“Vais mesmo correr 21 quilómetros?”. Perdi a conta das vezes que ouvi esta pergunta acompanhada de olhares que misturavam a dúvida na minha capacidade de acabar uma meia-maratona, com um alívio de quem se fica por um “nem que me pagassem”. A sorte é que conhecer bem o outro lado da barricada dava-me a paciência que normalmente não tenho para reagir a uma pergunta repetida várias vezes.
Eu já fui aquela que só corria se o metro tivesse a dar sinal de partida ou talvez na praia, para fugir a uma onda mais forte. Aliás, se estivessem a falar com a Marta de há dois anos, estariam perante alguém cujo único exercício físico passaria por calcorrear as ruas de Lisboa e, poucas não seriam as vezes, que o fazia para ir almoçar/lanchar/jantar ao sítio mais próximo.
Façamos então um F5 para chegarmos à Marta de 2016. À vida foram mais de quinze quilos e, com eles, as horas passadas no sofá e as refeições tidas a uma mesa cheia de pão, herança tão minhota como o vira ou o vinho verde. Mas como esta conta não é só de subtrair, vamos passar à adição: mais massa muscular, mais auto estima, gosto pela cozinha – saudável, claro – até aí inexistente, um vocabulário gastronómico enriquecido com quinoas, espirilizadores, sojas e aveias e, acima de tudo, a capacidade de influenciar quem também quer mais saúde. Ver a minha mãe a comer batata-doce, o meu pai a correr dez quilómetros ou os colegas de secretária a pedir ajuda para escolher o menu menos calórico do almoço fizeram valer cada nega a um jantar na nova hamburgueria do bairro ou aqueles dias a começar ainda de madrugada com meia hora de spinning.
O ginásio passou a ser rotina e, à falta dele, era na rua que corria os poucos quilómetros que os meus pulmões, a suplicar por uma pausa, permitiam. Aos primeiros três foram-se juntando mais dois e mantive os cinco durante uns meses, com a diferença de os fazer em cada vez menos tempo. A superação chegou com os primeiros oito, logo a seguir os dez (até porque todos me diziam que quem faz cinco, faz dez) e, o apogeu: treze quilómetros em véspera de Natal, talvez por na meta ter à minha espera as rabanadas da minha madrinha, essas sim, com lugar garantido no podium de melhor doce de Natal do país.
O janeiro das habituais resoluções de ano novo foi, neste caso, o de querer transformar esses treze conseguidos com a bênção do Menino Jesus em 21, durante a meia maratona de Lisboa que, por se realizar em ressaca do dia do Pai, podia contar esperançosamente com uns resquícios do poder de S. José.
Tomada a decisão, pareceu-me urgente levar alguém comigo nesta loucura. A Catarina foi a vítima que, apesar de não ter dito um sim nem imediato nem muito entusiasmado, – spoiler alert – ainda esperou um minuto na meta até me ver chegar.
Os treinos Atirei-me aos treinos como quem segue uma religião. Imprimi o quadro que ditava horas e distâncias a percorrer, saquei aplicações de conta quilómetros e tentei alimentar os músculos que me iam dando mais velocidade a cada semana. Foram dois meses com quatro treinos semanais, sempre a oscilar entre os cinco quilómetros de recuperação até a uns loucos dezoitos, feitos em ritmo de competição e já a poucas semanas da prova final. Mas se até aí tudo se conjugava para acabar a prova com um tempo que não envergonhava ninguém, atingir os primeiros 18 transformou-se num embate mais impactante do que o próprio atingir da maioridade.
Escolhi um domingo de manhã, com meia Lisboa ainda a dormir, para seguir o mais longo dos caminhos até então. Já estava quase de braços no ar a cruzar uma meta imaginária, quando um passadiço de madeira ainda molhado da chuva do dia anterior me faz dar uma queda digna de filme de animação. A única diferença é que em vez das gargalhadas da audiência, tive várias caras de nojo a olhar para o meu queixo que só foi fechado depois de oito pontos ou então para a minha perna que, do verde ao roxo, passou por várias tonalidades. Dois ou três dias de descanso depois, recomecei a correr, mesmo que ao telefone com a minha mãe a garantia era a de que passava os fins da tarde no sofá a pôr gelo nas feridas.
Ainda estava a recuperar a confiança – e os quilómetros – perdidos, quando a cinco dias da prova, o sol de inverno que soube tão bem no fim de semana se transforma em nariz entupido e termómetro a tocar nos 38 graus. Entre doses de benuron e brufen intercalados até matar o mal pela raiz, foi inevitável pensar se não teria sido melhor escolher como resolução de ano novo fazer uma poupança extra ou dedicar-me ao voluntariado.
O dia D Alinhados os chacras, as temperaturas e todos os ossos do corpo, foi hora de perceber que os dois meses que pareciam tão longínquos, estavam na iminência de acabar. Dia de prova é sinónimo de acordar cedo, comer uma boa dose de hidratos e seguir caminho em transportes públicos cheios de colegas de competição.
Da Quinta das Conchas ao Pragal não foi mais de meia-hora e da margem sul à meta montada em frente ao Mosteiro dos Jerónimos passaram-se quase duas horas. A chuva prevista passou a sol nublado que, para mal de um corpo já aquecido o suficiente, decidiu mostrar todo o seu esplendor a partir de metade da prova. A sede foi-se matando graças aos escuteiros que iam distribuindo água e o cansaço ignorava-se ao pensar num pai que tinha feito 400 quilómetros para que não chegasse a uma meta de desconhecidos.
Já com 21 quilómetros nas pernas e menos cinco litros de água no corpo, aceitei de bom grado o kit que ofereciam a cada atleta, mesmo que o conteúdo do saco me fizesse duvidar se estava ainda com falta de oxigénio no sangue. Senhores patrocinadores, bem sei que a adrenalina está no máximo e que são poucas as forças para reclamar, mas um pacote de leite meio-gordo, um Magnum branco e uma banana que de tão verde me perder a sensibilidade na boca, não é prémio nem para o último classificado do passeio “Avós e Netos”.
Hoje não há espaço para quinoas nem aveias, nem para mais vida saudável. Depois de ter conseguido levar a minha colega de corrida a fazer uma meia-maratona, convencê-la a festejar de pauzinhos na mão foi, literalmente, um passeio no parque. Desculpa lá oh Miguel-jornalista-do-mais-assumidamente-anti-sushi, mas não há melhor pós-treino que um salmão fresquinho.