É desta que o país fica mais amigo das famílias?

É desta que o país fica mais amigo das famílias?


O parlamento discute hoje o alargamento da licença de maternidade. A lei pode ajudar, mas as mães admitem que existem alguns problemas de consciência que impedem de usufruir de todos os direitos. Há discriminação, mas também lutas internas: ter filhos mais tarde significa sentir que se tem mais a perder na carreira.


Carina nunca se tinha metido em nada do género. “A minha única participação cívica era votar”, sorri. Em novembro lançou uma petição a pedir o alargamento da licença de maternidade para os seis meses, mais um mês do que é possível até aqui quando só um progenitor, no caso a mãe, usufrui deste direito. A inexperiência era tanta que às primeiras centenas de assinaturas teve de mudar a iniciativa de site: percebeu que, sem números de identificação, não ia poder entregá-la no parlamento. “Quis fazer tudo certinho para ter impacto”, conta.

Quando chegaram às 4000 assinaturas, enviou a petição aos deputados. E ao saber da marcação da discussão, que acontece hoje em S. Bento, não conteve a alegria. Tanto que vem do Porto com o marido e os dois filhos para a assistir ao debate nas galerias.

Em cima da mesa estão propostas do Bloco de Esquerda e do PAN e, nos últimos dias, surgiu também uma petição da Ordem dos Médicos. Todas para aumentar os direitos dos pais. O desfecho depois dos trabalhos na especialidade ainda é incerto mas, para Carina, não há dúvidas: o esforço já valeu a pena. 

Até ontem mais de 32 mil pessoas tinham assinado o seu pedido de alargamento da licença da mãe para os seis meses, “pela saúde dos bebés”. Missão cumprida, já que promover o direito à amamentação foi a motivação desde o início. A gestora de 35 anos sempre quis amamentar o máximo possível e logo na primeira gravidez planeou tudo à risca. Miguel ia nascer na primavera. Como os seus cinco meses de licença iam terminar em agosto, ia colar as férias para dar de mamar sem ter de regressar ao trabalho pelo meio. Ia… só que o rapaz foi apressado e trocou as voltas à futura mãe, que depressa percebeu que, mesmo quem já está plenamente informado das vantagens para a saúde de amamentar em exclusividade até aos seis meses, pode ter problemas práticos. “No  trabalho só podia ter férias em agosto. Como ele ia nascer, e nasceu mesmo duas semanas mais cedo, tinha de ir trabalhar a dar de mamar.”

Experimentou a bomba de extração de leite e não correu muito bem. Teve então de fazer contas. O marido não podia tirar licença. Ela tinha uma opção: depois da licença inicial, os pais podem pedir mais três de licença alargada com um subsídio de 25% do salário. 

Mas sendo “mãe de primeira viagem”, como se chama às estreantes nestas matérias, Carina não sabia que podia tirar apenas um mês neste regime. Como não dava para ficar tanto tempo a receber tão pouco, acabou por pedir duas semanas de licença sem vencimento no trabalho. “Podia ter optado por levar a bomba para o trabalho como fazem muitas pessoas, mas faz sentido transformar aquilo que deve ser um momento íntimo numa ordenha?”, questiona.  
Dois anos depois, quando nasceu Rodrigo, já estava mais informada, mas a solução não foi muito melhor. “Um mês a receber um quarto do salário é difícil. No nosso caso não tivemos de abdicar de nada porque tínhamos poupanças. Mas a questão é: e quem não o pode fazer?”
Foi a pensar em tudo isto, e depois de ver um relatório com conclusões parecidas da rede Internacional Pró-alimentação Infantil, que surgiu a petição. Agora, com propostas concretas em cima da mesa, a gestora acredita que há sinais de que o país pode mesmo ficar mais amigo das famílias. Mas será a lei suficiente?

Ficar ou não ficar

Mais tempo, seja para cumprir as recomendações da Organização Mundial de Saúde sobre amamentação ou, simplesmente, para pais e filhos  poderem estar juntos com menos correrias, é a tónica de todas as propostas. Mas se os apelos são consensuais, há reflexões mais subtis do que as conquistas da lei na hora de perceber o que impede mães e pais de aproveitarem mais vezes (e melhor) os seus direitos. 

Carina não tem qualquer dúvida: ficaria em casa mais tempo se a penalização financeira fosse menor. Pelo menos menor que ficar só a receber um quarto do salário, como lhe aconteceu. “Se pudesse viver só com um quarto do salário não trabalhava”. Mas a gestora reconhece que as expetativas pessoais, que são um reflexo da personalidade mas também de uma sociedade em que as mulheres ainda têm de mostrar mais desempenho no trabalho, acabam por poder ser um entrave. 

