Se olharmos para o currículo de um homem como Steve Schapiro, para quem os 80 anos já ficaram para trás, é difícil imaginar que pode estar apenas à distância de um telefonema. Mas estava. Assim, tão simplesmente quanto isto, do outro lado da linha estava esta voz doce, um pouco trémula, de um homem que já fotografou as grandes marchas dos direitos humanos na América, da mesma maneira que fotografou Marlon Brando ou David Bowie. Sobre este acabou de lançar o livro “Bowie”, com imagens que nunca tinham visto a luz do dia.
Posso pedir-lhe para recuar até ao momento em que o agente Michael Lippman lhe ligou para fotografar David Bowie? O Steve já não era um novato, mas o Bowie também não.
Ele ligou-me e estava a perguntar-me se aceitaria fotografar o David Bowie, e eu respondi que sim ainda antes de ele terminar a frase. O David já era uma estrela incrível, um grande artista, e muitíssimo conhecido. A sua música era ótima. Era óbvio que aceitaria, nem era preciso perguntarem.
Já era um fã da música dele?
Ah, sim! Sem dúvida. Acho que, naquela altura, já todo o mundo era fã do David Bowie! Ele tinha criado estas personagens fantásticas, como o Ziggy. Mas eu estava muito entusiasmado com a ideia de o fotografar, só que ao mesmo tempo não sabia o que esperar. Não sabia como é que ele seria quando nos encontrássemos. Não sabia se estaria em modo rock’n’roll, se ia aparecer com roupas muito vistosas e sexy, se ia aparecer rodeado de uma grande equipa, se vinha carregado de grades de cerveja… Quando finalmente apareceu no estúdio estava sozinho, era extremamente calmo, superinteligente e muito orientado em relação ao que íamos fazer e ao que ele achava que esta sessão deveria ser. Noutras palavras: foi extremamente profissional na forma como abordou esta primeira sessão fotográfica. E todas as outras. Ele tinha noção completa do que queria que fosse cada sessão.
Era um homem em controlo?
Estava totalmente em controlo. Normalmente, quando trabalho com malta do rock’n’roll, eles raramente têm uma agenda do que querem fazer ou como querem aparecer. Mas o David sabia perfeitamente o que queria fazer.
Numa entrevista, Iman, que foi casada com David Bowie muitos anos, dizia que apesar de todas as suas personae artísticas, em casa ele era apenas o David. Também viu essa diferença entre o homem e as suas personagens?
Acho que este não é um livro sobre rock’n’roll, é um livro sobre o David. Sobretudo a última fotografia que, para mim, é muito tocante e dá uma noção muito especial do olhar que ele tem para a câmara. Com exceção talvez da foto verde, achei sempre que era o David que estava a olhar para mim, e não tanto as suas personagens.
Numa das fotos, David Bowie está rodeado de símbolos da cabala. Era um homem espiritual e que falava abertamente da sua espiritualidade?
Ele chegou, cumprimentou toda a gente e pediu aquela T-shirt a um dos meus assistentes. Foi para o camarim e foi ele que pintou aquelas riscas brancas de alto a baixo. E depois começou a desenhar aqueles círculos no papel de fundo e terminou a desenhar a árvore da vida. Ele tinha uma ideia completamente definida do que queria que fosse o tom da sessão e era um tom muito espiritual. Muito mais do que andar para ali a fazer voltas loucas ou coisas que fizesse em palco. Fiquei com a sensação de que aquela sessão servia para ele testar várias personae que, mais tarde, pudesse vir a usar em canções ou tournées. Na minha cabeça, aquilo foi, para ele, uma sessão de trabalho para desenvolver personagens e trabalhámos nisso juntos. Mas as ideias foram todas dele, eu limitei-me a trazê-las para a luz do dia.
Foi a mão-de-obra para as ideias dele?
Sim, em termos de ideias apenas colaborámos em termos de ideias para as fotos do fundo verde, que eram uma sessão para a revista “People”. Arranjámos um papel de parede que era de um verde pútrido. E quando estávamos a fotografar fartámo-nos de rir, a dizer que aquela era a pior cor de sempre para ser capa fosse do que fosse. E claro, depois, em 1976, uma dessas fotos foi capa da “People”.
Como reagiu quando viu no vídeo de “Lazarus”, do álbum “Blackstar”, Bowie usar essa mesma roupa das riscas brancas?
Fiquei muito surpreendido, foi muito emotivo para mim vê-lo outra vez com aquelas roupas. Quando fizemos aquela sessão, senti que ele tinha uma ligação espiritual muito forte com aquilo que estava a desenhar e a pensar e falar. Numa altura em que já sabia que não teria muito mais tempo para viver, o facto de ele ter regressado àquelas roupas que criou em 1974 e nunca mais usou fez-me pensar que estava num outro momento muito espiritual. Nunca esperei que ele fosse buscar aquela roupa.
