Querubim Lapa (1925-2016). Morreu o artista que fez de Lisboa a sua galeria

Querubim Lapa (1925-2016). Morreu o artista que fez de Lisboa a sua galeria


O ceramista e pintor morreu aos 90 anos, deixando uma obra imensa espalhada pelo espaço público português. E muitos que não lhe conheciam o nome, despedem-se sem saber de um dos artistas que mais apreciaram


 

Expoente português das artes da azulejaria e da cerâmica no último meio século, Querubim Lapa morreu esta segunda-feira aos 90 anos. Estava há uma semana internado na sequência de problemas respiratórios depois de ter tido um acidente vascular cerebral.

O tipo de artista que muitos conheciam sem o saber, porque era o espaço público o lugar primordial onde a sua vasta obra assumiu destaque. Este ceramista emprestou relevo e cor a paisagens exteriores, intervindo tanto em ruas e avenidas, como em escolas e outros edifícios públicos e privados. Os seus painéis de azulejos e outros revestimentos cerâmicos espalhados por Lisboa deixam um testemunho do encanto com que na sua obra disciplinas diferentes se cruzam. Nunca se quis confinado a uma só arte. Fez tapeçaria, gravura, escultura e desenho, sendo a sua verdadeira paixão a pintura. De resto, disse à revista Up, da TAP, em Outubro de 2014, que, quando começou, "não sonhava com a cerâmica. O que eu queria era ser pintor. Na verdade, eu sempre quis ser pintor – costumo até dizer que sou um pintor escondido atrás da cerâmica.”

Alguns dos melhores exemplos dos painéis cerâmicos de Querubim encontram-se na capital portuguesa, que se tornou uma espécie de galeria da sua obra, contando como o revestimento de uma coluna do hotel Ritz (1959), o painel “A Cultura” (1961), instalado na Reitoria da Universidade de Lisboa, o revestimento exterior e interior da Casa da Sorte, dois painéis na Pastelaria Mexicana, o revestimento da estação do metro da Bela Vista e o painel "As Meninas e os Meninos" na escola com o seu nome, em Campolide. Em 1994, assinou o painel "Terraço" para um muro na Avenida da Índia, frente à estação de comboios de Alcântara-Mar. Está ainda representado em diversos museus como o Museu de Arte Moderna de Tóquio ou o Museu do Chiado.

Nascido em 1925 em Portimão, fez parte de uma geração que se opôs frontalmente ao Estado Novo, surgindo inicialmente associado ao neorrealismo português, tal como Júlio Pomar, mas com os anos foi-se afastando progressivamente deste movimento. Tendo adquirido o gosto pelo desenho ainda na primeira infância, “sozinho, deitado no chão do quarto”, dizia que para ter um mundo seu e para fugir às quatro irmãs. Começou por estudar pintura com Trindade Chagas, em 1941, antes de se matricular na Escola de Artes Decorativas António Arroio, onde veio depois a dar aulas a partir de 1955.

Foi já na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa que conviveu e travou amizae com alguns dos nomes que viriam a ser responsáveis pelas grandes manifestações artísticas do século XX. Além de Pomar, cruzou-se com Fernando Azevedo, João Abel Manta e Marcelino Vespeira. Foi nesse período e até concluir os estudos em escultura – também ali concluiria o curso de Pintura, mas só muito mais tarde, em 1978 – que o espírito de grupo o animou a intervir politicamente. Em entrevista à publicação Up Magazine, Querubim contava: “O movimento neorrealista saiu da António Arroio. Íamos visitar os salões do SNI [Secretariado Nacional de Informação, organismo de propaganda do Estado Novo] em Alcântara, onde expunham os modernistas da geração do António Ferro [diretor do SNI], um modernismo que para nós já era um bocado decadente. O neorrealismo foi uma reação tanto política como artística, porque todos nós éramos um bocado de esquerda”.

Em meados dos anos 50, com a sua primeira grande obra – “As Meninas e Os Meninos”, os dois longos painéis rectangulares instalados num muro da Escola Primária de Campolide – chamou o interesse da PIDE. Passou então a ser alvo da sua atenção e viveria os anos seguintes sempre enfrentando as dificuldades que lhe criava o regime. Mesmo assim, tornou-se professor, expôs a sua primeira exposição individual em 1960 e dedicou-se quase em exclusividade à cerâmica durante essa década.

No estrangeiro, Querubim Lapa criou um baixo-relevo de grandes dimensões para a delegação do Banco Nacional Ultramarino na actual Maputo (1963), trabalhou para os escritórios da TAP em Luanda (1965), Joanesburgo (1965), Copenhaga (1968) e Frankfurt (1968); e fez duas obras para a embaixada de Portugal em Brasília (1976).

Em 1986, venceu o Prémio de Azulejaria da Câmara Municipal de Lisboa pelo painel Banco de Portugal. Destacam-se ainda em anos posteriores o revestimento da Estação Bela Vista, do Metro de Lisboa (1998), as intervenções no Santuário de São Bento da Porta Aberta, Rio Caldo (2002), e na Estação de Caminhos de Ferro de Penalva (2004), os azulejos da Biblioteca Municipal José Saramago, em Almada (2009), uma colecção de esculturas em biscuit para a Vista Alegre (2013). Pelo meio ficou a sua grande retrospectiva no Museu Nacional do Azulejo, em 1994, o ano em que Lisboa foi Capital Europeia da Cultura, e a exposição que a Galeria Objectismo, também na capital, dedicou aos primeiros 20 anos da sua produção cerâmica.

Querubim que tantas vezes era referido como o artista mais representado no espaço público lisboeta, nos últimos anos alertou para o estado de degradação que tinham atingido muitas das suas intervenções espalhadas pela cidade, acusando a autarquia de “falta de respeito pela arte”.

O corpo de Querubim Lapa estará em câmara ardente na Basílica da Estrela, em Lisboa, a partir das 17h desta terça-feira.