Desde que o movimento Direito a Morrer com Dignidade lançou a semente da discussão da eutanásia, várias figuras da sociedade fizeram ouvir a sua voz em relação ao tema. Como é salutar em qualquer troca livre de ideias, não há consenso, mas antes ideias dissonantes que têm sido melhor ou pior discutidas, por agora no seio da sociedade civil. Mas também houve declarações que geraram polémica e foram alvo de abertura de inquérito. Falamos das declarações de Ana Rita Cavaco, bastonária da Ordem dos Enfermeiros, ou de Rui Moreno, coordenador da Unidade de Cuidados Intensivos Neurocríticos do Centro Hospitalar de Lisboa Central. Em ambos os casos, os intervenientes garantiram que a eutanásia era praticada, de forma discreta, no Serviço Nacional de Saúde.
Estas declarações mostram que, apesar de este ser um tema que compete a todos e é sensível de per si, ele é especialmente importante para os profissionais de saúde. Afinal, a realidade que vemos noutros países onde a morte assistida foi despenalizada mostra que os médicos e enfermeiros são, além dos doentes, os principais intervenientes num processo de eutanásia. É pelas mãos dos profissionais de saúde que passa a administração de substâncias letais ou, no caso do suicídio assistido, serão os médicos a prescrever os medicamentos. São ainda as equipas médicas que avaliam a validade dos pedidos e são eles que acompanham. Portanto, é inevitável que a opinião dos mesmos seja especialmente assinalável.
Eduardo Barroso, 67 anos, médico há mais de quatro décadas, é diretor de um serviço [Serviço Hepatobiliopancreático do Hospital Curry Cabral, em Lisboa] onde quem está internado luta para viver: os doentes estão ali para receber transplantes. Mas já viu dor e sofrimento suficientes para não se posicionar radicalmente em nenhum dos lados da barricada. Discorda, no entanto, que este seja um tema fraturante, mas concorda em absoluto que é uma questão que merece e precisa de ser cuidadosamente abordada.
Como em todas as conversas difíceis – porque falar da vida e da morte nunca pode ser feito de forma leviana e inconsequente -, a conversa com Eduardo Barroso começa com a pergunta que todos já se colocaram quando pensam em eutanásia e que poderíamos ter deixado para o fim.
É a favor ou contra a despenalização da morte assistida?
Sobre um problema como este, tanto mais se ele for apresentado como “é a favor ou contra?”, é impossível responder. No entanto, não acho nada que a eutanásia seja um tema fraturante. Temas fraturantes são todos aqueles em que tenhamos opiniões diferentes, é normal que assim seja.
Qual foi a sua reação às declarações de que se praticaria eutanásia no SNS?
Estou há mais de 40 anos no SNS, começando como interno e tendo subido até diretor de serviço muito cedo. Nunca pratiquei nem vi praticar eutanásia no sentido estrito de, voluntariamente, algum médico ou a equipa médica ter abreviado a vida de alguém que podia sobreviver mais, matando-a. Nunca vi nem me passa pela cabeça que alguém possa ter dado essas ordens ou administrado quaisquer medicamentos.
Dado que a ideia foi depois reiterada por outros profissionais de saúde, porque a considera tão descabida?
Por um motivo muito simples: o SNS é aquele onde os doentes podem estar mais protegidos, entre aspas, de alguma prepotência ou arrogância de profissionais de saúde. Aqui, não posso fazer um ato médico que não seja vigiado. Não posso chegar ao pé de um doente e ordenar uma coisa dessas porque sou imediatamente contestado. Não é uma medicina individual aquela que praticamos, há enfermeiros, enfermeiros-chefes, internos, estagiários, os alunos, os colaboradores mais novos que escrevem nos computadores as ordens, etc. Isto é uma coisa perfeitamente segura.
E quanto à obstinação terapêutica, sente que ela é praticada?
Também, mas o que praticámos muitas vezes e praticamos no nosso dia-a-dia no SNS é o inverso: alguma abstenção terapêutica agressiva em relação a doentes depois de percebermos, pelo doente e pela família, que não se justifica um exagero de meios. Falo, por exemplo, de meios como o ventilador. Manter ligados a ventiladores doentes que se percebe que não têm solução é praticar abstinência terapêutica.