“Antes do primeiro filho também tinha dúvidas se ia gostar de estar tantos meses afastada”, lembra a gestora. No seu caso, as dúvidas dissiparam-se e assim ficaram (“as prioridades mudam e pronto”), mas nem sempre é tudo tão taxativo. Maria, gestora de projetos de 31 anos, foi mãe pela primeira vez há dois meses e meio. Tirou cinco meses de licença e o pai vai gozar o sexto, regime em que hoje recebem 83% do salário. Apesar de defender que os pais devem estar o máximo de tempo em casa com os filhos, admite que a carreira vai sempre dividi-la um pouco. “Não digo agora, porque ainda é tudo muito exigente. Ainda há dias comentei com o meu marido que ando mais esgotada do que quando tinha uma semana de eventos fora. Mas, se calhar, daqui a uns tempos, começo a sentir maior vontade de regressar.”

No trabalho, Maria teve o cuidado de gerir as expetativas do chefe. “Disse logo que ia tirar os cinco meses. Muitas pessoas tiram quatro e sabia que, tendo um papel importante, quanto mais tempo estivesse fora mais difícil.” A compreensão que a empresa mostrou desde o início foi essencial no processo, admite.  “Acho que sou um caso um bocado especial. Estou na empresa há um ano e, na entrevista de emprego, uma das primeiras coisas que disse foi que queria engravidar. A reação foi boa, o que tira logo alguma pressão. O meu patrão diz-me ‘volta fazes falta’ mas não sinto que me quis condicionar.” 

Durante a gravidez

Maria deu o máximo, “compensou” a aposta que fizeram nela. Mas agora sabe que vai ter de ser diferente. E se a conforta saber que a chefia também tem noção disso, não é fácil imaginar-se nesse recomeço. “Entro às 9h30 e saía quase depois das 20h, o que quando voltar é um bocado impensável.” A energia que até aqui canalizava no trabalho passou a ter como centro a filha Maria do Carmo e isso é uma mudança importante e irreversível, acredita. O que para muitas pessoas que não tenham a mesma abertura no trabalho pode ser um factor de stress na altura de tirar licenças ou usufruir da redução de horário. “Tenho a noção que nada vai ser como era. Vou agarrar os meus clientes e não acho que vou trabalhar menos, mas vou voltar a mesma Maria. Vai ser talvez como entrar de novo, como o primeiro dia de emprego.”

A dois meses e meio desse regresso, acredita que poderá, em última instância, ser ela o seu próprio obstáculo. “Sinto que estão preparados para me receber, eu é que também gosto tanto do que faço que vou ter de aprender a gerir o meu tempo e o que sinto.” 

Filhos mais tarde

No espaço de uma geração, a idade média da mulher ao primeiro filho aumentou seis anos. Passou dos 24 anos para os 30. O facto de muitas vezes o motivo ser o investimento na carreira parece contribuir para os problemas de consciência que por vezes surgem na maternidade. Há mais a perder. 

Catarina, advogada de 31 anos e também mãe há dois meses e meio, admite que nunca o sentiu vindo dos outros. Mas, quando teve de decidir a duração da licença, a ideia de que podia perder o passo pesou um bocadinho. 

Vai tirar cinco meses e o pai tira o sexto. Primeiro pensou em quatro, mas achou que a diferença não era muita. Alargar para os oito já não foi opção e admite que, sendo prolongadas as licenças com nova legislação, provavelmente não ficaria muito mais tempo em casa. “Neste momento um corte de 25% no vencimento seria muito, que acima de tudo acho uma segregação: é só para quem pode. Mas além disso, se calhar também porque somos um departamento só de mulheres na empresa, senti um bocado aquela competição normal mas que nos faz recear perder o ritmo. Não é nada muito concreto, é ouvir os colegas dizer que quando não estivermos asseguram isto ou aquilo.”

Se muitos destes receios, no seu caso, foram sobretudo coisas da sua cabeça, Catarina admite que na advocacia a pressão é muitas vezes objetiva. Porque a lei não garante sequer os direitos hoje já conquistados. “Tenho colegas de curso que trabalham em escritórios de advogados mais pequenos e só conseguem tirar dois ou três meses por que a lei só obriga a adiar os julgamentos por dois meses. Mais tempo depende do bom senso.” A lei de que fala Catarina é de 2009, quando a licença era de três meses. Nunca foi actualizada.

O preconceito

Apesar de nunca o ter sentido na pele, Catarina vê sinais de que ainda há muito a mudar na forma como a sociedade encara a parentalidade. Há tempos a irmã foi a uma entrevista de trabalho e perguntaram-lhe se estava a pensar engravidar. “Disse logo que não tinham nada a ver com a vida amorosa dela mas se calhar muitas pessoas consentem.” 

Se para as mulheres a discriminação no mundo do trabalho é histórica, nos aspectos da parentalidade os homens, se calhar, estão a sofrer mais – e dados revelados ao i pela tutela mostram que só um terço partilha a licença com as mães. Número que não tem sofrido grande aumento.

