João Pedro Mamede. “Vou pelo que sinto que é um risco maior do que o presente”

João Pedro Mamede. “Vou pelo que sinto que é um risco maior do que o presente”


Aos 24 anos qual promessa, certeza do teatro, tendo sido um dos fundadores d’Os Possessos. Agora é Tom Wingfield, em “Jardim Zoológico de Vidro”, que hoje estreia no Teatro da Politécnica pelos Artistas Unidos


DeTom Wingfield mais não esperamos que cumpra o seu horário no armazém de calçado e que à noite vá ao cinema. Em “Jardim Zoológico de Vidro”, de Tennessee Williams, que hoje estreia no Teatro da Politécnica, com encenação de Jorge Silva Melo, é esse o destino de João Pedro Mamede. Sucede-se uma fuga, repentina mas estudada, que a personagem – e neste caso o autor, Tom simboliza Tennessee Williams em palco – promove em busca de mais do que poemas em caixas de sapatos. A ida de João Pedro Mamede tem perna mais curta, de Almada para Lisboa, na altura de se assumir como ator e novo criador. É nos Artistas Unidos que se tem notabilizado, enquanto criou Os Possessos companhia onde é um dos três diretores artísticos, sim, que nunca é demasiado cedo para se começar. Aos 24 anos é um dos artistas mais proeminentes da sua geração, tendo recentemente participado no filme “Cartas da Guerra”, de Ivo M. Ferreira. Apresentado que está, diga-se que os dois intervenientes desta conversa se conhecem de intervalos em cafés com desconto para alunos, uma escola secundária almadense onde um seria arquiteto de renome e o outro rei da publicidade. Eis o que sobrou.

O que havia para ti antes do teatro, esplanadas e aulas para faltar? 

O teatro sempre esteve presente, era uma coisa que fazia ao sábado à tarde, lá em Almada, e depois quis fazer todos os dias. 

Uma espécie de hobby. 

Sim, estava tudo bem enquanto não foi uma grande escolha.

Antes disso já ias muito ao teatro ou eras um jovem perdido a vaguear?

Era um jovem perdido, não sabia onde me inscrever, não sabia o que fazer com a vida, com as notas que tinha que tirar, uma espécie de programação que estava presente. O teatro era importante porque era o único sítio onde podia expor coisas no tempo e no espaço, encontrar fraternidade. Era o sítio mais fixe para estar.

Se me lembro estudavas arte. 

Queria ser arquiteto. Era a profissão que foi mais fácil de aceitar para mim e para os meus pais, era uma coisa que me interessava, tinha membros da família que exercem, então, de repente, era possível.

Até que deixou de ser. 

Secretamente acho que já havia este outro desejo. Hoje a arquitetura perdeu-se, gosto de pensar em termos espaciais quando estou a trabalhar mas não é mais do que isso [risos].

Falavas de Almada. Foi importante para a tua formação enquanto artista?

Sem dúvida, precisamente pela oferta cultural que tem para a juventude, é uma cidade jovem. E lá está, acabei por participar numa formação profissional que é mais completa do que algumas escolas profissionais, era um grupo de vinte pessoas a trabalhar para construir um espetáculo ao longo do ano letivo. 

Na Cena Múltipla. 

Exato, era orientado pelo Francis Seleck, com quem continuei a trabalhar. Cheguei até lá através de um folheto num café. 

Consegues nomear um momento onde percebeste que era tempo de esquecer tudo o resto, que o caminho era por aqui?

Estive lá durante quatro anos, nos primeiros três trabalhámos texto, Fernando Pessoa, Karl Valentin e Farid Udi-Din Attar. E, no último ano, fizemos textos nossos, nesse espetáculo em que tive de construir o meu texto e pensar a cena com os meus colegas percebi que não se tratava apenas de ser ator mas pensar a cena como um lugar de encontro, de discussão. 

A escrita interessou-te à partida?

Sim, foi algo que fui sempre fazendo, sem grande génio e que continuo a querer fazer. Também porque preciso. 

Lembro-me de te ver no “Amadeus”, uma peça no D. Maria II de uma dimensão enorme, com um elenco incrível em que tinhas apenas uma fala…

Tinha 19 anos…

Como se lida com aquela imponência?

Falo muito desse espetáculo, foi o último espetáculo que houve cá do tempo das vacas gordas. 

E tu estiveste lá. 

Exato, a fazer um estágio não remunerado [risos]. Foi um espetáculo enorme e entretanto nunca mais participei em nenhum, foi uma oportunidade que eu e alguns colegas de Conservatório tivemos de experimentar o que era estar numa produção daquele tamanho. Estávamos a trabalhar com atores como o Ivo Canelas e o Diogo Infante. Falamos desse espetáculo para nos lembrarmos do que era vestir aquelas roupas de século XVIII e que a nossa missão era sobretudo vestir casacos e pôr cadeiras… e pronto tinha uma fala, não era mau.

Dirias que foi com o “Punk Rock” que começaste a ter mais atenção mediática?

A minha carta de apresentação foi o “A 20 de Novembro”, que era mais simples que o “Punk Rock”, era só eu e um saco, um trabalho que fiz com o Francis na continuidade da Cena Múltipla. Ele deu-me um texto para ler e eu “ok, bora”. Entretanto já estava no primeiro ano de Conservatório e depois nos Artistas Unidos continuei a fazer esse espetáculo, dois anos depois, e fi-lo de norte a sul. Apresentei-me. O “Punk Rock” foi a primeira vez que fiz um papel grande numa peça e correu muito bem. Mas não sei…

Não consegues medir, é isso?