É uma prática comum?
Sim. Em alguns doentes, os que estão muito mal e não têm saída, escrevemos mesmo que há ordem de não reanimar em caso de uma paragem cardíaca ou respiratória grave. Obviamente que o doente e a família sabem e concordam com essa decisão. Por exemplo, num doente com cancro terminal para o qual só estamos à espera da morte, não vamos fazer manobras de reanimação ou ligá–lo ao ventilador. Há aqui uma grande confusão no meio disto tudo.
Acha que há alguma confusão de conceitos?
Não, acho que não é uma confusão de conceitos. A eutanásia é muito clara: é abreviarmos voluntariamente a morte do doente. Outra coisa são os atos médicos de senso comum.
Nunca teve um doente que lhe pedisse explicitamente para morrer?
Eu só tive na vida um grande amigo meu que pediu para o ajudar a morrer, mas fora de um contexto hospitalar. Esse pedido foi feito a mim e outros amigos não médicos. Julgo que não teve nada a ver com o facto de eu ser médico, mas antes por ser um grande amigo.
O que respondeu ao seu amigo?
Não vou responder a essa questão. É um diálogo de que ainda hoje me custa lembrar, e do que aconteceu. Não teve nada a ver com o amigo médico. O meu tipo de relação com ele era de profunda amizade, profunda fraternidade.
E em contexto hospitalar?
Nunca tive um doente que me pedisse objetivamente para morrer, em 40 anos. No hospital, de facto, nestes anos todos, muitos doentes desabafavam que não valia a pena viver assim. Damos sempre um palavrinha de esperança, uma palavrinha de ânimo. Entre os doentes internados, não me lembro de alguém me ter pedido para abreviar a vida. Diziam coisas do género “deixe-me partir, não vamos lutar”. Claro que há diferença entre os desabafos e o próprio estado dos doentes. Há aquele doente que está mal mas, se recuperar daquele episódio, pode sobreviver. Depois há, por exemplo, os doentes oncológicos em fase terminal, que são diferentes, sabemos que não têm mesmo saída. Acho que não devíamos deixar esta polémica [das declarações sobre a eutanásia no SNS] afetar as nossas decisões. Precisamos de alguma tranquilidade.
Fala de tranquilidade para decidir sobre atos médicos em processos de fim de vida?
Dou-lhe um exemplo: a minha irmã mais nova esteve aqui internada nos últimos dois dias da vida dela, por causa de um tumor do pulmão já com metástases no cérebro. Obviamente que não fui o médico dela. Ao fim do dia de domingo, no dia em que morreu, estava com uma respiração… Repare na situação dela: cancro no pulmão, metástases cerebrais, sem qualquer hipótese de reconhecer a família e com uma dificuldade respiratória imensa, uma respiração terminal. Não havia qualquer indicação para ser ligada ao ventilador, eu era incapaz de deixar alguém propor que ela fosse ventilada, a sofrer horrores. E uma colega minha, a quem eu tinha pedido para a acompanhar porque estava nesse dia no hospital, veio muito preocupada ter comigo, com medo que as drogas que lhe estavam a dar pudessem deprimir o centro respiratório e abreviar-lhe a morte umas horas. Eu penso que este excesso de zelo é desnecessário. Dar à minha irmã a possibilidade de partir uma ou duas horas antes aumentando-lhe a dose de morfina para que ela não sofresse e não tivesse falta de ar era um ato médico fundamental, não era eutanásia. Penso que esta discussão, que uns apelam de fraturante não sei porquê, é um problema que nada tem a ver com partidos, não tem nada a ver com opções ideológicas, pode ter a ver com questões religiosas, isso sim.
Qual o seu grau de catolicismo?
Eu sou um católico poucochinho praticante. Vou menos à missa, mas tenho fé e acredito em Deus. Isso não me limita nas minhas opções: defendi o aborto em algumas circunstâncias em que acho que é perfeitamente legítimo e é um ato fundamental da liberdade das mulheres. Por outro lado, não concordo que seja uma alternativa à contraceção, mas estes assuntos…
As questões da fé são importantes quando falamos de morte?
