Howard Marks. Morreu o mais charmoso dos dealers

Howard Marks. Morreu o mais charmoso dos dealers


O traficante de droga que virou escritor perdeu a batalha contra o canccro. Tinha 70 anos


Nunca um traficante de droga gerou tanta simpatia como Howard Marks, ou Mr. Nice, como é mais conhecido. O dealer transformado em escritor cuja vida deu um filme, morreu ontem, aos 70 anos, depois de, em janeiro de 2015, ter revelado que tinha um cancro inoperável, no cólon. À data, numa entrevista ao “Observer”, confessou que teve de “aprender a chorar” para conseguir aceitar que ia morrer.

Quando, na juventude, o galês Howard Marks se dedicou aos estudos de Física na Universidade de Oxford, pouco faria adivinhar que acabaria por optar por outra carreira, daquelas para as quais não há licenciatura. Mas na verdade foi justamente na conceituada instituição de ensino que teve o primeiro contacto com drogas. Formou-se em 1967, mas acabou por trocar um convite para uma carreira académica, por uma carreira no tráfico de droga. Marks começou por vender a uma rede de amigos e conhecidos, mas depressa se tornou num dos maiores traficantes de cannabis de toda a Europa. Sempre de cannabis. Como viu um amigo morrer com uma overdose de heroína, sempre recusou traficar as chamadas drogas pesadas.

Em 1973 teve o primeiro encontro com a polícia, ao ser detido na Holanda e acusado de tráfico de droga. Foi um conterrâneo galês que o salvou da prisão, ao revelar que Marks estava infiltrado no IRA, a pedido do MI6. Ainda assim extraditado para Inglaterra, Mr. Nice pôs-se em fuga, tendo andado a monte seis anos e meio – continuando sempre a traficar -, até voltar a ser detido, em 1980. Mais uma vez foi o trunfo da ligação ao MI6 que o salvou da prisão

Ao longo de mais de 20 anos como traficante, Howard Marks teve perto de 50 nomes, 89 números de telefone e 25 empresas como fachadas para lavagem de dinheiro, tendo vivido nos quatro cantos do mundo. Ficaram conhecidas as suas técnicas pouco ortodoxas e que envolviam traficar a droga através de tournées de bandas de rock através dos EUA.

Mr. Nice acabou por ser preso em Maiorca, Espanha, em 1988, numa altura em que parecia até retirado do negócio. Foi a obsessão do agente da DEA, Craig Lovato, que ditou que fosse apanhado. Depois de extraditado para os EUA, acabou condenado a 25 anos de prisão. Cumpriu apenas sete, na prisão de alta segurança Terre Haute, período durante o qual ensinou gramática e filosofia aos outros presos. Foi libertado em 1995 e um ano depois publicava a sua biografia “Mr. Nice”, que escreveu no cárcere.

A obra tornou-o conhecido do grande público e vendeu mais de um milhão de cópias e acabou, em 2010, por ser transformada em filme, também intitulado “Mr. Nice”, e protagonizado por Rhys Ifans.

Afastado do tráfico, Howard Marks passou a dedicar-se à stand up comedy, enchendo todas as salas por onde passou, sempre com o seu charro na mão, e à música, tendo tocado com bandas como os Super Furry Animals, que inclusive lhe dedicaram o tema “Hangin’ With Howard Marks”. E nunca mais deixou de escrever. Publicou, entre outros, “The Howard Marks Book of Dope Stories” (2001), “Señor Nice: Straight Life from Wales to South America” (2006), “Sympathy for the Devil” (2011), “The Score” (2013) e “My Last Pill and Testament” (2015), além de ter escrito regularmente para jornais como o “Guardian” e o “Observer”.

Além disto, Marks tornou-se uma espécie de embaixador em defesa da legalização da cannabis, viajando por todo o mundo para contar a sua história. “Claro que se deve ver com bons olhos a legalização da marijuana para uso médico, mas pessoalmente nunca quis esperar por ter cancro para poder fumar legalmente. Quero que seja legalizada para consumo recreativo – e fico satisfeito por ver que já assim é em quatro Estados norte-americanos. Depois da minha experiência com o sistema legal dos EUA, este era o último país do mundo que imaginei que fosse liderar esta vaga”, disse numa entrevista ao “Guardian”, ainda antes de imaginar que tinha cancro.

Em relação à sua escolha de carreira, diz que apenas se entristece por ter causado sofrimento à mulher e filhos. De resto, assumiu sempre que não tinha arrependimentos na vida. “Traficar cannabis permitiu-me um maravilhoso estilo de vida, que incluiu conhecer um permanente choque de culturas, ter quantidades absurdas de dinheiro e ainda sentir o conforto de saber que permiti que tanta gente apanhasse ‘uma pedrada’.”

Uma ideia partilhada pelo ator Keith Allen, amigo de Howard Marks, que curiosamente tem um pequeno papel de traficante de droga, em “Trainspotting”: “O Howard devia receber uma condecoração do Império Inglês por ter mantido o país pedrado durante as décadas de 1970/80 e outra pelo que fez depois de sair da prisão e regressar ao país. É um dos mais inteligentes, simpáticos e charmosos dos velhos trapaceiros com quem tive o prazer de privar. É uma instituição do país de Gales e um herói nacional e será sempre acarinhado desta forma.”

raquel.carrilho@ionline.pt