Pois, não consigo dizer ao certo, mas que foi importante lá isso foi. 

Fundaste Os Possessos em 2013. Em que circunstâncias?

Éramos um grupo de cinco a fazer uma criação coletiva no exercício final da ESTC e não nos entendemos muito bem, exceto três de nós, que fundámos uma companhia. Ao longo deste processo percebemos que nos dávamos bem, hoje vamos sendo mais porque continuamos a convocar pessoas. Mas somos os três na direção artística. 

Com que motivações?

Os Possessos surgiram de uma vontade que tínhamos de trabalhar a partir de mitos e narrativas universais para fazer teatro e chegar a uma espécie de ficção comum com o espetador, tentar desbravar novos mundos. 

É paradoxal que se crie mais quando há cada vez menos dinheiro. 

Em termos financeiros está mesmo amargo, estas companhias estão todas a ser estranguladas. Em termos de criação há cada vez mais coisas, há cada vez mais público. Há urgência em continuar a criar porque há pessoas para encher as salas, agora ainda não descobri nem nos Artistas Unidos nem n’Os Possessos como é que isto se torna autossustentável.

A bilheteira não pode ser o único ganha-pão. 

Era incrível que fosse, há sítios onde consegue ser, mas aqui os bilhetes são 5€, no máximo 10€, nunca pagam a produção. 

Parece emergir uma espécie de nicho onde novas companhias se apresentam sem um lar próprio. Pode ser a solução? 

Não considero que haja assim tanta abertura por partes das estruturas teatrais já existentes para receber novos criadores, apesar de acontecer pontualmente. Fomos convidados há pouco tempo para o Teatro Nacional e correu muito bem mas não é a regra. Até porque é sempre inscrito num ciclo qualquer. Mas nós, Os Possessos, estamos à procura de um espaço, gostávamos de nos fixar e convidar pessoas. 

Aumentar a escala, portanto. 

Sim, se quisermos fazer um espetáculo grande onde é que vamos fazer? Só se alugarmos o Picadeiro, ou isso ou um convite que não me parece que vá acontecer tão cedo. Continuamos a trabalhar e a pensar espetáculos que são maiores do que nós próprios. 

És o Tom Wingfield neste “Jardim Zoológico de Vida”, uma espécie de alter-ego do Tennessee Williams, que, às tantas, abandona a família à procura de concretização pessoal. Entendes a fuga?

Também foi muito importante para mim sair de Almada para me instalar em Lisboa e trabalhar. Por isso percebo perfeitamente o Tennessee Williams, ele saiu de casa para conseguir escrever as peças que permitiram dar uma vida melhor à mãe e à irmã. 

Persegues esse desejo de partir? 

Talvez, penso muitas vezes nos EUA, até porque me interessava estudar outras coisas, são tudo castelos no ar ainda mas abrandando aqui… gostava de ir, num futuro próximo, gostava de estudar lá fora. Se isso é fugir, sim, assumo a fuga [risos]. 

O Tom trabalha num armazém de calçado mas sonha maior. O que te dizem estes ambientes de contrariedade profissional? 

Acho que apesar de tudo o Tom é um gajo que se aguenta bem no armazém escrevendo poemas nas tampas das caixas dos sapatos, ele consegue evadir-se mesmo lá dentro embora isso não seja suficiente…também tem uma vida frustrante em casa e muita distração à noite. Ele vai muito ao cinema, é um sonhador, a partir daí aquilo deve fazer um curto-circuito na cabeça dele. 

Ninguém vai tanto ao cinema com o Tom. Ou acreditas que seja possível?

O Tom provavelmente não vai só ao cinema, mas atenção, quando era mais novo e um cromo do teatro, a minha mãe não acreditava que fosse tantas vezes ao teatro mas percebo que seja de desconfiar. 

Por falar em cinema, participaste agora em “Cartas da Guerra”, do Ivo M. Ferreira. É uma linguagem que te interessa?

Muito. O cinema é muito interessante em relação ao teatro, fomos trabalhar para o meio da natureza, para o interior de Angola e foi incrível ver aquela coisa toda a montar-se. O ponto de partida do filme é lindíssimo que são as cartas do Lobo Antunes e tentar perceber como é que aqueles miúdos se aguentavam na Guerra Colonial…é incrível. 

Como é que é que um ator habituado a criar um mundo numa sala se salva quando é atirado para o meio da natureza. Presumo que tenhas tido uma tontura. 

Completamente, e já não sabia se ia sair dali, ou seja, foi arrebatador mas não deixou de ser assustador. O breve treino militar que tivemos para fazer o filme foi importante ganhar isso no corpo.

Viste o filme no Festival de Berlim. Como é que foi essa experiência? 

A Berlinale é um parque de diversões para estrelas de cinema e é de uma dimensão enorme, ver aquela sala cheia foi uma experiência estranha.

E televisão está nos planos?

Claro que não está fora da equação mas não é uma prioridade e não sei de nada. Não ponho fora de questão. 

Para quando uma encenação nos Artistas Unidos ou noutra grande casa? 

Não gosto da palavra desafios, mas gosto de arriscar, vou pelo que sinto que é um risco maior do que o presente.