A doutrina cristã não aceita nem o suicídio assistido nem o suicídio, muito menos a eutanásia, como também não aceita a interrupção da gravidez.
Referia-me à questão de aceitar a morte.
Os católicos aceitam a morte natural. Depois podem aceitar a chamada eutanásia passiva, a de não atuar ou de não operar um doente pela sexta vez porque achamos que já não vale a pena e não faz sentido esse sofrimento. Essas decisões comunicadas à família e, quando os doentes estão lúcidos, ao próprio doente, são atos clínicos da gestão diária de um serviço. Nós já fizemos isso dezenas, se calhar centenas de vezes na minha já longa prática hospitalar. Outra coisa é um doente, porque está deprimido, está cansado, dizer “ó doutor não lute, não vale a pena” – isso é aproveitar essa declaração para lhe abreviar a vida. E isso é um crime, é um assassinato. Nós não praticamos assassinatos, como aquela coisa que ouvi dizer que havia médicos que receitavam injeções de insulina para abreviar a vida.
Está a referir-se novamente às declarações da bastonária da Ordem dos Enfermeiros?
Sim, a senhora bastonária foi muito infeliz, o SNS não merecia esse tipo de suspeita. É o sítio mais escrutinado que há. Eu nunca vi, nunca me passou pela cabeça isso, só em filmes policiais. Há para aí um filme em que um homem mata a mulher com uma injeção de insulina, acho que se chama “O Crime Perfeito”. Então algum médico ia dizer receita aí doses de insulina? Para já, as enfermeiras não davam. Depois, os colegas – só aqui trabalham mais de cem cirurgiões -: acha que algum não iria revoltar-se e denunciar uma coisa dessas? O SNS é o sítio onde os doentes estão mais seguros. Ao contrário da medicina mais individual, onde não temos de dar contas a ninguém.
Como, por exemplo?
Como na prática privada. Aí é o médico e o doente, não há trabalho de equipa nem há um escrutínio dos pares. Por isso é que a medicina praticada no hospital com equipas multidisciplinares implica que não seja possível fazer valer uma opção que não conheço ninguém que aceitasse.
Está a dizer, portanto, que não concorda que exista eutanásia no contexto do hospital público. Mas imaginemos que existe fora.
Em relação à eutanásia pura, não estou de acordo com ela, uma lei que permita a eutanásia tal como nas leis que estão na Bélgica e na Holanda – eu não conheço bem a lei holandesa, mas dizem-me que está melhor. Acho que estou mais de acordo com o suicídio assistido.
Porque não concorda com a eutanásia mas até admite concordar com o suicídio assistido?
Se a pessoa está lúcida, está bem mas, por exemplo, está tetraplégica e com escaras, está amputada, farta da vida, não consegue reter a urina, as fezes… Se está numa situação humana indigna, não vê perspetivas de aquilo mudar, está lúcida e diz “por amor de Deus, ajudem-me a partir”…
Mas como referiu anteriormente quando disse que o seu amigo lhe tinha pedido para morrer pela vossa relação e não pela sua profissão, não acha que esse deva ser um ato médico.
Vou contar uma história. Uma vez estive num debate com a Margarida Marante e o Miguel Sousa Tavares sobre a eutanásia, a propósito de um filme. Às tantas disse ao Miguel Sousa Tavares: “Porque é que me estás a perguntar isso como médico?” Quer dizer, se ele tiver um amigo a precisar que alguém lhe ponha os comprimidos na boca e dê um copinho de água, não é preciso ser um médico. Pode ser preciso para receitar; a partir daí, qualquer um pode perfeitamente fazê-lo. Um médico talvez até tenha mais dificuldade, porque nunca o praticou em contexto hospitalar. Volto a dizer às pessoas que estejam tranquilas. Se alguém quiser prescrever algo para matar um doente, toda a gente sabe e vão para a prisão. É preciso haver um complô muito grande para se fazer uma coisa dessas. Nós fomos educados para salvar vidas e para não deixar morrer os doentes. Ainda por cima, às vezes lutamos pelos doentes de uma maneira exacerbada. Mas também sou capaz de lhe dizer da minha vida: que lutei e tentei lutar por doentes em que toda a gente dizia que não fazia sentido, que iam morrer, que hoje estão vivos e, alguns, bastante bem.
