Ira Pastor. “Não queremos fazer de Deus, só ajudar um bocadinho”

Ira Pastor. “Não queremos fazer de Deus, só ajudar um bocadinho”


Na semana passada, uma biotecnológica americana surpreendeu ao anunciar planos para reanimar pessoas em morte cerebral, hoje uma condição considerada irreversível. O i falou com o homem à frente do projeto


Ira Pastor tem 48 anos, formação em Farmácia e Gestão e lançou há oito anos a Bioquark Inc. A empresa biotecnológica de Filadélfia fez correr tinta na semana passada pelos seus planos de “ressuscitar mortos”. Dito assim, parece ficção científica, por isso requer explicações. Pastor respondeu às perguntas do i por email e explica quais são os desafios.

Toda a gente pediu para lhe perguntar: vê “Game of Thrones”? O ressuscitado Jonh Snow foi uma inspiração?

Não vejo a série, mas tenho recebido várias perguntas sobre isso. Bom, a resposta é não. E posso garantir que não usamos magia nos nossos protocolos.

Como surgiu o Projeto ReAnima?

Foi uma combinação de fatores. A nossa empresa tem trabalho na área da regeneração e na translação para o desenvolvimento de medicamentos, em particular na área das lesões cerebrais traumáticas e lesões da espinal medula. Entretanto começou a haver um aumento da investigação em torno dos chamados cadáveres-vivos, pessoas em morte cerebral mas em suporte de vida. Por fim, tem havido vários casos mediáticos nos EUA que chamaram a atenção para uma área cinzenta, entre o coma profundo e a morte cerebral, em que talvez possamos fazer alguma coisa.

Que tipo de casos?

Bobbi Kristina Brown ou Jahi McMath.

Hoje, a morte cerebral é considerada irreversível. O que vos leva a pensar que a medicina pode estar errada?

A noção de irreversível, de acordo com a definição de morte cerebral da comissão ad hoc da Harvard Medical School, é de 1968. Passou quase meio século e vivemos numa era tecnológica completamente diferente. No passado, a cessação de batimento cardíaco e da respiração também era considerada irreversível e hoje somos bastante bons a “reiniciar” o coração ou os pulmões.

O que está em causa é a ressurreição de alguém declarado morto?

Não. Não vamos fazer testes em “corpos”, isto é, cadáveres sem suporte básico de vida. O objetivo é a investigação do estado de morte cerebral, por exemplo, o coma irreversível. Ou seja, indivíduos que têm o cérebro comprometido mas que estão em suporte de vida cardiopulmonar, o momento em que se faz, por exemplo, a colheita de órgãos.

Portanto, a ideia de que vão ressuscitar mortos é exagerada…

Sim. Quando se tira o suporte de vida, começam a manifestar-se todos os aspetos da morte: o rigor mortis, a descoloração, a putrefação. Nunca faremos isto com pessoas mortas.

Todo este burburinho acabou por passar a ideia de um projeto meio louco… falou-se até de zombies. Será mesmo boa publicidade?

Acho que toda a publicidade é boa, desde que leve a sensibilização. Hollywood criou o nonsense dos zombies e, infelizmente, isso passou a fazer parte da psique do público americano.

A diferença entre ressurreição e reanimação é relevante?

A ressurreição é um termo mais religioso para esta ideia de voltar à vida. A reanimação é um termo médico. É definida do ponto de vista técnico como a capacidade de devolver a vida. Mais relevante é que, no passado, a morte clínica assentava sobretudo nas funções do coração e dos pulmões. Tecnicamente, ao recuperá-las, estava-se a devolver a vida. À medida que a definição de morte passou a estar mais ligada ao momento de morte cerebral, ao reanimar o cérebro estaremos a devolver a vida. Se conseguirmos reanimar o cérebro como se reanima o coração, toda a gente tem uma segunda hipótese.

Houve tentativas anteriores à vossa?

Não. Tem havido investigação com cadáveres-vivos, mas sobretudo em testes de toxicidade de novos medicamentos. Além disso, e apesar do rótulo de irreversível, têm sido reportados na literatura casos de reversão natural da morte cerebral, em particular em indivíduos jovens que provavelmente teriam alguma função neurológica residual. Acredito que estes casos mostram que não pode haver só preto ou branco no campo das doenças graves da consciência.

Quais são os desafios científicos?

Não estamos a inventar nada, apenas a aplicar ferramentas que já existem e a tentar estabelecer um protocolo que contenha o equilíbrio certo. Vamos usar células estaminais, estimulação do nervo mediano ou a estimulação transcraniana com laser.

Anunciaram que a primeira fase de testes será um protocolo de seis semanas. O que seria um bom resultado? A pessoa recuperar os sentidos, falar?

Não, isso seria um milagre! Às seis semanas esperamos ver crescimento neuronal e vascular no cérebro.

Se conseguirem ter sucesso, que outras aplicações clínicas antevê?

Esperamos desenvolver o protocolo em indivíduos com diferentes doenças neurodegenerativas, por isso acredito que resultados positivos poderão ter impacto no desenvolvimento de terapêuticas para várias doenças graves associadas a uma diminuição ou perda da consciência, como coma e estados vegetativos, mas também doenças degenerativas do sistema nervoso central, incluindo alzheimer, parkinson, esclerose lateral amiotrófica ou esclerose múltipla.

Regenerando o cérebro, substituindo neurónios e as ligações entre eles, que efeitos secundários se podem esperar? A memória fica comprometida? A pessoa muda de personalidade?

