Adília Lopes e os críticos que lhe douram a pílula

Adília Lopes e os críticos que lhe douram a pílula


Continua a sangria e um entendimento muito especial entre a poeta e uma estirpe de ‘críticos’ que a festejam como um exemplar vivo exposto no museu da discursividade fantasiosa que serve mil referências e se serve dela para montar um arraial de jogos alusivos em que vale tudo e tudo junto vale pouco ou nada


Diz ela do alto do seu deslumbramento de esfinge patareca que não acaba de gaguejar a récita: “Mighty Aphrodite”: “os orgasmos/ das osgas”. E ele, do outro lado, acolhe esta “notação mínima”, tomando-a na sua multi-função, entre um “espírito quase dadaísta”, que “quase converte o poema num artefacto da sonoridade, em que o núcleo silábico “gas” se repete de uma forma aparentemente (ou efectivamente?) aleatória e em que a sequência ‘os’ flui entre as duas palavras.

É crítica haute-couture, a fundir ciência e esoterismo o que devemos esperar se se entrega a empreitada a um crítico astrólogo do nível de um Hugo Pinto Santos. Podemos contar com as mais inusitadas configurações de astros, a vénia das constelações, sóis catrapiscando pasmados diante do traço breve de ranho de um caracol numa superfície (ó mundo, o que tu choras no rasto de brilho e nojo das tuas pequenas criaturas!). “Claro que o título não pode senão configurar um organismo de possibilidades”… Claro, repetimos nós. E até onde vai esse organismo?, pois vai pela “ironia em relação à película de Woody Allen” mas “sem atingir uma radicalidade letrista, à Isidore Isou, nem o seu escárnio da ‘carpintaria da palavra construída para durar sempre’”.

Adília Lopes é a tal que se tornou “um happening que só acaba quando eu me for embora” – título fanado a um verso da autora e que assenta incomodamente sobre o texto já que, parecendo sugerir um certo rasgo, acaba traído como uma coroa larga para uma cabeça que para não variar rebusca-se toda num malabarismo de palavras que atam nós desnecessários sem amarrar qualquer compreensão minimamente inquietante ou algum sentido cirúrgico, lúcido, ficando muito aquém de alguma correspondência de hipóteses mágica. Adília é hoje a personagem mais “I’ll be back” que nós temos, sequela da sequela de um futuro em que as máquinas ladram umas humanidades soltas e queixosas, entregues a jogos de palavras cruzadas num teste de Turing aplicado contra a benevolência radical de leitores que padecem dessa doença terrível dos indefectíveis.

Como lembrava Joaquim Manuel Magalhães num dos mais iluminantes momentos da sua obra poética: “É sempre a pior gente/ que primeiro não acredita./ E sempre a pior gente/ que depois não deixa de acreditar.” Depois do sentido risível de um culto que sempre teve muito de pindérico, chega a tornar-se doloroso ler nos últimos anos e particularmente neste Capilé, como já antes em Comprimidos (separata da Telhados de Vidro n.º20) o refugo das recolhas mais cintadas que têm ido para a Assírio & Alvim. Um diário em fascículos sobre as peripécias de uma proto-adolescente namorando esse dilema que força um desvio face à abordagem hamletiana: “espremer ou não espremer”. A borbulha, num rosto onde a puberdade não deixou mais que um vestígio rupestre.

Infelizmente, e por mais baixo que se desça, continua a aparecer “sempre quem arranje suportes teóricos e laracha verborreica para promover esses e essas patetas; quem seja capaz de invocar tropas de filósofos mais em moda para defender um ou uma qualquer saltitante atrás do que mais calha: quer do pseudónimo em apito até à fotografia elaboradamente extravagante, da pilhéria frívola ao fogo de artifício dos simplismos arvorados em verdades anímicas” (Uma vez mais JMM).

Desde que vos faça contentes, vamos todos ladrar que “A poesia para mim também é o karaté”, ainda que só os ligue os golpes no ar, um cinturão que vai do branco, passando por muitas cores, antes de chegar ao negro e uma parede atafulhada de troféus de lata para neles se roçarem os gatos que talvez nunca como neste triste enlatado doméstico que é o século XXI tenham salvo tantas vidas. Mas lá está, podemos continuar a convencer-nos que existe nisto uma certa mestria zen. “Action writing”, chama-lhe ela, porque “Descomplicar. Não stressa.”

Deve ser mesmo esse o papel que se reserva em tempos de indigência à poesia, o de bolinha de stress, para amachucar continuamente e seguir carpe-diemzando a vida, banal que dá dó, mas ainda assim orando a essa magna certeza: "Nada é maior/ do que a vida". Que belo epitáfio para se erguer à porta de uma era de cadáveres adiados.

 

Edições Averno / 60 páginas / 11€

Capa e ilustrações de Bárbara Assis Pacheco

 


 

Eu sou muito bela
belíssima
bélica
si vis pacem, para bellum
Parabellum
les parapluies de Cherbourg

 


 

um crítico de segunda ordem tem, por natureza, tanto poder
de teorizar como uma tainha ou um caracol.

Fernando Pessoa

Como te enganas, Fernando Pessoa!
Uma tainha e um caracol
são muito mais inteligentes
do que Robert Oppenheimer
porque uma tainha e um caracol
nunca fabricaram a bomba atómica

 


 

LÓGICA NECROLÓGICA

Os amores
que não tive
(e foram
muitos)
moeram-me
o juízo

Também
não tive
muitos filhos
isto é
não tive
nenhum

Não
me queixo

O que
não foi
( e foi muito)
deu-me
muito trabalho
e muito

 


 

Basta uma noite de amor em que um homem e uma mulher se entregam totalmente um ao outro sem ter medo de partir a cama nem de apanhar constipações. Basta uma noite. Não são precisas 5000 noites.

 

 

 

Chuva de estrelas

É curioso notar como, na voluntariosa e hoje incontornável carreira do supracitado crítico literário (que prossegue no PúblicoTime Out, Colóquio Letras e Revista Cão Celeste, tendo passado também pelo Expresso, além de inúmeras plataformas online), este parece ter contentado a todos pelas muito largas mãos que exibe na distribuição de estrelas, já que em todas as críticas a livros de poemas, e foram já umas largas dezenas, só nos lembramos de uma ocasião em que um livro foi acarinhado com menos do que as quatro estrelas. E as cinco estrelas não se reservam a uma mão-cheia de autores especialmente relevantes, mas surgem numa relação de 1 para 2 em relação às quatro. De resto, a atribuição das três estrelas marcou uma singularidade significativamente injusta, numa das mais convincentes estreias de uma poeta (Elisabete Marques, Cisco, Mariposa Azual, 2014) e especialmente na comparação com o panorama desta meia década em que o crítico se parece ter achado sozinho num El Dorado da edição de poesia portuguesa. Julgar-se-ia que o século XXI num punhado de anos alcançou essa proeza que é ter esmagado o que lhe precedeu, ou então um Cesariny, um Teixeira de Pascoaes teriam necessariamente de rebentar duas vezes a escala, o que nos coloca a todos numa época em que o tecto está decididamente muito baixo para este crítico).