Esta semana, um colega seu disse que tinha visto praticar eutanásia no SNS.
Se ele viu e não denunciou, é cúmplice de um crime. A não ser que seja outra coisa. Por exemplo, quando contei da minha irmã, em que disse à minha colega que está a tratar da minha irmã em estado terminal e vai morrer para liberalizar a morfina – deprimindo assim o centro respiratório e deixando-a morrer tranquilamente -, se me dizem que isso é eutanásia… Toda a gente sabia, era uma questão de horas, ela estava num sofrimento atroz e tinha ordem de não reanimação, não se ia ligar ao ventilador. Não se ia ligar um ventilador à Gracinha. A morfina era para aliviar o sofrimento da falta de ar. Agora, se lhe fosse administrada outra droga mais forte, era diferente. Mas nós temos de ter tranquilidade para fazer estes atos clínicos médicos. Estou agora a falar do caso da morte da minha irmã com tranquilidade, não há aqui nenhuma polémica. Foi boa prática médica.
Sem ser o caso da sua irmã, há mais algum em que se recorde de ter sentido esse dilema?
Lembro-me de, há pouco tempo, um doente de 85 anos ser operado de urgência por um colaborador meu com um grande tumor no estômago, roto para a barriga. Estava cheia de comida, aquilo era uma tragédia. Decidimos na sala de operações que não se podia fazer nada ao doente, não era possível tirar-lhe o estômago. E fechou-se o doente sem fazer nada, era um doente em situação terminal absurda e absoluta. Depois põe-se o problema: esse doente que estava anestesiado devia ser acordado da anestesia, como foi, ou devia ter-se deixado partir no fim da intervenção? Estes assuntos é que me interessa discutir. Este homem ficou 18 dias ligado a um ventilador sem nunca ter recuperado a consciência, que nunca iria sobreviver porque tinha dores atrozes derivadas de uma peritonite do ácido que ficou dentro da barriga, não havia hipótese de salvamento. Esse doente deveria ter sido mantido com ventilador depois de fechada a barriga, sabendo nós que era a sua morte era inevitável? Devia ter sido ventilado, sabendo que nunca mais ia acordar nem despedir-se da família? Mantivemo-lo ventilado 18 dias até ele morrer! Eu pergunto: não seria melhor se, em conferência médica e com os familiares, tivéssemos decidido desligar o ventilador?
Acha que esta discussão deve ser feita publicamente ou no seio das equipas médicas?
É uma situação que deve ser discutida, primeiro, no âmbito da Ordem dos Médicos. A eutanásia poderá ser praticada por médicos e não médicos. Se alguém tiver a mãe doentíssima em casa a sofrer horrores e ela disser: “Ó minha querida, eu não consigo sozinha, mas dá-me esses comprimidos que me deram para dormir, dá-me dez em vez de dois ou três”, não precisa de ser um médico. É da consciência de cada um, não chamem os médicos para isto.
O que pensa sobre a forma como a discussão está a acontecer na sociedade?
Na sociedade portuguesa penso que há pessoas que acham que são donos da eutanásia, que sabem tudo sobre a morte assistida e o testamento vital, eles é que sabem discutir, enfim, são os donos da eutanásia. E é preciso que alguém não se comporte como sendo dono da eutanásia. É um assunto sério que deve ser discutido, é tão fraturante como qualquer outro assunto em que haja opiniões diferentes, é talvez o assunto que tenha menos a ver com esquerda versus direita. Pode ter a ver com convicções religiosas, mas não partidárias.
Porque não?
