Maria João Rodrigues, uma das maiores especialistas portuguesas em assuntos europeus, vice-presidente da família socialista europeia, acabou de conseguir aprovar um relatório pelo Parlamento Europeu em que conseguiu os votos do PSD e do CDS – integrados no Partido Popular Europeu – contra as políticas de austeridade. Em entrevista ao i, defende a urgência de aprovar um New Deal europeu que ponha a União Europeia a crescer. Quanto à dívida portuguesa, afirma que o problema tem de ser enfrentado, mas deve evitada “uma visão dramática”, leia-se exigir a reestruturação.
Acabou de aprovar um relatório em que admite ser possível virar a página da “austeridade cega” que tem marcado a Europa… Nós, cidadãos comuns, ainda não percebemos como é que a Europa vai conseguir fazer isso. Virar a página da austeridade cega, com a barreira do Tratado Orçamental?
É, de facto, um processo complexo, em que é preciso conhecer muito bem os meandros, mas devo dizer que o relatório recém-aprovado pelo Parlamento Europeu dá um contributo muito substancial para explorar alternativas à austeridade cega que marcou os últimos anos da Europa. Não foi fácil negociar este relatório. Tive de abrir um processo negocial com todos os grupos parlamentares e, depois, chegar a um compromisso que me permitisse obter a maioria no Parlamento Europeu, o que aconteceu há uma semana.
Conseguiu o apoio de todos os deputados do PSD no Parlamento Europeu?
Sim, os que estão enquadrados no Partido Popular Europeu votaram enquadrados pela própria família [são todos os deputados eleitos pelo PSD]. Obtive também o apoio do grupo dos Verdes, que é, a meu ver, muito significativo. Ficou de fora outra família que é considerada pró-europeia mas que, neste momento, se mantém numa grande deriva neoliberal, que é o grupo dos liberais. Mas isto foi suficiente para obter uma maioria muito clara e permitir ao Parlamento Europeu ter uma posição, quando no ano passado não tinha sido possível. O relatório, no ano passado, foi conduzido por um deputado do Partido Popular Europeu e foi chumbado no dia do voto final. Foi com grande alívio que eu vi que estava a obter uma maioria. É aquele momento final, de um minuto, em que se consegue confirmar se se tem a maioria ou não. É uma sensação quase física. A maioria estava lá, exprimiu-se. Mas por trás disto houve um trabalho de meses e meses. À partida, não era fácil. O método que eu costumo seguir neste tipo de negociações é o que aprendi com a minha experiência no Conselho Europeu – embora o Parlamento seja diferente –, que é um método que consiste em ir por patamares para conseguir um compromisso o mais avançado possível. Mas, em cada patamar, eu procuro apresentar argumentos que são muito difíceis de contrariar. Exemplo: comecei por alertar todos os deputados que estavam a negociar comigo, em representação dos seus grupos políticos, para que a Europa está numa situação verdadeiramente excecional. Esta conjugação de várias crises na realidade abre uma situação completamente nova de crise da própria integração europeia. Quando a Europa está confrontada com grandes desafios, agora externos, é fundamental que a coesão interna dos cidadãos europeus se reforce. E a melhor forma de reforçar essa coesão interna é garantir um relançamento económico e social muito mais sólido, capaz de reduzir o desemprego e de reduzir as desigualdades sociais que existem entre países e dentro de cada país. Comecei por usar esse argumento político de largo alcance para dizer, vamos agora discutir a fundo como se consegue um relançamento económico de grande envergadura, porque estamos realmente com um relançamento perfeitamente medíocre. Não é com este tipo de crescimento que vamos conseguir reduzir o desemprego. Temos aqui uma situação nova. Nos últimos anos, a Europa tem vindo a crescer sobretudo por uma grande aposta nas exportações e nos mercados globais. Mas, agora, os mercados globais estão envoltos em tendências muito preocupantes e negativas.
Estamos a falar da China…
Todos os chamados BRICS estão em retração da economia por razões diferentes. Isso, somando ao facto de a própria Europa ter um crescimento baixo, cria uma tendência de crescimento global muito medíocre. E, portanto, a Europa não pode continuar a contar só com as exportações para continuar a crescer. É importante que tenha capacidade de exportação e capacidade competitiva, mas a partir de um certo nível é fundamental olhar para a procura interna. E o momento é agora. A Europa, se quer crescer, tem de passar a contar muito mais com a sua procura interna. Ora, isso depende de quê? Depende, em primeiro lugar, de haver um investimento europeu em muito maior escala.
