, frequentou a classe de pintura do Royal College of Art, em Londres, como Bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian. De 1976 a 2008, deu aulas na Escola Superior de Belas Artes do Porto, atual Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto.
David Barro, que confessa logo à partida que o seu conhecimento da obra de Batarda “era praticamente nulo até há muito pouco tempo”, refere como nesta pintura há uma leitura que sobressai em relação às demais: “a consciência crítica sobre o seu próprio trabalho como pintor e sobre a arte em geral”. O crítico de arte espanhol afirma que “Eduardo Batarda sabe que a pintura já não é uma técnica e sim uma tradição” (…) e é precisamente essa consciência crítica, esse questionamento do lugar que ocupa como artista, que o conduz e condena a uma postura virtualmente iconoclasta”. 
Se o pintor confirmou ao i que para si, e ao longo da sua carreira artística, o não se “levar a sério” foi tão importante como “levar os outros a sério”, Barro nota que “a iconoclastia de Batarda radica numa decidida resistência ao poder instaurado, tanto na pintura como na própria realidade”. É, de resto, importante assinalar como o texto deste curador independente tem o grande mérito de confrontar as próprias pinturas e não se perder num ensaísmo sem objecto ou puramente fantasioso.
O catálogo desta exposição não é assim algo meramente complementar mas um guia essencial deste novo olhar proporcionado por Julião Sarmento, que também foi responsável pela sua concepção e edição. Um exemplo notável de como sem um gesto de atenção amiga e generosa pode não chegar a ser feita justiça na arte, e uma visão profunda pode acabar morta pela superfície do olhar que a encontra.
Vale a pena acabar com as palavras de  Barro, que não tinha ainda conhecido o trabalho do pintor e talvez nunca sobre ela se tivesse pronunciado não fosse esta oportunidade, mas que deixa assim um dos mais convincentes testemunhos sobre a relevância da sua obra:
“A pintura de Eduardo Batarda responde a um desejo que nunca pára de ser revelado. Como se aspirasse a uma escuridão improvável. Ou a uma penitência, razão pela qual chamou Eros, ou mais concretamente, Erros, aos seus quadros; a palavra equivocada. Enumerava assim os seus próprios erros, errando na ortografia. Mais uma vez o humor e o equívoco pairando nas suas intenções. Como uma ardósia escolar convertida em palimpsesto, continua a afirmar e a negar a pintura à vez, velando-a, ocultando-a, deformando-a. Trata-se da pintura como crítica, como território próprio, como construtora de sentido e de absurdo, como estratégia iconoclasta.”