Foi para a Rússia, União Soviética na altura, com que idade?
Tinha 18 anos.
Vinha de um meio muito modesto?
O meu pai era pescador e toda a minha família é ligada ao mar: pescadores e bacalhoeiros que andavam embarcados.
E na altura que se candidatou a uma bolsa para estudar na União Soviética, foi pela JCP [Juventude Comunista Portuguesa]?
Não, foi pela UEC [União dos Estudantes Comunistas]. Fui estudar para Moscovo. Eu não me tinha candidatado para ir para a União Soviética, mas o partido mandou e eu obedeci. Mas ainda bem. Fiquei em Moscovo, e ainda bem porque o pessoal que ficou na província tinha mais dificuldades que nós, na capital.
Foi um choque muito grande?
Fui estudar História e foi um grande choque: é um país enorme, com um modo diferente de viver e pensar, em que as pessoas agem de outra forma. E claro que, mesmo sendo jovem, há uma certa dificuldade de superar, por exemplo, a barreira linguística. As barreiras vão-se superando dependendo da vontade que temos de nos integrarmos mais ou menos naquela sociedade.
Constituiu família lá?
Casei-me com uma estónia. Os meus filhos são trilingues, falam russo, estoniano e português, como línguas maternas, e depois falam outras, mas aprenderam depois.
Qual foi a razão para escrever este livro?
Porque achei necessário. Olhando para o mercado livreiro português, há uma grande falta de informação sobre a Rússia, e por vezes há já estereótipos criados que dificultam ainda mais a compreensão daquele país e do seu povo. A Fundação Francisco Manuel dos Santos deu-me oportunidade de escrever e eu avancei. Tentei traçar linhas gerais porque, como se deve imaginar, 100 páginas não dão para muito mais, e pistas para aprofundar o tema.
Contesta a ideia de estarmos perante um país asiático, mas a Rússia também é um país asiático?
Eu não consigo compreender o que a Rússia tem de asiático.
Mais de metade do território na Ásia?
Mas aqui há uma coisa interessante: se pegarmos num siberiano ou num habitante de Vladivostok, não se diz que ele é asiático se não souber onde ele vive. O seu aspeto externo e a sua mentalidade são iguais a um russo de Moscovo: a forma de pensar, os princípios religiosos e morais são muito mais semelhantes aos dos europeus que aos dos asiáticos.
Mas no seu livro há passagens, como a história de Alexandre Nevski, que mostram que a Rússia está na confluência entre dois mundos. Isso não cria um tipo particular de pessoas e de país?
Está de facto nessa confluência, isso dá à Rússia uma vantagem, uma vantagem que muitas vezes não tem sido devidamente explorada. E a Rússia, durante toda a sua existência, andou à procura da sua identidade. Só que não há dúvida de que, em termos de ideologias que reinaram na Rússia, em termos de literatura e de arte, assemelha-se a um país europeu. O caso concreto que eu dou sempre é o Dostoievski que, não sendo europeísta, é um escritor europeu. Ninguém lhe vai chamar eurasiático.
Mas isso não padece de um certo eurocentrismo? Há chineses, japoneses e indianos que têm uma escrita dentro do cânone do romance ocidental e isso não faz deles menos asiáticos.
Não é. Não é eurocentrismo pelo seguinte: não existe uma Europa, existem países europeus, e todos eles têm as suas diferenças. Daí que a Rússia é um país tão europeu como Portugal. É claro que tem as suas especificidades. Mas dou sempre um exemplo: vamos pôr um russo, um finlandês e um português a falarem, quais são os dois que se entendem mais depressa? Claro que são o russo e o português, porquê? Porque a mentalidade russa e a própria cultura russa está muito mais ligada à nossa, por causa…
… de serem culturas camponesas?
E não só, são ambas culturas como uma forte influência francesa.
A minha professora de Russo dava-me o exemplo que, durante a invasão napoleónica da Rússia, um nobre russo ia sendo morto por ter celebrado uma conquista militar gritando “vitória” em francês, tendo-o os mujiques confundido com um ocupante.
É verdade. A nobreza russa falava francês. Havia poucos que falavam o russo e, destes, a grande maioria falava-o muito mal. Grande parte dos escritores, como por exemplo Tolstoi, escreviam igualmente bem em francês como em russo, com a mesma fluência. Volto a sublinhar, não há uma única Europa, há países europeus, cada um com as suas particularidades, no caso da Rússia que lhe advêm do seu gigantesco território.