A nossa convicção é que a “mente humana” é muito mais do que uma rede de ligações entre neurónios e que mesmo a memória é algo que, de alguma forma, é possível recuperar. Esta ideia tem vários fundamentos. Estudos feitos com insetos ou esquilos mostram que, mesmo havendo uma reorganização ou mesmo reconstrução do sistema nervoso central, há a preservação de memórias, por exemplo do estado de larva para o estado de adulto numa metamorfose. Por outro lado, há outros fenómenos que não são totalmente respondidos pelo atual modelo do cérebro, como a lucidez terminal em doentes de alzheimer, estados de consciência em crianças sem córtex ou casos em que as pessoas sabem coisas que nunca aprenderam. Em última instância, ao longo da vida, todos os seres humanos passam por uma enorme remodelação cerebral. Tecnicamente temos muitos cérebros ao longo da vida.

Como assim?

Estima-se que todos os dias percamos mais 100 mil neurónios e milhares de moléculas que existem nas células cerebrais são renovadas. Ainda assim, de alguma forma conseguimos manter uma enorme quantidade de informação. Há muito que não sabemos sobre as profundezas da mente humana, mas esperamos que este programa ajude a elucidar alguma coisa.

Sempre que se fala de inovação em saúde discute-se o custo das novas tecnologias para os ganhos que representam. O procedimento seria muito caro?

Não creio. Estamos a falar de um uso concreto na reversão de morte cerebral numa situação aguda, não estamos a falar de um programa antienvelhecimento. As técnicas que vamos implementar não são propriamente inovadoras, algumas já são usadas em unidades de cuidados intensivos. Por esse motivo, acho que não vamos ter nada dispendioso como quando se fala das terapias genéticas ou da chamada animação suspensa – a ideia, por exemplo, da hibernação criogénica.

Qual é o investimento neste projeto?

Dois milhões de dólares.

Se tiverem sucesso, o que vai a Bioquark vender? Pode vender um protocolo de reanimação?

Esperamos essencialmente dois resultados comerciais. Produtos com propriedades regenerativas que seriam exclusivamente manufaturados e vendidos pela Bioquark Inc. e uma rede de clínicas com intervenções em áreas concretas, como alzheimer e outras doenças degenerativas, mas também perturbações como autismo ou dificuldades de aprendizagem.

Porquê um hospital na Índia?

Para já, só temos autorização do comité indiano de ética para investigação de células estaminais, mas o pedido foi feito também nos EUA. A escolha da Índia foi essencialmente uma questão de custos. Vamos trabalhar com o Hospital Anupam, em Rudrapur, onde um dia de internamento em cuidados intensivos custa mil dólares. Nos EUA custa 10 mil.

Já têm doentes?

Não. Acabámos de ter a autorização para os primeiros 20 indivíduos e agora esperamos começar a recrutá-los. Estamos a trabalhar com o hospital para identificar famílias em que possa haver uma barreira religiosa ou médica à dádiva de órgãos e que possam querer considerar participar no estudo com um objetivo apenas exploratório.

O facto de, potencialmente, o vosso sucesso significar haver menos órgãos disponíveis para transplante é uma preocupação?

Pode acontecer, por isso também trabalhamos nessa vertente. Na natureza há espécies capazes de regenerar tudo: coração, córnea, medula, membros. A maioria dos líderes na área da transplantação dirão que o transplante só é mesmo necessário quando uma parte considerável da função do órgão fica comprometida. A nossa ideia é que, no futuro, não se chegue aí. Se conseguirmos regenerar ou reparar partes do coração, dos rins, tecnicamente deixamos de precisar de transplantes.

Fala-se muito da medicina regenerativa e os primeiros órgãos artificiais são sempre notícia, mas parece haver alguma demora na aplicação.

É uma área tão popular porque a grande maioria dos 7 biliões de dólares que se gasta em saúde, em todo mundo, têm a ver com doenças crónicas e processos degenerativos. Penso que, nas próximas décadas, vamos ter mais ferramentas disponíveis e vamos finalmente deixar de tratar essencialmente sintomas para passar a corrigir as causas fisiológicas das doenças.

Em termos éticos, que desafios vê?

Neste momento avançamos com a autorização da comissão de ética do hospital e do Comité para a Investigação e Terapia com Células Estaminais na Índia. Quanto a potenciais acusações de estarmos a “fazer de Deus”, não o vemos dessa forma. Esse argumento tem sido usado ao longo dos últimos 100 anos, incluindo quando se criaram ferramentas como a desfibrilação cardíaca, a ventilação mecânica ou o transplante de órgãos complexos. Se alguém quer criticar-nos por querermos ajudar uma família cujo filho de três anos se afogou acidentalmente, ou o filho de 16 anos que saiu de mota sem capacete, pode fazê-lo. Entendo que não podemos deixar-nos ficar pela frase “lamentamos, mas não há nada a fazer”. Não é fazer de Deus, é ajudá-lo um bocadinho.

Quando vão divulgar resultados?

Alguns meses depois do programa de seis semanas de estimulação de 20 doentes.

No próximo ano?

É possível. Quanto mais depressa tivermos o primeiro doente, mais depressa será.

Alguma vez esteve numa situação em que gostasse de ter tido esta hipótese?

A única vez que passei por uma perda grande foi no ano passado. A minha mãe esteve nos cuidados intensivos com uma pneumonia e acabou por morrer muito depressa, comigo a agarrar-lhe a mão no final. Tinha 87 anos e várias doenças da idade, mas teve uma vida feliz, viajou, viu o único filho casar e o nascimento de três netos. Não seria candidata a este ensaio nem acho que gostasse de participar. Acho que, se a pudesse trazer de volta por instantes e o conseguisse fazer, provavelmente acordava, dava-me uma pancadinha na cabeça e voltava de novo para Deus.