Estamos a falar de investimento público?
Investimento público e investimento privado, permitindo à Europa acelerar uma coisa que é fundamental, que é a transição energética e a revolução digital, e ao mesmo tempo dotá-la de muitos equipamentos sociais que continuam a fazer falta – o chamado investimento social. A Europa tem de conseguir desenvolver investimento nestas três prioridades em muitíssimo maior escala do que aquilo que é permitido no plano europeu de investimento ou plano Juncker. Há uma segunda forma de estimular a procura interna, que é reduzir as desigualdades sociais. Está provado que quando reduzimos as desigualdades sociais, os grupos sociais mais desfavorecidos, ao adquirirem capacidade de compra, gastam mais. E isso dinamiza a economia. Esta recomendação foi consagrada no Parlamento Europeu pela primeira vez. Isto quer dizer que as prioridades da política económica para o próximo ano mudam substancialmente em relação aos anos anteriores. Até há pouco tempo, o policy mix estava centrado em duas ideias: consolidação orçamental a grande ritmo, com o argumento de que o nível dos défices e dívidas era muito elevado, e reformas estruturais voltadas para apoiar essa consolidação orçamental, ou seja, cortes nos sistemas de proteção social e privatizações. Agora há uma mudança, em primeiro lugar porque se acrescentam outras duas prioridades, que é o investimento e a aposta na procura interna. Mas além disso há também uma alteração do que se preconiza para as reformas e para a consolidação orçamental. E isso foi também consagrado neste meu relatório, que neste momento é do Parlamento Europeu.
Que alterações são essas?
Quanto às chamadas reformas estruturais, o que se diz é que é preciso uma segunda geração de reformas cujo objetivo deve ser diferente, que é o de reforçar o potencial de crescimento. Estamos a falar sobretudo de reformas no sistema educativo, no sistema de investigação e desenvolvimento, no sistema de inovação.
E parar com as reformas no mercado laboral?
Não quer dizer que não haja reformas no mercado laboral, mas elas devem sobretudo visar, por exemplo, o acesso regular das pessoas à formação ao longo da vida que, em muitos países, é extremamente baixo. Outras reformas importantes é manter sistemas de proteção sustentáveis, mas de cobertura universal e, ao mesmo tempo, ter uma administração pública de qualidade relativamente aos serviços que presta aos cidadãos e empresas. Finalmente, a coleta de impostos, que seja exigente e mais justa. Não se pode ter uma coleta de impostos que deixe a descoberto os grupos mais abonados da população.
Um dos países da União Europeia, a Holanda é, na prática, um paraíso fiscal…
Esse é um dos problemas que mostra como, na prática, a construção europeia tem enviesamentos e injustiças gritantes. Há países como a Holanda que pressionam os seus parceiros para cumprirem a disciplina orçamental mas, ao mesmo tempo, esses países retiram a países como o nosso receitas fiscais que seriam fundamentais para reequilibrar o Orçamento. E retiram porquê? Porque oferecem condições de atração de investimento absolutamente excecionais que estão fora de uma base harmonizada europeia.
As empresas do nosso PSI-20 estavam todas na Holanda, pelo menos até há pouco tempo…
Isto mostra que não há verdadeira solução para o equilíbrio dos orçamentos da União Europeia se, ao mesmo tempo, não houver uma política fiscal de impostos mais harmonizada e mais coordenada. É exatamente por isso que o Parlamento Europeu atual criou uma comissão parlamentar nova que está a atacar esse assunto a fundo. E vai ser uma das prioridades deste parlamento. Forçar o Conselho, que até agora resistia… há uma situação de uma certa hipocrisia no Conselho, Estados-membros que, na realidade, fazem concorrência fiscal desleal a outros que preferiam ignorar o problema e resistir à harmonização. Na realidade, as decisões sobre harmonização têm de ser unânimes, não podem ser obtidas por maioria qualificada.
Acha que conseguimos chegar lá, à harmonização fiscal?
Vai ser das principais batalhas, das mais importantes mas também das mais difíceis da União Europeia. Mas essa questão tem de fazer parte de um New Deal europeu. É uma das peças integrantes desse New Deal.
Essa é uma prioridade dos socialistas europeus?