Li o livro com muito interesse e atenção, mas há alguns aspetos que eu acho mais duvidosos: fala da invasão da Rússia à Geórgia, mas não fala do ataque à Ossétia do Sul que a precedeu; fala do tratado entre a Rússia e a Ucrânia e o Cazaquistão, que em troca do armamento nuclear viam a sua integridade territorial salvaguardada, mas não fala do compromisso do Ocidente de não integrar nenhum país, da antiga esfera soviética, na NATO, em troca da não oposição da URSS à reunificação alemã; descreve o apoio dos EUA na ii Guerra Mundial, mas não contabiliza o número de mortos soviéticos nessa guerra nem contextualiza o número com os custos suportados pelos soviéticos…
Aqui há um limite de espaço, e eu tento falar de aspetos que normalmente não são falados. O facto de na URSS terem morrido milhões de pessoas na guerra e o facto heroico da resistência dos russos à invasão nazi, toda a gente sabe; o que se desconhece mais é o grande contributo ocidental e dos EUA para essa resistência.
Mas não ignora que há uma corrente de revisionismo histórico que sublinha tanto a ajuda ocidental que se esquece do papel soviético na derrota do nazismo…
Não foi minha intenção. A minha intenção foi, com as 100 páginas que tinha, fornecer às pessoas o conjunto de factos de que elas não tinham conhecimento. Isso aí são coisas evidentes que eu não ponho em causa: a dimensão da resistência e o esforço dos povos da União Soviética são bem conhecidos.
Mas, por exemplo, considera que o pacto germano-soviético foi um erro absoluto; no entanto, é uma questão polémica. Houve uma comissão de historiadores durante a perestroika , dirigida, salvo erro, pelo Vadim Medvedev, que considerou que teve um papel importante de dar tempo à URSS, no contexto de que o Ocidente tinha feito o acordo de Munique com os nazis que deu a Checoslováquia à Alemanha…
A minha avaliação do acordo de Munique é que foi amplamente negativo. Agora, se falamos do pacto germano-soviético, não acho que não é verdade que Estaline ganhou tempo. No mínimo, nem sequer é meia verdade: Hitler também ficou com tempo para se preparar. Para além disso, a forma como Estaline aproveitou o tempo foi má. Quanto à questão do acordo do não alargamento da NATO, não existe nenhum documento escrito, esse é que foi o grande problema. Se existiu, como garante Gorbatchov – e eu acredito que existiu –, foi um acordo verbal com Helmut Kohl em que combinaram que o Pacto de Varsóvia acaba e a NATO não vai alargar-se. Eu acredito que tenha existido, mas não há nenhum documento que sustente esse acordo. Gorbatchov era uma pessoa que acreditava nas relações internacionais, existia a palavra de honra e que bastava isso, mas, como se sabe, isso não basta. Nas relações internacionais não há amigos, há interesses.
Mas não acha que alguma agressividade russa é explicável por um certo cerco prévio e constante que lhe fazem as potências ocidentais? Se os EUA estiveram para ir para uma guerra nuclear por causa de a URSS ter mísseis em Cuba, certamente a possibilidade de aver mísseis nucleares da NATO na Polónia, Checoslováquia, nos Países Bálticos pode contribuir para um sentimento de cerco.
Eu considero que isso não é uma discussão séria tendo em conta a capacidade de destruição das armas modernas. Não significa nada ter um míssil na fronteira da Rússia dada a capacidade de destruição das armas existentes. Os mísseis que estão na fronteira da Rússia também são visados em poucos minutos.
Mas não os Estados Unidos.
Mas se rebentam bombas atómicas não fica ninguém para contar, nem os EUA. Há uma coisa que temos de compreender: o alargamento não constitui uma ameaça para a Rússia. Se formos ver, em termos de orçamentos militares, depois do fim da Guerra Fria, à exceção dos EUA, por outros motivos, todos desceram…
Mas esse continuou a subir.
Porque têm outro tipo de preocupações que não são a NATO. As maiores preocupações dos EUA são o Médio Oriente e o seu envolvimento nesses conflitos. Segundo ponto, qual a razão que poderá levar a NATO a atacar a Rússia?
Por exemplo, a guerra na Síria. A Turquia entra na Síria, há um novo acidente mais grave com os russos, eles retaliam, e a NATO é obrigada, pelos tratados, a defender a Turquia: estamos numa situação como na i Guerra Mundial…
Exatamente, o artigo 5. Esse perigo existe, mas o facto de existirem o tipo de armas que existem é o momento de contenção. O abate de um avião é uma guerra convencional, não é obrigatoriamente uma guerra com escalada nuclear. E é um elemento muito perigoso, mas não depende de a NATO se estar a alargar. Se não estivesse a alargar-se, esta situação podia estar a acontecer na mesma.
