Escola, tribunais e ideologia


A revisão dos “contratos de associação” com escolas privadas e a confiança nos tribunais não se devem servir das ideologias


1. Hoje apetece falar de escola pública e escola privada. E de livre escolha e ensino concorrencial (mesmo que orientado pelo Estado no que deve ser e é bom que seja). Se há algo que impressiona nesta rábula com toques de despotismo (e austeridade dissimulada) sobre a revisão dos “contratos de associação” com os estabelecimentos privados de ensino é a insensibilidade para a tradição e o pluralismo social desses estabelecimentos. Por outro lado, a ousadia de se atacar a estabilidade da atual rede de ensino sem um diálogo prévio e a apresentação de uma alternativa válida, a discutir e a consensualizar tendo em conta, nomeadamente, os critérios vigentes da subvenção (a grande interrogação!) e a fiscalização dos programas educativos e curriculares. No fim, a ignorância do que é a igualdade material que se sobrepõe à forma na estatuição do que é ou pode ser igual. Pelo caminho, o desprezo pela mobilidade social que este regime de financiamento proporcionou. Várias realidades que pensaríamos menos próprias em governo sustentado numa ideologia (digamos) “prática” de esquerda. Mas algo que parece estar de acordo com uma filosofia dominante nesta governação: cortar as pontes de entendimento entre os blocos da dicotomia governativa que se foram consolidando (por vezes de forma tácita) nos setores públicos de referência para a vida em comunidade. Pontes que foram evoluindo para a conceção de um verdadeiro Estado social como Estado de garantia de serviços (em que os serviços públicos são também prestados por entidades não públicas, em concertação) e se foram afastando de um Estado autoritário, coletivista e monopolista à força. É esta a verdadeira reversão que está a processar-se em surdina. E todos sabemos pelos livros da história e da ciência política, para além de retrocesso civilizacional e institucional, ao que conduz. Em nome do poder, marchar.

2. Apetece também falar de justiça porque tivemos intervenção pública do presidente do Supremo Tribunal de Justiça e do Conselho Superior da Magistratura. Uma intervenção lúcida, ponderada e refletida que passou imerecidamente incólume no que toca à inegável valia do seu conteúdo: na implantação coerente e coesa (desde logo geográfica e demográfica) da reorganização judiciária (nos seus fundamentos, méritos e acertos a fazer); na bondade mitigada dos auxiliares tecnológicos da administração da justiça; na imprescindibilidade dos controlos judiciais das garantias constitucionais; na tensão desmesurada que a crise da economia e o excesso de endividamento carregam sobre os tribunais judiciais, colocando a ação executiva no centro da astenia do sistema; na alienação “ideológica” do exercício de alguma função jurisdicional para fora do raio de ação dos tribunais do Estado e dos tribunais arbitrais. António Henriques Gaspar defendeu as metas de produtividade dos tribunais, mas criticou a celeridade como valor básico da justiça: “A justiça tem de ser proferida num prazo razoável que satisfaça os interesses das pessoas.” Justamente este é o ponto da doença: as famílias e as empresas deixaram de se reconhecer nos tribunais como espaço fiável de resolução dos seus interesses e conflitos, seja como ofendidos ou credores, seja como arguidos ou réus devedores. Sem olhar a qualquer ideologia, essa relação de confiança e de compromisso é que tem de se instaurar, mesmo quando a complexidade se sobrepõe. Sem isso, não há convenções que valham. Em nome disso é que valerá falar da relação da justiça com as pessoas.

Professor de Direito da Universidade de Coimbra.

Jurisconsulto

Escreve à quinta-feira


Escola, tribunais e ideologia


A revisão dos “contratos de associação” com escolas privadas e a confiança nos tribunais não se devem servir das ideologias


1. Hoje apetece falar de escola pública e escola privada. E de livre escolha e ensino concorrencial (mesmo que orientado pelo Estado no que deve ser e é bom que seja). Se há algo que impressiona nesta rábula com toques de despotismo (e austeridade dissimulada) sobre a revisão dos “contratos de associação” com os estabelecimentos privados de ensino é a insensibilidade para a tradição e o pluralismo social desses estabelecimentos. Por outro lado, a ousadia de se atacar a estabilidade da atual rede de ensino sem um diálogo prévio e a apresentação de uma alternativa válida, a discutir e a consensualizar tendo em conta, nomeadamente, os critérios vigentes da subvenção (a grande interrogação!) e a fiscalização dos programas educativos e curriculares. No fim, a ignorância do que é a igualdade material que se sobrepõe à forma na estatuição do que é ou pode ser igual. Pelo caminho, o desprezo pela mobilidade social que este regime de financiamento proporcionou. Várias realidades que pensaríamos menos próprias em governo sustentado numa ideologia (digamos) “prática” de esquerda. Mas algo que parece estar de acordo com uma filosofia dominante nesta governação: cortar as pontes de entendimento entre os blocos da dicotomia governativa que se foram consolidando (por vezes de forma tácita) nos setores públicos de referência para a vida em comunidade. Pontes que foram evoluindo para a conceção de um verdadeiro Estado social como Estado de garantia de serviços (em que os serviços públicos são também prestados por entidades não públicas, em concertação) e se foram afastando de um Estado autoritário, coletivista e monopolista à força. É esta a verdadeira reversão que está a processar-se em surdina. E todos sabemos pelos livros da história e da ciência política, para além de retrocesso civilizacional e institucional, ao que conduz. Em nome do poder, marchar.

2. Apetece também falar de justiça porque tivemos intervenção pública do presidente do Supremo Tribunal de Justiça e do Conselho Superior da Magistratura. Uma intervenção lúcida, ponderada e refletida que passou imerecidamente incólume no que toca à inegável valia do seu conteúdo: na implantação coerente e coesa (desde logo geográfica e demográfica) da reorganização judiciária (nos seus fundamentos, méritos e acertos a fazer); na bondade mitigada dos auxiliares tecnológicos da administração da justiça; na imprescindibilidade dos controlos judiciais das garantias constitucionais; na tensão desmesurada que a crise da economia e o excesso de endividamento carregam sobre os tribunais judiciais, colocando a ação executiva no centro da astenia do sistema; na alienação “ideológica” do exercício de alguma função jurisdicional para fora do raio de ação dos tribunais do Estado e dos tribunais arbitrais. António Henriques Gaspar defendeu as metas de produtividade dos tribunais, mas criticou a celeridade como valor básico da justiça: “A justiça tem de ser proferida num prazo razoável que satisfaça os interesses das pessoas.” Justamente este é o ponto da doença: as famílias e as empresas deixaram de se reconhecer nos tribunais como espaço fiável de resolução dos seus interesses e conflitos, seja como ofendidos ou credores, seja como arguidos ou réus devedores. Sem olhar a qualquer ideologia, essa relação de confiança e de compromisso é que tem de se instaurar, mesmo quando a complexidade se sobrepõe. Sem isso, não há convenções que valham. Em nome disso é que valerá falar da relação da justiça com as pessoas.

Professor de Direito da Universidade de Coimbra.

Jurisconsulto

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