Blas de Otero. De fundo católico, eis uma voz poética cheia de visão social

Blas de Otero. De fundo católico, eis uma voz poética cheia de visão social


Celebra-se este ano o centenário do nascimento do poeta espanhol, uma voz social contra o franquismo.


Blas de Otero (Bilbao, 1916 – Majadahonda, 1979) viveu, como tantos outros poetas da sua geração, a sordidez de uma guerra civil violentamente atuante na cena literária. Na asfixiante realidade política de então, que o forçava mesmo a silenciar a sua língua materna, o basco excomungado, a sua inconformada adesão ao comunismo motivou contínua coerção da censura espanhola durante os anos do franquismo. 

Do seio do seu catolicismo de formação, o poeta extraiu a veia de um existencialismo espiritualizado que, na verdade, nunca negaria completamente, acabando por ressurgir, maturado, na sua última poesia. A sua parca e fulgurante obra experiencia diversos credos poéticos, pondo o pé no campo dos “poetas sociais”, citando a eito e preceito a sua própria tradição lírica, empregando imagens surrealistas, tocando o abstracionismo, citando referentes históricos próximos, não descurando o estetismo. Falamos, enfim, de um poeta em permanente busca de si mesmo, marcado por questões religiosas, existenciais e políticas que, num arranjo de notável coerência, pautam uma obra singular. 

Quando, em 1950 e após exercícios poéticos de menor monta, irrompe fulgurante com “Ángel fieramentehumano”, Blas de Otero culmina uma etapa existencial (a que acresceria no ano seguinte “Redoble de Conciencia”), matizada posteriormente pela temática social (”Pido la Paz y la Palabra”, “En Castellano”, “Que Trata de España”) até meados da década de 60, depois revisitada e sincronizada com a mencionada preocupação histórica na prosa de “Historias Fingidas y Verdaderas” e nos poemas que deveriam ter sido os de “Hojas de Madrid”, alguns dos quais recolhidos em “Expresión y Reunión” (1969) e em “Mientras” (1970).

Se o encontramos, por vezes, nos trilhos da poesia de pendor religioso, ou ainda no anticlassicismo e antiformalismo de uma poesia “desenraizada” – para empregarmos o termo do seu proeminente defensor, Dámaso Alonso –, não é justo, no entanto, que ignoremos a obsessiva pretensão de um apuramento verbal a que várias vezes aludiu. Descurando a riqueza de tamanha paradoxalidade, também a sua receção crítica tem sido acidentada, referindo-o ora como o poeta da letra cantada na resistência política das assembleias juvenis, ora como o exilado interior, como o autor dos versos entoados por Paco Ibáñez no Olympia de Paris, por um lado, e ainda como o amestrado protótipo do poeta social que conseguiu a inaudita proeza de ser, pese embora, poeta, até se converter no empoeirado clássico moderno a cuja voz os historiadores da literatura humedeceram o pavio. 

Melhor o compreenderam, com efeito, os poetas, como José Ángel Valente, que sublinha em Blas de Otero o “emprego de uma linguagem que visa condensar um máximo de possibilidades de comunicação”, rompendo com a linguagem poética então comum, defendendo o léxico livre, o coloquialismo e os jogos frásicos, a par de um perfeccionismo melódico, no rigor métrico e até mesmo estrófico e rimático, sem perder nunca o horizonte dos temas de pendor social. Se é certo que podemos encontrar em Blas de Otero, como em outros autores da sua geração, a repercussão do célebre discurso de Vicente Aleixandre à Real Academia Espanhola (“neste poder de comunicação está o segredo da poesia que, cada vez estamos mais certos disso mesmo, não consiste tanto em oferecer beleza quanto em conquistar propagação, comunicação profunda da alma dos homens”), encontramos na sua obra a exigência tonal e a recusa da superficialidade temática que muitos dos chamados “poetas sociais” não alcançaram.

O mesmo Aleixandre viria a sintetizar, em 1955, “alguns carateres da nova poesia espanhola”: um tom de angústia ou de esperança; tematização da infância, da religiosidade, do cenário social e da pátria; ambiência quotidiana expressa em linguagem simples, frequentemente coloquial. Todos estes traços mapeiam a produção de Blas de Otero, o qual, como muitos outros, fazia tenção de desmentir as provocadoras sentenças de Ortega y Gasset (“O poeta começa onde o homem termina”) e a demanda exclusiva de Juan Ramón Jiménez, que dedicava a sua obra “à minoria, sempre”. Naqueles “tristes anos de derrocada, de catastrófico apocalipse”, em palavras de Alonso que prologam “Ancia” (1958) de Blas de Otero, era pois à imensa maioria que o poeta se dirigia, recusando a literatura de fedor livresco, defendendo antes a poesia “falada” (“Gosto das palavras da gente. / Parece que se tocam, que se palpam. / Os livros não; as páginas afastam-se / como fantasmas. / Mas as pessoas dizem coisas formidáveis, / que fazem estremecer a gramática. / (…) Dá vergonha acender um fósforo, / isto é, dizer um verso numa página, / à frente destes homens de largas sílabas, / que almoçam com pedaços de palavras”). 

Para Blas de Otero, “a realidade pulsa evidentemente”, e é nessa vocação para nos oferecer por mediação própria essa sua evidência que radica o regozijo infantil, ecoando trovas teimosas, revisitando memórias e paisagens familiares, implicações políticas, dilemas religiosos, enfim, uma perpétua adolescência sempre revisitada que é a do homem e da mulher que nós ainda somos.