O jazigo eficaz dos Capitão Fausto

O jazigo eficaz dos Capitão Fausto


Os “Capitão Fausto têm os dias contados”, de tal forma que esgotaram duas datas no Lux: hoje e amanhã. Antes disso percorremos o Cemitério dos Prazeres para ver se algum lugar lhes assentava. Pelo contrário, ao terceiro disco estão mais vivos do que nunca


Aqui jazem os Capitão Fausto. Não que estejam para morrer, que a certeza dá-lhes alergia. Convenhamos então que a ceifeira não tem que ser sempre escuridão, negritude a esquartejar o intelecto, pode bem, e no seu caso está visto que pode mesmo, servir de alabarda para dar a volta. Encontro marcado no Cemitério dos Prazeres, pois se os “Capitão Fausto têm os dias contados” carreguemos a sua coroa de flores, igual a dizer vamos-lá-escutar-o-silêncio-e-encenar-a-vossa morte.

Proposta fúnebre que desconhecia que Tomás Wallenstein e Francisco Ferreira faziam anos neste dia, quinta-feira dia 21 de Abril. Mais: “Há seis anos vim para cá no meu dia de anos, este sítio traz-me paz, adoro passear-me por aqui”, esclarece Tomás Wallenstein que, feito guia informal, nos guia até ao jazigo da família. Cenário situado algures entre o idílico e o desconfortável, lugar perfeito para se falar do novo disco – ou será melhor dizer vida? – dos Capitão Fausto.

Se já se suspeitava que era à terceira que era de vez, agora é o fim das dúvidas. Ainda que este episódio três da sua série, apesar de se agarrar a uma utopia de morte anunciada, não tenha sido concebido através do conceito que parece assumir. “Quando começámos [em março de 2015] não tínhamos ideia nenhuma senão fazer um disco e, quer dizer, nem sei se é bem um conceito, é um tema que anda a flutuar há volta das coisas, não sei se é assim tão conceptual, mas sim persegue esse tema de um apocalipse”, confessa Wallenstein enquanto nos aponta para a vista-Tejo que vemos dos Prazeres – o melhor nome para um cemitério, concordam os rapazes.

E já que estamos por aqui aproveitemos para enterrar os laivos psicadélicos que até aqui – com “Gazela” (2011) e “Pesar o Sol” (2014) – serviam de rosto a estes cinco. Agora há instrumentos de sopro à solta no disco, metais que eram miragem, outro jeito de tocar as cordas. Reflexo do faz-e-volta-a-fazer ou repete-repete-que-é-bom que cansa até os mais resistentes, excesso de estrada com as mesmas guitarras. “A dar concertos sente-se as coisas que dão gosto a tocar”, explica Wallenstein antes de prosseguir, sem querer faltar ao respeito ao que fizeram até aqui: “Aquelas já não estavam a ser tão empolgantes, então começámos a procurar sítios onde nos sentíamos mais confortáveis, assumindo que este é outro ciclo”.

Ciclo também foi este passeio matinal, sobretudo para quem desconhecia o quão distintos podem ser os jazigos, com formas e inscrições tão estranhas. Às tantas perguntamos o que colocariam na sua lápide e, entre os cinco, não se chega a nenhum consenso, algodão que jamais engana, os Capitão Fausto não estão prontos para morrer.

E bonito que é assistir à discórdia de um gangue de jovens pensantes, caso para dizer que para debater estão sempre prontos, nem que o assunto seja decidir se na faixa “Amanhã Tou Melhor”, o tou vai assim ou se pede que o verbo seja escrito por completo. Domingos Coimbra e Manuel Palha não eram senhores para dançar com esta abreviatura, mas lá aceitaram a valsa. Tomás Wallenstein, autor de todas as letras, começa por dizer que odeia que lhe mexam no caderno, porque, para ele, “uma letra é para ser ouvida a ser cantada, não é para ser lida, e deve ser o mais parecida possível com a linguagem corrente”, explica o vocalista da banda. Para nós, e se nos permitem um regozijo entre cruzes, é quase heróico que alguém, finalmente, se tenha apropriado do verbo tar, esse verbo sempre recorrente no diálogo mas que a sociedade e a literacia têm tentado ignorar.

Deixemo-nos de linguística mas sem largar a escrita, que é de relevo neste novo trabalho, ousemos dizer que Tomás Wallenstein nunca escreveu canções tão boas e ponderadas. Das letras retiram-se frases como “aos 26 não posso mais empatar” ou “se ao longe achar que nunca vai servir/ caguei eu escuso de me aproximar”, versos que indicam que os Capitão Fausto estão hoje num carrossel sem regresso, que já não volta o tempo da música pela música, dos refrães simpáticos e o concerto ao sábado. Os Capitão Fausto escolheram a música, só que ainda e sempre irónicos e bem-dispostos: “O facto de levarmos a atividade a sério não equivale a que o conteúdo tenha mais seriedade, há um grau de celeridade um bocadinho maior e temos consciência que temos que adotar algumas estratégias para ser um pouco mais produtivos. O tom, no entanto, pode continuar sarcástico, não é por termos que ser mais eficazes que não nos divertimos”, afiança Wallenstein.

Se a partir de “Capitão Fausto têm os dias contados” a maioridade se fixar aos 26 tudo bem, nada contra – desde que não alterem a legislação da carta, do tabaco e do álcool, claro. Embora aqui a maioridade seja uma palavra fraudulenta, que crescidos são eles, só não tinham uma sala de ensaios destas, em Alvalade, onde tudo brotou, onde têm espaço “para ensaiar, para estar cada um a fazer a sua coisa, para estar ao computador”, diz o músico sem esquecer: “[a sala] Materializa o facto de termos um espaço onde vamos todos os dias e onde encaramos esta atividade como uma coisa total”.

E a totalidade requer esforço, que aqui também é empregue a ter que lidar com um balcão das finanças que se encontra mesmo em frente à sua sala. Daí ouvir-se no tema “Semana em Semana”: “Se eu tenho o fisco à porta devo ser ladrão”. Sentimento que parece impor-se no disco, uma vontade de fugir ao fisco que embate contra a parede que dita que isso não é solução. “É mais um acaso fortuito e engraçado irmos parar a um sítio onde temos um balcão das finanças à porta, acho que todos nós na banda já andamos pelos cabelos com a situação de trabalhos a recibos verdes ou algo do género”, enquadra, antes de garantir que hoje está tudo saldado. E os dias contados.