Coloca a NATO como uma garantia de manutenção de independência, perante a Rússia, dos países que estiveram na zona de influência soviética?
Exato. Eu sempre fui contra o alargamento da NATO até a Rússia ter invadido a Geórgia. Eu uso o verbo “invadir”, não falo mais, no livro, da Ossétia do Sul por falta de espaço. Isso foi um ataque dentro da Geórgia, não é um ataque de um país exterior. A Rússia, quando apareceu o independentismo na Chechénia, lançou uma guerra que matou centenas de milhares de pessoas. O que os georgianos fizeram foi uma brincadeira, se é que se pode chamar brincadeira a estas coisas. A Rússia violou as fronteiras de um Estado soberano.
E quantas vezes durante o século passado foram violadas, pela NATO, fronteiras de Estados soberanos, começando pela Jugoslávia?
Eu também digo que a situação na Jugoslávia, nomeadamente no Kosovo, é diferente da Crimeia, porque no primeiro caso desmembrou-se a Sérvia para construir um novo Estado. Já o Kosovo foi o precedente da Crimeia até uma certa altura, mas quando é pura e simplesmente ocupado pela Rússia deixa de o ser.
Mas há alguma dúvida de que a maior parte da população da Crimeia quer estar na Rússia?
Mas não podemos pensar assim. Se o fizermos, esfrangalhamos completamente a Europa.
Mas se calhar, se aceitarmos o princípio da autodeterminação, devemos esfrangalhar algumas partes do mundo. Acha que, por exemplo, os curdos não devem ter direito a um Estado nacional?
Acho que sim, mas como e onde? Para serem um Estado nacional no sítio em que são maioritários terá de haver um acordo, e não uma guerra. A guerra não vai criar um Estado curdo.
Mas criou o Estado do Kosovo.
Mas aqui há uma coisa: o processo de desintegração da Jugoslávia, desde o início que foi um erro. Foi um erro alemão quando eles reconhecem um dos Estados, antes de os jugoslavos se juntarem à mesa e fazerem aquilo que foi feito na União Soviética, quando se juntaram para desfazer as fronteiras administrativas que havia até aí. Há uma coisa que é a minha opinião, ou prevalece o direito internacional de convivência e respeito ou isto é um caos.
Isso significa não se bombardearem ou invadirem países sem aprovação do Conselho de Segurança da ONU?
Sim, claro. Ninguém hoje defende que os EUA, ao invadir o Iraque, fizeram bem. A Rússia não está em condições de manter a política externa que está a fazer. Podia estar em condições quando o petróleo estava a mais de 100 euros por barril, e não fez isso, nem a modernização das estruturas e tecnologias, a não ser, e isso é verdade, o reforço do poderio militar. Isso é o grande problema: temos a economia russa a afundar cada vez mais, devido à queda do preço do petróleo e ao facto de não ter modernizado a economia, e uma política externa cada vez mais cara. A operação na Síria custa e vai durar ainda muito. Eu não acredito naquele cessar-fogo que assinaram agora. Repare numa coisa, temos também a continuação da questão ucraniana, e isso tudo custa milhões aos cofres russos.
Recentemente, um documentário realizado por um jornalista de origem portuguesa, numa televisão francesa, denunciou a implicação das milícias nazis, com o governo ucraniano, em crimes contra a população russa. Visivelmente, no seu livro, descarta esse cenário.
Em relação àquele incidente [mais de 50 russos foram queimados vivos na Casa dos Sindicatos em Odessa], é um acontecimento que devia levar a funcionar as comissões de inquérito internacionais. E colocar a claro como é que aquilo aconteceu. Não se pode permitir que casos desses ou como o do avião que foi abatido no leste da Ucrânia voltem a acontecer sem serem cabalmente esclarecidos.
Pode dizer-se que, para além da intervenção russa, houve outras ingerências externas, como a aposta do Ocidente num golpe de Estado?
Sim, com a assinatura de um acordo intermediado pela própria UE, que é a primeira a não cumprir o acordo. Eu escrevo no livro que foi uma enorme estupidez essa política da UE. Mesmo nessa situação, a intervenção externa, como ficou provado em todo o lado, só agudiza os problemas e não resolve nada.
Mas os russos não têm o dever de defender as populações de cultura russa nesses territórios perante um golpe de Estado?
