Saúde pública. “Pai” do SNS arrasa alargamento da ADSE

Saúde pública. “Pai” do SNS arrasa alargamento da ADSE


António Arnaut e João Semedo criticam propostas do PS e do CDS que aumentam negócio dos privados.


O PS defende a extensão da ADSE e o governo criou uma comissão para estudar o futuro deste subsistema de saúde dos funcionários públicos. Mas António Arnaut, co-fundador do PS e ‘pai’ do Serviço Nacional de Saúde, desconfia dos objetivos políticos destas reformas e é arrasador no veredicto. “Sou contra o alargamento da ADSE. É assim que de uma forma sub-reptícia e matreira se vai privatizando a saúde”, diz ao i. 

“Estou incomodado e vou dizê-lo ao ministro da Saúde”, revela Arnaut. “O PS não pode alinhar com os que, de forma ardilosa, querem enfraquecer o SNS e torná-lo um sistema apenas para os mais pobres”, dispara.

O PS defende o alargamento da ADSE. É uma das propostas dos socialistas para este Orçamento do Estado, que será votado esta semana no Parlamento. Os funcionários públicos e aposentados do Estado vão continuar a descontar 3,5% do salário para a ADSE, mas o OE  vai alargar o universo de beneficiários aos cônjuges e aos filhos até aos 30 anos dos titulares, além dos trabalhadores do sector empresarial do Estado. 

“Isto não está no programa de governo. Estou surpreendido com a proposta, espero que não vá em frente”, diz Arnaut do alargamento. O advogado, que fez parte do II Governo Constitucional, em 1978, liderado por Mário Soares, como ministro dos Assuntos Sociais, foi o criador do SNS. “Na altura, o PS, o PCP e a UDP  [partido que mais tarde integrou o BE] aprovaram o SNS. OPSDe o CDSvotaram contra”, lembra Arnaut, para pedir responsabilidades à esquerda. 

“Não vejo como o PS pode alinhar agora com uma medida que alarga o campo dos privados na saúde, enfraquecendo o SNS. Se o SNS tiver menos procura, a prazo, vai perder qualidade”, avisa o ex-ministro. “Mais de metade das receitas dos grandes grupos privados já vêm das receitas do SNS e da ADSE”.

Arnaut lembra que quando o SNS foi criado, não havia condições para integrar, com garantias de qualidade de prestação do serviço, os funcionários públicos no novo sistema universal. Daí que a ADSE, um sistema que vinha dos anos 60, tenha subsistido, com caráter temporário. 

“A ideia era acabar por integrar os funcionários públicos no SNS e é assim que deve ser. Oalargamento da ADSE vai contra o movimento da História que é o de assegurar a igualdade entre todos os cidadãos nos cuidados de saúde”.
A ADSE, argumenta, “não deixa de ser um seguro de saúde. A diferença é que é público, o segurador é o Estado”.

CRISTAS VAI MAISLONGE

O alargamento da ADSE está também a ser trazido para a agenda política pela mão da nova líder do CDS. Assunção Cristas colocou-o na sua moção de candidata a líder dos centristas. “A defesa de um sistema de saúde de qualidade para todos passa também por estudar o alargamento faseado da ADSE a qualquer trabalhador que pretenda descontar e beneficiar desse sistema”, lê-se na moção “Ambição e Responsabilidade para Portugal”, aprovada com 877 votos a favor e 11 contra no Congresso de Gondomar. Cristas também se mostrou disponível para fazer pontes com o PS, quebrando assim o isolacionismo face a Costa.

À esquerda, a conjugação de interesses no “centrão” em torno da saúde gera preocupações. “Se a ADSE se alargar a todos os portugueses, o SNS deixaria de ser necessário porque toda a prestação ia ser feita por privados que, certamente, tratariam antes de comprar os hospitais e os centros de saúde. Uma super ADSE é o fim do SNS, é por isso que a dr.ª Cristas faz essa proposta”, diz João Semedo ao i.

NOMEAÇÃO que “tresanda”

O médico e ex-coordenador do BE também critica a escolha que o ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes fez para coordenar a comissão que vai estudar a reforma da ADSE. Esta comissão criada por despacho do ministro da Saúde, em 1 de março, tem de apresentar resultados até 30 de junho. É presidida pelo académico e economista Pedro Pita Barros.  

A escolha do coordenador “tresanda a incompatibilidade e a conflito de interesses”, ataca Semedo. É que Pita Barros foi nomeado para dois cargos incompatíveis, explica o bloquista.

“Foi escolhido para liderar o futuro centro de informação e formação na área da Saúde, vocacionado para a preparação de novos médicos, uma parceria entre a Universidade Nova e o grupo Mello. O centro vai funcionar no novo hospital daquele grupo privado, o hospital CUF Tejo, um investimento superior a 100 milhões, com inauguração prevista para 2018”. Agora foi nomeado pelo ministro da Saúde para coordenar o grupo de trabalho para a reforma da ADSE.

“Se a parceria público-privada é ela própria discutível [o centro de formação de novos médicos, num hospital da CUF], a nomeação de Pita Barros para a reforma da ADSE é uma decisão muitíssimo criticável. Sendo a ADSE uma das principais fontes de receita dos hospitais privados, a escolha de alguém tão envolvido com um dos maiores grupos privados da saúde é muito pouco recomendável”.

Semedo duvida que se possa  “acreditar na idoneidade e isenção daquela comissão” e questiona: “Como aceitar as suas propostas, se quem a ela preside tem, objetivamente, interesse no volume de receitas canalizadas pela ADSE para o grupo privado para o qual trabalha?”

Semedo conclui: “Parece que tudo é permitido, aceitável, não há limites, a indecência continua. A doutrina Maria Luís Albuquerque parece ter adeptos no Ministério da Saúde. Era melhor substituir o nomeado Pita Barros, caso não seja o próprio a tomar a iniciativa. 

A desconfiança sobre esta nomeção, à esquerda, estende-se ao próprio ministro. Há quem lembre que Adalberto Fernandes ajudou a criar a Médis (um seguro de saúde privado) e que foi gestor do hospital de Cascais. “É um defensor do aumento de negócio do setor privado”, diz ao i um dirigente do PS.

NÃO PÔR EM RISCO SNS

João Semedo lembra que a ADSE atualmente “já é sustentável, como sistema particular”. A ADSE, sublinha, “não é um segundo sistema pago pelo Estado de que apenas beneficiam os funcionários públicos, são estes que o pagam integralmente”. Como também descontam para o SNS, lembra Semedo, “têm acesso ao SNS nas mesmas condições que qualquer outro cidadão”. Não há assim privilégio. 

O bloquista discorda da extensão da ADSEaos trabalhadores do privado porque julga insustentável “a coexistência” de dois sistemas pagos pelo Estado. “Ou seja, para tornar a ADSE sustentável não posso pôr em risco a sustentabilidade do SNS”. A batalha da ADSEpromete abanar a maioria de esquerda que sustenta o Governo.