Sim. Voltando ao relatório que foi aprovado pelo Parlamento Europeu, o que se diz é que, no que respeita à zona euro, tem de se assumir de uma vez por todas que é uma entidade económica própria que exige uma política económica própria. Isso foi consagrado neste relatório. E se é assim, vamos então identificar os problemas que esta zona tem e que soluções é que tem de ter. Há um grande défice de investimento, gravíssimo. A zona euro tem de se organizar para que esse défice seja colmatado, devendo os países que têm mais folga orçamental dar um contributo mais importante para isso. Isto quer dizer que países como a Alemanha, que até agora, de um modo geral, têm resistido a fazer mais investimento com o argumento de que têm de atingir o superavit, acabam por se colocar a eles próprios e ao resto da Europa numa senda de consolidação orçamental forçada que reduz brutalmente a margem para investir. Isto não pode ser! A Alemanha argumenta que tem de fazer isto porque tem um problema muito grave de sustentabilidade do sistema de pensões, na medida em que tem uma população cada vez mais envelhecida. Mas há que dizer à Alemanha que a melhor forma de ela sustentar o seu sistema de pensões é aumentar a sua taxa de crescimento. Investir mais. Essa solução é muito mais eficaz do que estar a apertar o cinto, numa marcha forçada para chegar a um superavit. A Alemanha não está só a cumprir o Tratado Orçamental. Está a cumpri-lo a um ritmo muito superior àquilo que o próprio tratado pede. E o que é negativo é que isso limita a margem de crescimento não só da própria Alemanha como do conjunto da zona euro. Este problema é claramente identificado pela primeira vez no relatório aprovado. Não foi fácil. Aliás, o negociador-chave que eu tinha pela frente do Partido Popular Europeu era exatamente um alemão, representante dos pontos de vista alemães. Mas eu consegui convencer os deputados a reconhecerem que este problema existe e que países como a Alemanha devem ser conduzidos a investir muito mais. Este mesmo raciocínio tem de se aplicar ao défice externo alemão, que neste momento é um superavit excecional. A Alemanha é o país cujo superavit cresceu mais rápido nos últimos anos. Cresceu mesmo mais rápido que o chinês. E, portanto, a Alemanha tem uma grande margem para começar a importar dos seus parceiros europeus. Não tem necessidade de ter todo este superavit externo! Pode expandir a sua procura interna.
Mas a Alemanha não quer…
Não quer porque raciocina segundo um paradigma de que quanto mais exportar, melhor, e que isso deve ser pedido a todos os Estados-membros da zona euro – quanto mais se exportar, melhor. Mas isto é um grande erro de análise porque, em primeiro lugar, está a abrir uma tensão enorme com os parceiros a nível mundial. A Europa já está a ser altamente criticada, nomeadamente pelos parceiros do G-20, porque está a retirar aos outros margem para crescerem e está a criar um grande desequilíbrio a nível global. Mas a Alemanha, com isso, força os seus outros parceiros da zona euro a tentarem crescer só da mesma maneira, que é exportar ao máximo. Ora bem, a capacidade exportadora é algo positivo, mas a partir de um certo limite torna-se preocupante porque assenta numa contração da capacidade de procura interna e na capacidade de investir para garantir a prosperidade europeia. A partir de um certo nível, é contraproducente. Isto é reconhecido pela primeira vez neste relatório do Parlamento Europeu. Mas a coisa mais importante para Portugal que é reconhecida no relatório é dizer que os desequilíbrios macroeconómicos que existem na zona euro têm de ser resolvidos de uma outra maneira, tem de se pedir aos países mais competitivos que expandam a sua procura e importem mais dos outros. E quanto aos países menos competitivos, como é o caso de Portugal, o relatório diz claramente que a via que se seguiu, da desvalorização interna – ou seja, do empobrecimento –, não faz sentido. Não é recomendável. O que estes países têm de fazer é investir e reformar para atingir um nível de competitividade que não é baseado em baixos salários, mas em fatores avançados como transição energética, capacidade digital, inovação, educação. Há um reconhecimento, pela primeira vez explícito, que a via seguida do empobrecimento é de rejeitar para o futuro.
Estamos a falar do que se passou nos últimos quatro anos?
Exatamente. É necessário organizar na zona euro um processo de convergência ascendente, para melhores padrões económicos e sociais. Isso exige um esforço dos Estados-membros envolvidos, sem dúvida. Mas exige os devidos apoios ao nível europeu. Ou seja, exige que se complete a União Económica e Monetária com aquilo que ela não tem.
A professora faz parte de um grupo de trabalho que está a preparar essas mudanças…
Eu trabalho nesse tema há muito tempo e cheguei à conclusão que, para se atingir um New Deal europeu, o primeiro passo a conseguir é identificar esse New Deal dentro da família social-democrata europeia. Se se conseguir isso, será mais fácil depois consegui-lo, de forma transversal, com as outras famílias políticas. Acho que a família política onde este New Deal pode ser conseguido mais facilmente – embora não seja fácil – é a família social-democrata.