O marido de Catarina, engenheiro, vai tirar um mês de licença. Mas, apesar de trabalharem na mesma empresa, o processo foi menos tranquilo. “Quando avisou que ia tirar o sexto mês o chefe disse que não podia ficar sem ele tanto tempo. Acabou por ter de ficar 15 dias de cada vez.” E, quando a filha nasceu, depois de estar as primeiras duas semanas em casa, o pai passou a terceira semana de vida da bebé a chegar mais tarde do que ambos gostariam. “Não era por querer mas não houve sensibilidade para uma carga de trabalho menor. Para mim foi complicado gerir tudo e ele também acabou por ter pena de não estar tanto tempo como gostava naquela altura.”  
Em muitas casas, começarão aqui os atritos. “O pai acaba por ter pressão dos dois lados”, diz Catarina. “Tem mais exigências em casa: hoje um pai que não mude fraldas não é aceitável. Por outro lado, falta compreensão no trabalho e se calhar ainda ouvem bocas dos colegas.”
 
O que faz falta

Mais certo do que gozar licenças mais longas está a convição de que as reduções de horário são para aproveitar e, se fossem por mais tempo, ajudava. 

Luísa, investigadora de 40 anos, admite que no seu caso uma licença de seis ou sete meses seria demasiado tempo. Foi mãe há oito anos e aos quatro meses de licença, quando o filho ficou mais autónomo, confessa que já estava a ficar um pouco cansada das conversas repetidas em torno dos cocós e fraldas. “Não é por mal, mas as pessoas pensam que queremos falar só disso. Tive de pedir para me falarem de trabalho, de política e dos livros que andavam a ler. Cheguei a organizar reuniões de tupperware e aproveitei os tempos mais livres para remodelar a casa.” 

A certa altura começou a fazer algum trabalho a partir de casa, mas reconhece que isso tem muito a ver com a pressão que existe no mundo científico para estarem sempre atualizados. Em particular para mulheres com cargos de maior responsabilidade. “Chegam a sair 20 ou  30 artigos por mês e temos de acompanhar o que se passa.”

Para Luísa, a legislação actual em Portugal não é má, falha é na aplicação e porque nem todos os trabalhos permitem a flexibilidade no horário que tem no seu, em que pode aproveitar a noite ou o fim de semana sem falhar os compromissos familiares. E por isso diz ser positivo haver uma legislação mais amiga da parentalidade, porque nem os pais nem os bebés são todos iguais e sobretudo quando são mais pequenos devem poder estar presentes sem que a culpa e o sacrífico da carreira e dos ordenados seja demasiado. 

Se pudesse contribuir com uma ideia para o debate, contudo, já tem pensado que a mãe ou o pai terem mais um dia livre por semana faria mais sentido do que uma redução de duas horas. “Sou apologista de que devemos estar no trabalho a 100% e com os nossos filhos a 100%, mas com as actividades, consultas e reuniões por vezes as coisas misturam-se. Devia haver um dia para gerir melhor tudo.” 

Maria e Catarina concordam que uma medida de género ou, mesmo isenção de horário ou a concretização do teletrabalho, teriam um maior efeito. Primeiro porque imaginam que muito possivelmente vão gastar parte das duas horas de redução de horário no trânsito. Por outro, porque apesar de poderem sair mais cedo, não se imaginam a trabalhar menos. “Vou sair às cinco para a ir buscar à creche, mas sei que provavelmente vou pegar no computador à noite e trazer toneladas de trabalho para casa”, diz Catarina. 

Mais produtivos Aprender a gerir o tempo de outra forma é grande expectativa e Carina acredita que essa é uma aprendizagem quase natural para os pais.
A gestora defende mesmo que, muitas vezes, quem sai a ganhar com a milagrosa capacidade de fazerem esticar o tempo são os empregadores. E só isso devia ser um argumento de peso na hora de tornar a sociedade mais amiga da família. “Há estudos que mostram que as mães são mais produtivas. E só podem ser: no meu primeiro filho às vezes só almoçava às 16h com tudo o que tinha para tratar. Com o segundo já conseguia fazer tudo mais rápido porque tinha de dar de comer ao mais velho à hora certa. Se conseguimos fazer isto em casa, no trabalho podemos ser muito melhores, por exemplo a gerir os tempos mortos.” 
Catarina também acredita que a forma como hoje consegue planear tudo vai ajudar a organizar o trabalho. E acrescenta que, bem aproveitada, a licença até pode tornar o regresso mais motivador. No seu caso, e antecipando que ia ter algum tempo mais livre, propôs à empresa concretizar um estudo sobre a aplicação do Direito no seu sector. “A ideia é escrever um artigo científico, sem prazos, mas aproveitando o tempo que não tinha no dia-a-dia.” Nos primeiros tempos foi impossível mas agora, quando a filha está mais sossegada, já tem pegado no trabalho.
Se a amplificação da discussão e uma legislação um bocadinho mais generosa contribuir para mais sensibilização e menos pressão interna e externa já é uma batalha ganha, sente Carina. As outras mães concordam. “Se se falar mais disto e passar a ser possível tirar sete meses ou oito, talvez uma pessoa consiga tirar cinco ou seis meses sem pensar tanto nas consequências”, diz Catarina.