Judite. Inimigos como dantes

Judite. Inimigos como dantes


A nova criação de Rui Catalão estreia amanhã e fica até dia 27 no Teatro Nacional D. Maria II. A sedução como negócio perigoso


Já não se fazem inimigos como antigamente. Gente por quem damos tudo, gente que queremos ter no nosso sótão, gente que, ódio à parte, respeitamos. Hoje o ódio é de rede social, é antes um não gosto porque fazes posts para a tua mãe no Dia da Mulher. Coisa impossível de acontecer no tempo de Judite (Ana Guiomar), a heróina que entrou no acampamento de um poderoso exército com o fim de degolar o seu líder, o imberbe e execrável Holofernes (Tiago Vieira). E não pense que a impossibilidade se prenda com a ausência de internet neste tempo ido que a Bíblia nos declara. Nada disso. O que aqui se recupera é a atitude, o esgar de ser, para além de um ecrã, uma revolta real que leva uma mulher honesta a digirir-se à toca do lobo, ou ao lar do homem que mais odeia, para se aproximar do mesmo e no fim terminar-lhe com a vida. “Judite”, de Rui Catalão, está em cena no Teatro Nacional até dia 27 de março.

Projeto que nasce coxo. Não por falta de pernas para andar, mas porque Rui Catalão, normalmente, não escreve peças. “O Tiago Rodrigues, quando me fez o convite, estava interessado em criar reportório e eu não costumo trabalhar assim. O processo de escrita acontece durante todo a criação da peça. Desta vez sabia que antes de ter a peça feita tinha que ter um texto”, explica o encenador. Algo que o fez recuperar “Ester”, peça onde se estreou na escrita para um público mais jovem. Depois “ainda com a mão quente” escreveu “Judite”.

Em palco, um jogo de distâncias entre Judite e Holofernes, copo de vinho sempre cheio, um querer desconfiado que sempre regressa à pergunta: “Porque vieste ao meu encontro?”, diz Holofernes. Uma sedução em que nunca se entende ao certo até onde vai Judite, quantas ofensivas entre mantas a mulher vai suportar. “Acho que a Judite descobre um pouco este estranho processo de aproximação ao outro. Quando nos aproximamos de alguém, para o poder derrubar, temos que o conhecer, a partir desse momento, da compreensão, começamos a gostar. E isto é particularmente estranho se tu à partida definires que aquilo é um inimigo para ti. Foi esse jogo perverso daquela sedução que me interessou explorar”, enquadra Catalão.

O mesmo que afirma ser, desde sempre, leitor da Bíblia. Objeto essencial de partida nesta “Judite”. “O património literário da cultura ocidental começa ali. De certa forma ali estão as origens do pensamento ocidental e cristão. Sou muito interessado pelo feminino, e quando o digo não quero dizer mulheres, quero dizer feminino, até para um homem. As mulheres da Bíblia, para aquilo que entendemos como personagens não têm quase nada, são superficiais e por isso interessantes para explorar”, diz o artista.

Catalão não deixa de referenciar a pintora renascentista italiana Artemisia Gentileschi, ela que levou a vida a pintar Judite como forma de expulsar demónios, sempre com uma ótica autobiográfica: “Achei muito interessante que alguém, muitos séculos antes de mim, tivesse, obviamente com outros valores, com menos liberdade, encontrado uma estratégia para fazer aquilo que eu faço, com as suas diferenças, claro, sem esta não haveria Judite”.