Há coisas que nunca mudam. Mesmo 42 anos depois. Como o facto de, por exemplo, ano após ano ouvirmos os oligarcas a falar do “seu” 25 de abril. Eles são os amos da revolução. Para pessoas como Vasco Lourenço, e outros que repetem o mesmo género de dislates, o 25 de abril só é bom quando a esquerda (de preferência extrema) manda e comanda. Ah… só com a esquerda abril é abril. O homem democrático, o cidadão do fim da história só pode ser o militante da esquerda. Todos os outros, os que por acaso não partilham da mesma visão do mundo e que, por isso, não passam no teste do algodão democrático dos Vascos Lourenços da vida, têm “uma postura anti-25 de abril”. Um eufemismo para gente salazarenta. Não deixa de ser curiosa, e perigosa, essa ideia de que os créditos de uma revolução pela liberdade podem ser privatizados. Quarenta e dois anos depois, surpreende que para tantos ainda não seja evidente que o 25 de abril não tem propriedade. Abril não é dos militares nem dos partidos. Abril não é mais dos capitães do que é dos operários. É de cada um dos democratas portugueses por igual. No dia em que abril deixar de ser de todos para passar a ser apenas de alguns, então esse é o dia em que a liberdade de todos é sacrificada no altar da autoridade dos poucos.
Como se sabe, o 25 de abril assentou numa equação de três DD: a descolonização, a democratização e o desenvolvimento. Foram estes os três pilares da revolução. Quanto à descolonização, sabemos que foi o que foi: com os seus erros e virtudes, era muito difícil que um processo daquela magnitude não fosse traumático. Portugal mantinha, à entrada do último quartel do século xx, um dos maiores impérios do mundo. O desejo de autodeterminação das colónias era uma causa moral e politicamente justa. Só que essa ambição teve como consequências uma contração geopolítica sem precedentes na história nacional que implicou, de resto, uma reorientação no sentido estratégico do país. Virámo-nos para a Europa, facto que ainda hoje nos define. Sem grandes dúvidas, este é o único pilar da revolução verdadeiramente fechado.
Quanto à democratização: não há dúvida de que Portugal é uma democracia ao estilo ocidental, capaz de compatibilizar os princípios da economia de mercado, do primado da lei e ainda a existência de um Estado social. Todavia, o país falhou no alargamento da ideia de democracia. É verdade que temos uma democracia política, mas estamos longe de ter no país um conceito holístico de democracia. Não temos uma democracia económica ou social. A ideia de que as regras não se aplicam a todos da mesma maneira ou de que não há igualdade no acesso às oportunidades tem minado o processo de democratização. Nessa medida, precisamos urgentemente de encetar um movimento de redemocratização. Isto é, um movimento que não é de alargamento externo da democracia, mas de redemocratização interna da própria noção de democracia. Precisamos de incutir confiança no sistema, de trazer as pessoas para o processo de decisão. O aprofundamento das ferramentas de democracia participativa é uma boa maneira de alcançar esse objetivo. A democracia participativa é uma nova forma de estar na política. É a nova política que visa reformar a velha política. Uma política cristalizada por um sistema que herdámos de 1974, sistema esse que insiste em apontar caminhos que os cidadãos não escolheram livremente. E isto leva-me ao último D: o desenvolvimento. Para alguém que tivesse consciência política nos anos 60 e 70, para não ir mais longe, o Portugal de hoje e de ontem não tem comparação. Mas isso não é evidente para quem nasceu depois disso. Os momentos difíceis que o país vem atravessando, há décadas, impedem-nos de ver com clareza o D de desenvolvimento. Sendo abril um horizonte de realização coletiva, um projeto de um futuro fraterno e solidário, o país precisa desesperadamente de um ciclo de desenvolvimento democrático e duradouro. Essa necessidade é incompatível com a cristalização que se faz do espírito de abril. A democracia, que está sempre na ponta da língua de todos os partidos, deixará de o ser quando o conformismo substituir o confronto, quando o unanimismo ocupar o lugar do pluralismo ou quando o imobilismo engolir a reforma. Abril não pode ser uma relíquia. Não pode ser passado. Porque trata da liberdade, da democracia, da responsabilidade e dos valores que crescem organicamente com os espíritos plurais, abril tem também de ser mudança e audácia. Também tem de ser futuro. Um futuro que inclua todos os portugueses, não apenas os que se julgam donos da revolução.