No caso da Ucrânia, a situação é a seguinte: é um país novo. Mas é normal esse tipo de conflitos. Mas a ingerência externa veio provocar ainda mais problemas. Havendo erros da União Europeia, é preciso colocar as coisas na sua devida perspetiva: a UE não mandou tropas para a Ucrânia nem invadiu o seu território. Que a Rússia tem direito a lutar pelos seus interesses e da sua população, tem. Mas isso não pode implicar uma intervenção militar.
Mas estamos num tempo em que a UE bombardeou a Líbia, mudaram as fronteiras da Jugoslávia e de mais não sei quantos países, tudo regiões onde alemães, franceses e outros não tinham populações, e parece que a única violação do direito internacional é dos russos.
Há uma coisa que é fundamental. Se os outros fazem asneiras, não se deve repetir os mesmos erros. Eu estou a olhar para as coisas do ponto de vista russo, do que seria o melhor para os russos. Quando olho para estes factos, entendo que eles seriam mais bem defendidos de outra forma, e que esta intervenção só vai prejudicar a Rússia e os russos.
Considera-se quase russo, dada a sua vida?
Eu vivi mais tempo na Rússia que em Portugal. Se agora viver tanto tempo em Portugal como vivi na Rússia…
Ultrapassa o Manoel de Oliveira (risos). Talvez, se fizesse as contas (risos). É preciso ver uma coisa: temos um enorme país, com grandes potencialidades, mas que em vez de aproveitar mais uma hipótese de se modernizar, resolve fazer tudo para se destruir. Eu receio estar num déjà vu: a União Soviética caiu, entre outra razões, devido a uma queda do petróleo muito grande em 1982 e nos anos que se seguiram, o que tirou ao Gorbatchov qualquer hipótese de fazer reformas económicas. Gorbatchov não tinha dinheiro. E quando ele pediu dinheiro ao Ocidente, eles não lhe deram para provocar a sua queda e colocar lá Ieltsin, essa é a pura verdade. Agora, a União Soviética meteu-se numa política externa que claramente não aguentou. Meteu–se em tudo: Afeganistão, Angola, Moçambique, Etiópia, etc… Chegou a determinada altura, o sistema não aguentou e rebentou. A Rússia é um país com imensas potencialidades, mas pode voltar a dar-se o mesmo e rebentar. Não têm o poderio económico da China. Os chineses não se envolvem em loucuras. Está–se a ver os chineses a invadir Taiwan só porque estão irritados? Não, esperam que Taiwan um dia lhes caia ao colo de maduro, como foi Macau e Hong Kong. Para os chineses, mil anos é já amanhã.
Aquela vez que perguntaram, creio que ao Deng Xiaoping, o que achava da Revolução Francesa, e ele respondeu: “Ainda é demasiado cedo para ter opinião sobre o assunto (risos).”
Exato, é nesse sentido que eu olho as coisas. Os pecados de uns não justificam os de outros. Eu falo, pelo menos tento, do ponto de vista da Rússia e da defesa dos interesses da Rússia, tal como ela existe ou pode atuar. É minha convicção que o Putin está a levar o país para um beco sem saída.
Para o ano é 2017, o que significa…
… o centenário das aparições de Fátima e da Revolução de Outubro.
A revolução soviética é um momento de continuidade da Rússia ou de rutura?
É uma coisa e outra. A política externa russa foi herdada pela política externa soviética. Não é por acaso que, no tempo da União Soviética, as obras de Marx e Engels sobre a política externa russa, do século xix, tinham leitura restringida e estavam censuradas. E nesse sentido há momentos em que os vetores da política externa soviética continuam parcialmente os anteriores da Rússia, mas também há uma rutura no sentido em que eu escrevo que a Rússia passa de copiadora a modelo. O modelo social criado pela Rússia passa a ser o modelo copiado pelos outros.
Mas foi um momento espantoso na história?
Claro que foi um momento espantoso, porque virou o mundo, como se costuma dizer, de pernas para o ar. Não vamos negar a importância que teve o golpe de Estado de outubro, como chamavam os bolcheviques – “revolução”, só Estaline é que começou a chamar mais tarde. O Lenine chamava-lhe golpe de outubro. Foi importante não só para a Rússia. Refletiu-se em todo o mundo e ainda hoje tem influência – com maior ou menor intensidade, mas as suas ondas continuam.
O que mantém da sua juventude de comunista?
Mantenho o desejo de oportunidades iguais para toda a gente, o que acho que é um princípio básico para qualquer sociedade, o princípio da solidariedade, que não é comunista, mas deve ser geral no homem. Nesse sentido, até sou adepto do código moral dos construtores do comunismo, escrito em 1960, que são mais ou menos uma reprodução dos dez.