Apesar das grandes divergências que existem dentro dos sociais-democratas europeus?
Apesar das grandes divergências. Há, realmente, grandes diferenças. Fui nomeada para presidir ao grupo de alto nível da família social-democrata, composto por representantes dos primeiros-ministros e dos parlamentares. Estou a lidar com uma grande diversidade de posições mas, apesar de tudo, constato que está a haver alguma convergência entre essas posições diferentes. E nomeadamente com os sociais-democratas alemães.
A sério? Isso é curioso. Que convergência já encontrou e em quê, concretamente?
Quanto ao diagnóstico do problema. Há hoje uma perceção de que o principal problema que se viveu na zona euro começou por ser uma divergência entre capacidade competitiva dos países que a compõem. E que foi disfarçada, no arranque da zona euro, por um acesso talvez demasiado fácil ao crédito. Mas havia, já na altura da constituição da zona euro, divergências de capacidade competitiva. Depois, com a crise do sistema financeiro, somou-se outro problema que foi a crise bancária. E foi a conjunção destes dois problemas que depois veio a exprimir-se na crise das dívidas soberanas. Mas a sequência foi esta. E não uma história que às vezes se conta, para as criancinhas acreditarem, de que tudo isto começou com uma crise das dívidas soberanas. Não! A verdadeira história é esta. A crise financeira propriamente dita começa na América e vem a atingir a Europa particularmente porque a zona euro não estava preparada para lidar com uma pressão sobre a dívida soberana. Não tinha os instrumentos para lidar com isso. Foi numa situação extrema que criou o Mecanismo Europeu de Estabilidade. A isso somaram-se, já depois do eclodir da crise, erros evidentes de política económica com os chamados programas avançados pelas troikas. Em grande parte, esses erros são hoje reconhecidos, de uma forma mais ou menos explícita. E esses erros consistiram em subestimar que havia um problema de crise bancária em primeiro lugar. Como agora se vê em Portugal. E como também se subestimou que havia uma crise de capacidade competitiva e se defendeu que, acima de tudo, o problema era orçamental. A receita que foi administrada nestes países foi de uma consolidação orçamental forçada que dificultou imenso a recuperação económica dos países, destruiu parte do seu potencial produtivo, humano e não só, como vimos em Portugal. E que a seguir veio aprofundar os problemas do sistema bancário, como agora se vê em Portugal. Esta é a verdadeira história do que aconteceu. Reduzir isto tudo a um problema de disciplina orçamental é contar uma história a criancinhas.
A reestruturação da dívida está em cima da mesa por causa da Grécia. O governo português disse que, se a discussão for colocada a nível europeu, lá estará para a discutir. É possível discutir reestruturações da dívida para além da Grécia?
Acompanhei de perto a situação da Grécia, mesmo já com o governo Syriza, Syriza 1 e Syriza 2. Há realmente uma diferença grande entre os dois. A reestruturação da dívida grega foi equacionada não só pelo governo Syriza, que a reclamou várias vezes, como pelo FMI, que sempre disse que era imprescindível, como pelas entidades europeias, mais recentemente. Se a Grécia der provas de que consegue aplicar o atual programa, num certo momento poderá abrir-se essa discussão, dado o peso astronómico que a dívida assumiu. O que se diz em Bruxelas é que esse assunto será tratado de forma específica para a Grécia. No entanto, toda a gente sabe que há problemas de peso preocupante de dívida noutros países, embora não se coloque o problema da sustentabilidade com a mesma acuidade que se coloca na Grécia. Acho que se deve evitar uma visão dramática do problema. Mas o problema existe, tem de ser encarado e ser objeto de uma solução. No caso português acho que, no momento devido, que não é agora, a questão de qual deve ser a estratégia para a sustentabilidade da dívida deve ser discutida. Essa estratégia depende de vários fatores. À cabeça, depende de o país recuperar o seu potencial de crescimento, depende de contar com taxas de juro baixas e depende da taxa de inflação ser mais elevada. Estes três fatores combinados já fornecem uma parte importante da solução no caso português. Não creio que seja adequado colocar a dívida em cima da mesa exigindo uma solução radical. Isso seria contraproducente. Mas faz sentido pensar numa estratégia de sustentabilidade da dívida portuguesa jogando com estes três problemas que acabei de identificar.