Um membro do Partido Comunista não pode ser contra a eutanásia? Um homem da esquerda democrática não pode ser contra a eutanásia ou a favor do testamento vital? É um assunto que não devia ser discutido no âmbito dos partidos, devia ser discutido no âmbito das pessoas, e todos os partidos deviam dar liberdade de escolha aos seus deputados, militantes e simpatizantes. Este é um assunto que merece uma grande discussão sem histerias, sem chamarmos assassinos uns aos outros. Tem sido apresentado com os mais radicais do Bloco de Esquerda a vir defender isto, os do CDS a vir defender os coitadinhos, acho isto de um ridículo atroz. Cada um tem as suas opiniões e não tem nada a ver com os partidos. Acho, sim, que tem a ver com um certo grau de informação. É um assunto para o qual é preciso uma grande educação, explicar o que está em jogo.
Sente que isso não está a ser bem explicado?
Se vamos entrar, como eu já ouvi de alguns donos da eutanásia – a explicar a uma parte do povo português que não tem sensibilidade para discutir o assunto -, que a eutanásia é poder matar uma pessoa que já está muito doente, todas as pessoas menos letradas vão pensar ‘ah, eles podem fazer isso no hospital, pois vão poupar imenso dinheiro, vão–nos matar a todos’. Por outro lado, propor como solução que o problema se resolve com os tais centros de cuidados paliativos é absurdo.
Nem considera que os cuidados paliativos são importantes na gestão da dor?
Desejar morrer porque se está muito doente também é um problema psíquico, não é só porque se tem dores. Hoje em dia, as dores tiram-se. Há montes de drogas que, se calhar, até põem um tipo muita bem disposto. Pensar que podia estar internado no centro de paliativos por causa disso é uma coisa absurda.
Está a dizer que o debate que se tem vindo a fazer, em que de um lado surgem os defensores da eutanásia como oposição aos defensores dos cuidados paliativos, não faz sentido?
É uma coisa ridícula. Acho que é demagogia, dizer que é por haver cuidados paliativos que as pessoas deixam de querer morrer. Para algumas pessoas cujo sofrimento é mais orgânico e que a vontade de morrer advém do sofrimento físico, na minha opinião, era darem umas daquelas drogas muita boas aos doentes que até dão bem-estar, não é preciso interná-los, até podem estar em casa. Para que precisam as pessoas sem dor dos cuidados paliativos? Liberalizem as receitas, se calhar até vou para os últimos jantares com um sorriso nos lábios.
Então pensa que o país não precisa de mais unidades de cuidados paliativos?
Acho que são precisas porque, infelizmente, muitas destas dores acompanham-se de outras coisas que são precisas, como pensos ou cuidados especiais, e muita gente não tem hipótese de fazer isso em casa. Custa muito dinheiro ter as pessoas em casa com cuidados, mas não acho que os paliativos sejam uma alternativa à eutanásia. Até digo mais: acho que nas unidades de paliativos é muito importante ouvir as pessoas para perceber se os que estão lá também não pedem para aliviar mais a dor física, para abreviar a morte. Porque para a dor de não se poder ver nunca mais os filhos e os netos, para essa dor não há remédio.
O que julga então ser imprescindível saber para se discutir este assunto?
Para mim, é um assunto que tem a ver com o grau de cultura, informação e preparação. Alguém só se pode exprimir sobre este assunto quando tiver conhecimento das diferenças que há entre testamento vital, suicídio assistido e eutanásia. Sobre os médicos, nos hospitais, tomarem decisões face às questões terminais sem consultarem o doente ou a família, oponho-me totalmente.
Qual é para si o requisito essencial para que, hipoteticamente, se possa praticar eutanásia?
A eutanásia tem sempre de ser a pedido, não pode ser uma decisão administrativa ou de familiares. Imagine que há interesses de heranças.
Na sua prática hospitalar, certamente que também há códigos que têm de ser cumpridos.
Para fazer um transplante hepático dos doentes, tenho uma psicóloga e um psiquiatra que avaliam a priori se os doentes estão motivados para aceitar as regras de um transplante. Depois, há também aqueles que não correm bem, e temos tido doentes que estão muito cansados.
Já teve doentes que se recusaram a ser transplantados?
Já tivemos um doente que se recusou ser retransplantado. A única solução para a sua vida era mudarmos de novo o fígado, ele ia morrer se assim não fosse. Ele disse que sabia, mas pediu para morrer em paz, não quis ser reoperado.
