Para as gerações mais velhas, nunca houve qualquer espaço para dúvidas: havia rapazes e raparigas, homens e mulheres. Mas para as gerações mais jovens, sobretudo os agora chamados millenials, os tais que nasceram depois de 1995, não sabem o que é um cheque e para quem todas as frases começam com um #, o género já não obedece a critérios binários. Há todo um mundo entre os adjetivos masculino e feminino.
Mas se, durante anos, falar de género era falar de igualdade de género, hoje em dia é falar de multiplicidade de géneros, ou os “mil géneros”, como explica, por exemplo, o investigador do ISCTE João Manuel Oliveira, especialista em questões de género: “Os estudos de género vão fazer uma releitura do conceito de género que vai deixar de se referir ao binarismo, assente na ideia de diferença sexual, como fez Judith Butler [filósofa norte-americana, uma das principais teóricas contemporâneas do feminismo]. Assim, o género vai passar a ser pensado a partir de outras coordenadas, para lá da estrita identidade, mas como um conjunto de normas sociais que visam garantir quer a heterossexualidade hegemónica, quer as normas de reconhecimento social da subjetividade de género, abrindo o género a uma grande amplitude, que passa a incluir pessoas de género não binário, orientações sexuais e possibilidades queer – queer no sentido de pessoas que estão ativamente a questionar as normas de género. Esta leitura não ignora a dimensão crítica às políticas, biopolíticas e necropolíticas de género que os Estados promovem, as Gisbertas que morrem às mãos destes Estados que deixam as normas prevalecer sobre a democracia. Nomeadamente quando policiam as fronteiras de género por forma a mantê-las completamente impermeáveis e estanques, como garrote binário de impedimento à diversidade e multiplicidade dos géneros.”
De facto, os estudos indicam que, numa fase inicial da vida, este “garrote binário” não existe. As definições de género são naturalmente flexíveis. No entanto, depressa as crianças começam a adotar os estereótipos que naturalmente as rodeiam – como as raparigas acharem que devem escolher roupa cor-de-rosa, e os rapazes roupa azul. Com os anos, o conceito de género tende a tornar-se bastante estanque, uma realidade que não se altera na vida adulta. Bem pelo contrário.
Esta era a realidade existente até há bem pouco tempo, assente num outro conceito de que falar de género ou de sexo era a mesma coisa. Mas sexo e género não são necessariamente a mesma coisa. Sexo foi determinado pelos cromossomas. E se, na maior parte dos casos, e até há relativamente pouco tempo, não se questionava sequer a possibilidade de existirem diferenças entre aquilo que os cromossomas definiam como o sexo de uma pessoa e o género que essa pessoa reconhecia como seu, as novas gerações rejeitam, de forma cada vez mais veemente, essa binariedade, conferindo um peso crescente à influência da sociedade na definição do género. E isto não tem necessariamente a ver com práticas sexuais ou afirmação da sexualidade. Uma mulher que diga que não se reconhece exclusivamente nesse título não está com isto a dizer que é homossexual ou sequer transexual, está apenas a questionar se as convenções e definições passadas ainda fazem sentido.
Foi o que aconteceu, por exemplo, com a atriz australiana RubyRose, uma das protagonistas da série “Orange Is the New Black”, ou a ainda mais conhecida Miley Cyrus, que já reconheceu não se conseguir limitar à designação de feminino ou masculino, preferindo identificar-se com o conceito de “sexualmente fluida”. A reação imediata, para muitos, pode variar entre o questionar se não serão estas meras atitudes contestatárias ou modas, mas a verdade é que os estudos, feitos um pouco por todo o mundo, reforçam esta ideia do fim da abordagem binária ao género. Por exemplo, num inquérito conduzido pelo Intelligence Group, 60% das pessoas consideram que as fronteiras entre os géneros se esbateram. Já o jornal inglês “The Guardian” desafiou os seus leitores mais jovens para ajudarem a retratar o género da geração millenial. Receberam 914 respostas, provenientes de 65 países, sendo a idade média dos participantes de 22 anos. As respostas variaram entre aqueles que se assumiram confortáveis com as definições tradicionais de género e outros que se identificaram como multigénero, género fluido, género neutro ou transgénero.
Com isto em mente, algumas universidades norte-americanas passaram a aceitar o uso do pronome considerado neutro “they” como substituto do “she” e do “he”. “They” foi, de resto, considerada a palavra do ano de 2015 pela American Dialect Society. Até as redes sociais passaram, sobretudo ao longo do último ano, a refletir estas mudanças: o Facebook norte-americano, por exemplo, passou a permitir que as pessoas definissem os seus perfis usando outras opções que não apenas masculino e feminino.
O género passou assim a ser mais do que uma assunção de estigmas e estereótipos, uma afirmação da individualidade, uma forma de expressão, explica o investigador João Manuel Oliveira: “O género também deve ser lido como potência e como forma de expressão. As questões relacionadas com a despatologização da transexualidade e com a emergência de novas identificações e expressões de género implicam que comecemos a falar de democracia de género quando discutimos a própria democracia, implica que passemos a aceitar o género a que a pessoa diz pertencer.”