Frei Luís de Sousa.  A teia mais perigosa de Garrett

Frei Luís de Sousa. A teia mais perigosa de Garrett


O clássico de Almeida Garrett, pela mão de Rogério de Carvalho, fica em Almada até dia 30 


Um elefante nunca fica bem numa sala. É difícil chegar à janela para fumar o cigarro que sempre sucede a um jantar. Refeição que se fez apertada, que com um animal destes entre os presentes não há mesa que resista a tanta cadeira. Um simples “mãe, podes-me passar o sumo?” é sujeito a entraves pouco comuns. Ainda que o elefante seja figurado, não deixa de impor respeito. Numa família cuja matriarca já vai no segundo casamento é natural que o elefante seja o primeiro marido. D. João de Portugal (Alberto Quaresma) perdeu-se nos recantos sangrentos da Batalha de Alcácer-Quibir e bem sabemos que esperar – durante anos e anos – é uma qualidade apenas ao alcance dos melhores. D.Madalena de Vilhena (Teresa Gafeira) não só não esperou, como se apaixonou por D. Manuel de Sousa Coutinho (António Fonseca) ainda os barcos não haviam saído do cais em direção a África. “Frei Luís de Sousa”, uma obra obrigatória de Almeida Garrett e, por consequência do teatro português, está em cena no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada. Por lá fica até 30 de abril com encenação de Rogério de Carvalho. 

Apesar de ser um dos textos mais representados, um dos enredos mais estudados, nem sempre se toma “Frei Luís de Sousa” com a seriedade que este texto exige. Não é só a linguística, não são apenas as distinções de um português, à época, arcaico, longínquo do que temos hoje. É o próprio encenador que o admite: “O texto é complexo, é uma espécie de labiríntico onde às vezes o sentido das frases não são claras, têm que se descodificar o que o Garrett quer e propõe”. 
O convite que a Companhia de Teatro de Almada endereçou a Rogério de Carvalho surge como rebuçado desafiante, uma espécie de pegar o touro pelos cornos, um touro que até aqui não lhe dizia grande coisa. “Fugia dele, até porque se diz que não é muito favorável utilizar o texto de forma integral para construir um espetáculo, algo que não me interessava. Depois de ler o texto, de começar a trabalhar com os atores, termos discutido várias situações, fomos, cada vez mais, caminhando na descoberta do mesmo. Foi a descoberta que mais me impressionou e que hoje considero ser um dos grandes textos que me passou pelas mãos”, admite. 

O malandro do elefante é que teima em não dar de si, em não arredar pé. Sobretudo quando existe um aio, Telmo (Marques d’Arede) que serve D. Madalena desde o tempo em que esta era casada com D. João de Portugal, igual a dizer que os demónios do passado são sempre do presente. Mais grave se torna a situação quando este género de mensagens – não assim, não detalhadamente – para uma filha que devia ser criança mas que pensa como um adulto, ou algo a meio caminho. 

A par do drama familiar de demasiadas entrelinhas une-se o caos social que se vive em Lisboa, num país que não suporta os filipes que por aqui reinam. Só que a Rogério de Carvalho, a situação política e social é o mais acessível que se pode retirar daquele palco: “Essa zona política e ideológica, do tempo de Garrett, e que acaba também por ser o nosso, já que andamos de crise em crise, é relativamente superficial. Depois, as relações do inconsciente de cada personagem, as relações com os outros e as relações enquadradas num presente e num passado. Tudo isto cria uma neblina, uma zona densa no centro do espetáculo. É quase como um rio, a água corre, o rio está lá, mas por baixo há um ecossistema”. 

O pior, nessa dança das relações, é quando o elefante larga o vício de ser figurado. Salve-se quem puder.