E já houve muitos que pediram para não ser reanimados, como falámos há pouco?
Há doentes que nos dizem que, se acontecer algo pior, não querem ser levados para os cuidados intensivos. Isso não é eutanásia, poderá ter a ver, no máximo, com suicídio assistido. Eu sei que estou a falar na abstinência de um ato, mas também não podemos ser hipócritas. A abstinência de um ato que sei que é fundamental para salvar uma vida – e se eu aceito não o fazer -, qual é a diferença disto para ter um doente na mesma situação que me pede para acabar com esta coisa toda? Qual a diferença para um doente que me pedisse para se despedir da família porque não aguentava mais e partir em paz, com dignidade? Eu até posso discutir se a dignidade é isto ou se se pode manter de outra forma, mas não aceito que venha alguém armado doutoralmente a dizer que a dignidade é na luta pela vida, e que nunca há dignidade no apelo a partir ou a querer morrer mais depressa.
Personalizar a questão é inevitável. Já pensou no que gostaria para si?
Ainda não fiz o meu testamento vital. É curioso porque não tenho a ideia de morte ainda muito enraizada, mas devia fazê-lo. Eu já o devia ter escrito, já devia ter dito algumas regras que quero impor para mim, mas a pessoa vai deixando para amanhã. Entretanto dá um badagaio e não se fez nada, mas enfim, os meus colaboradores e a minha família sabem o que eu penso. Quero que me ventilem e que lutem por mim apenas se acharem que posso recuperar e viver com qualidade. Agora, não quero que me ventilem, como aconteceu com o meu pai, se souberem que nunca mais vou conhecer os meus filhos e vou ficar uma couve. Nos cuidados paliativos é que estão proibidos de me pôr. Fazem sentido em muitas sociedades pobres como a nossa, porque há muita gente que não consegue cuidar dos doentes terminais em casa, mas eu espero que a mim me tratem em casa. Não me ponham num sítio em que me vão ver três vezes por semana para ficarem de consciência tranquila. Nem posso ter o sofrimento com o Sporting, nem posso ir ao estádio. Claro que se eu disser que quero morrer porque o Sporting perdeu com o Benfica, espero que percebam que provavelmente é um pedido que não justifica a minha partida (risos).
Relativamente à doação de órgãos, pela sua experiência, qual é a opinião geral da população em relação ao tema?
Em relação à vontade de ser dador de órgãos, realidade que vivo há 40 anos, só 7% da população é que se opõe à doação. Mas se a lei fosse de consentimento informado positivo, ou seja, alguém, para ser dador, tinha de ter um cartão de dador e estar inscrito, as pessoas esqueciam-se de fazer isso porque acham que a morte está longe. Até podem concordar com a doação, mas não tratam disso em vida. Por isso, o que temos em Portugal – decisão seguida por muitos países da Europa – é o consentimento presumido. Se alguém não disser que não quer ser dador, é tratado como um dador caso o corpo esteja em boas condições. Nós respeitamos muito, e mesmo não tendo de o fazer, se há um familiar próximo, ainda perguntamos ao familiar se podemos tirar os órgãos, apesar de não termos de o fazer. E não temos uma recusa nos últimos tempos.
Julga que a despenalização da morte assistida deve ser referendada?
Primeiro, a imprensa tem de ter muito cuidado com isto. Tem de fazer disto uma discussão séria e evitar a todo o transe que isto se transforme numa luta partidária. É uma coisa importante para se discutir. Não acho que deva ser deixada aos deputados, isso não acho nada. Mas também tenho muito medo de um referendo. Para já, para ser vinculativo tem de ter mais de 50% dos votos. E depois tenho muito medo da demagogia nos recônditos, que aí possa haver alguns reacionários que comecem a dizer às pessoas que querem matá-los. Por isso tenho medo de um referendo para que as pessoas possam não estar bem preparadas.
Já disse que não deve ser uma decisão parlamentar e que tem medo de um referendo. Então como resolveria a questão?