Algures nos anos 80, ele convidou-o para o acompanhar em tournée, mas o Steve recusou. Porquê?
Foi um não carregado de muita tristeza da minha parte, mas ele ligou-me quando eu e a minha família estávamos literalmente a 15 minutos de entrarmos para o avião nas nossas primeiras férias em França. Não havia qualquer hipótese de poder fazer isto por ele. Tive de escolher entre o Bowie e a minha família, e escolhi a família. Mas mais tarde fiz uma sessão quando ele tocou o “Space Oditty” no “The Dick Clark Show”, em 1979. Mantivemos sempre o contacto.
Neste livro escreveu: “Working with genius is exhilarating. Working with Bowie was unforgettable.” Fotografou grandes eventos históricos e personalidades como Marlon Brando, Andy Warhol, Edie Sedgwick, Roman Polanski. O que fazia de Bowie o mais inesquecível?
O que mais admirava no Bowie é que não apenas ele era brilhante naquilo que fazia como tinha um sentido de crescimento. Os Rolling Stones, os Beatles fizeram música fantástica, obras-primas, mas basicamente a forma como atuam continua a ser a mesma. O Mick Jagger, por exemplo, continua praticamente a atuar da mesma forma que atuava no início da carreira. Os cenários até podem mudar, mas eles não. Já o Bowie pensava que tinha de mudar aquilo que era em cima do palco. Não sei se o fazia por se cansar das personagens, mas o seu brilhantismo também tinha a ver com isto e com o facto de ele continuar a crescer como artista e a seguir em frente, a transformar-se noutras pessoas. Muitas vezes perguntam-me o que me faz gostar de uma fotografia e sentir-me próximo dessa imagem, e não sei responder, mas ainda assim a imagem toca-me emocionalmente. Com o Bowie acontecia algo semelhante: havia algo nele com que toda a gente se relacionava e isso revela-se na tristeza que se sentiu no mundo pela sua morte prematura e que também se reflete no facto de este livro ter esgotado a primeira edição em dias.
Quando alguém dedica a vida a fotografar grandes figuras, tende a esquecer-se de si, a apagar-se?
Numa sessão fotográfica sou apenas uma mosca na parede.Tenho de ser capaz de aguardar pelo momento certo e pela imagem certa. E quando isso acontece sinto que fui bem-sucedido. Para mim, fotografar é mesmo tentar captar o espírito de alguém ou de um acontecimento.
Diria que foi essa capacidade de esperar discretamente pelo momento certo que fez com que tantos grandes nomes quisessem que os fotografasse…
Sou uma pessoa sossegada e isso ajuda… Não é o meu ego que interessa nas sessões, o que interessa é que as pessoas possam ser o que são e que eu registe isso. E também acho que é importante ter noção do que os rodeia e do que é o seu mundo.
É por isso que diz que, quando vai fotografar um filme, gosta de ler o guião?
Para um fotógrafo, a diferença entre fotografar um evento como eu fiz a campanha do Robert Kennedy ou várias marchas de direitos humanos, ou trabalhar numa filmagem, é que na vida real nunca sabemos o que vai acontecer. Ali, se lermos o guião, temos uma ideia do que vai acontecer. Mas como fotógrafo procuro a mesma coisa: o espírito de um evento, o espírito de uma pessoa.
Tem uma ideia do que vai acontecer exceto quando atiram um gato ao Marlon Brando?
Pois! Esse episódio foi muito engraçado. Estávamos nas filmagens d’“O Padrinho”, no escritório de Don Corleone, e havia por ali muitos gatos. O Francis Ford Coppola tinha a ideia de que o Marlon Brando era muito bom a improvisar e, quando começou a filmar, resolveu atirar um gato para o Marlon Brando, a achar que ele arranjaria alguma coisa para fazer com o gato. A cena não apareceu no filme, mas a imagem dele com o gato tornou-se uma imagem de marca do filme. Tenho muitas memórias deste género. Fui muito sortudo por ter fotografado pessoas muito carismáticas e importantes, quer na área artística quer na área política.
Mesmo assim, diz que ainda não tirou a fotografia da sua vida.Aliás, costumava dizer que seria o presidente Obama…
Sim, mas fotografei-o em março, no aniversário da Selma March. A minha mulher está aqui a dizer-me para responder o Papa. Se calhar… Há pouco tempo estive em Sampetersburgo e respondi que seria o Putin, mas o Papa penso que é muito melhor pessoa do que o Putin. A minha mulher tem toda a razão. Mas não, ainda não fiz a fotografia da minha vida.