Não se pode deixar para os médicos. Julgo que deveria haver um grande debate promovido pela Ordem dos Médicos e pelas sociedades científicas sobre o problema. Apesar de não ser um problema médico, é de todos e é um problema sério. Depois, abri-lo à chamada sociedade civil, que é um termo de que eu não gosto, mas abri-lo à sociedade no sentido de haver vários debates regionais, sem serem partidários, para as pessoas se informarem. Depois, grandes debates televisivos para as pessoas se informarem, debates com pessoas, como já tinha dito antes, que não se comportem como os donos da eutanásia. E com doentes, com pessoas que já viveram esta realidade de perto, cidadãos, com médicos, mas tudo numa lógica de discussão pedagógica e sem absolutamente nenhuma referência partidária ou ideológica. E depois a grande questão: deve ser o parlamento a fazer a lei ou deve ser precedida de um referendo? Não sei, na altura logo se media o pulso. Ou seria deixada para o Presidente da República.
Seu amigo de infância.
Temos agora um Presidente da República culto, generoso, sensível que pode ajudar e que tem a sua opinião, que eu sei qual é, mas que deve ser o motor desta discussão.
Julga que era importante que o tema estivesse contemplado nos programas dos partidos, algo a que não assistimos nesta legislatura?
Sim. Se depois da discussão chegarmos à conclusão de que estamos todos preparados para que, nem que seja só nas próximas eleições, por exemplo, haver dentro dos programas dos partidos o trazer à colação este assunto para ser discutido na Assembleia, aí a legitimidade já é outra. Penso que este parlamento não tem legitimidade. Não votei com base nisso.
Disse há pouco que isto não era uma questão partidária.
Vou falar do Partido Socialista, que é onde conheço melhor as pessoas. Certamente terá pessoas a favor e contra a eutanásia, como haverá em todos os partidos. Depois eles votam como? Com disciplina partidária ou como cidadãos? Se é como cidadãos, então faz sentido, se calhar, abrir um referendo. Mas um referendo que faça perguntas concretas, bem estruturadas, que não seja é a favor ou contra a eutanásia. Não pode ser assim.
Para si, a morte assistida é totalmente cinzenta, portanto.
Cada caso é um caso. Eu, que nunca a pratiquei nem deixei praticar, já muitas vezes me apeteceu praticá-la no hospital. O doente de que eu lhe falei do estômago roto, esse caso clínico deu origem a um trabalho de reflexão dos alunos que foi magnífico. Os alunos estavam unanimemente a considerar que o doente não deveria ter sido acordado.
Nesse caso não falamos de eutanásia, mas de abstenção terapêutica.
Não, era eutanásia pura. No fim da intervenção era desligar o ventilador ou não. O doente não estava em morte cerebral, que aí nem se põe o problema. Não faz sentido ventilar cadáveres.
Qual foi das opções mais difíceis que teve de tomar como médico?
Uma vez recebi aqui três familiares, os pais e um filho, envenenados com cogumelos, precisavam de um transplante. E só tínhamos um fígado, tivemos de optar e transplantámos o filho, por ser mais novo.
Acha que, se a discussão for para a frente no parlamento, temos o melhor Presidente da República possível para moderar o assunto?
Temos, temos. Do que eu conheço dos Presidentes que tivemos, eu acho que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa não se vai alhear de um problema destes. Não sei se vai divulgar a sua opinião pessoal, mas acho que, se a divulgar, e tenho a certeza, mesmo que não coincida com a minha, tenho a confiança total e absoluta que Marcelo iria explicar muito bem o que está em jogo, iria fazer uma entrevista destas mas em direto para a televisão, explicando qual era a problemática e a legitimidade de se estar a favor ou contra.
No seio da medicina, o que será necessário fazer para discutir o assunto com seriedade?
Acho que devia ser obrigatório haver nos novos currículos médicos a discussão deste problema, sobretudo do suicídio assistido. Não falo só como médico. Já perdi alguns amigos daqueles amigos que são irmãos e já perdi a minha irmã, por isso tenho outra visão que como médico. Porque quando se fala que a eutanásia só deverá ser praticada em hospitais, eu continuo a achar que não devia ser assim.