Berlinale. Uma miúda de ouro para o cinema português

Berlinale. Uma miúda de ouro para o cinema português


No ano em que o cinema português teve a sua maior presença de sempre em Berlim, Leonor Teles voltou para casa com um Urso de Ouro – e mais um recorde


“Nunca pensei chegar aqui com um filme tão parvo.” Será esta uma das frases mais citadas de Leonor Teles, depois de ter recebido em Berlim o Urso de Ouro das curtas com “Balada de um Batráquio”. Um filme de que disse ainda ser “tosco”, feito basicamente para “partir sapos”. Ontem, dia em que regressou a Lisboa com o seu Urso de Ouro, Leonor Teles estava incontactável, numa pausa para um merecido descanso. “Estava incrédula, não estava mesmo nada à espera”, disse ao i a produtora do filme, Filipa Reis, pouco depois de ter deixado a jovem realizadora em casa. “Claro que uma pessoa se está em competição já sabe que pode ganhar, mas ela estava a aproveitar o festival tendo um filme em competição, ter um primeiro filme em Berlim já era tão bom que valia por isso. O filme foi bastante bem recebido pelos programadores e pela equipa toda das curtas, mas isso não queria dizer nada, quem escolhe é o júri, portanto não havia a menor expectativa, havia era a vontade de aproveitar aquela semana.”

O cinema português não precisava de  nenhum urso na Berlinale para que esta fosse uma edição de ficar para a história. Havia Ivo Ferreira na competição oficial, onde até aqui tinham chegado apenas Miguel Gomes com “Tabu” em 2012, e Manuela Viegas com “Glória”, em 1999, mas esse era apenas um dos nomes nacionais presentes no certame, que tinha nesta edição o maior número de filmes nacionais de sempre: oito filmes, três deles em competição: “Cartas da Guerra”, o aclamado filme de Ivo Ferreira, baseado na correspondência de António Lobo Antunes e, nas curtas, “Freud und Friends”, de Gabriel Abrantes”, e “Balada de um Batráquio”, primeiro filme de Leonor Teles. E quando ninguém esperava mais nada além disto foi mesmo a jovem realizadora a impressionar o júri e a trazer para casa um Urso de Ouro – além da honra de ser a mais jovem realizadora de sempre a ter um filme distinguido com este prémio.

Leonor Teles nasceu em Vila Franca de Xira em 1992, numa família com raízes na comunidade cigana local, por parte do pai, aspeto que tem sido central nos seus filmes e que foi ponto de partida para “Rhoma Acans”, um filme de curso para a Escola Superior de Teatro e Cinema que acabou por chegar a vários festivais e distinguida com uma menção honrosa no Indie Lisboa.

“Balada de um Batráquio” foi o seu primeiro filme, feito com um orçamento inicial de 2500 euros, é um filme “para partir sapos”, disse ao “Público” ainda em Berlim, esses sapos de cerâmica que se tornaram símbolo da xenofobia contra a comunidade cigana em Portugal.

“O que se segue aconteceu antes de as pessoas existirem e mandarem no mundo. Nesses tempos, excepto as árvores, todas as coisas com vida podiam movimentar-se livremente.” O início dá o tom a um filme que não se esperava que saísse premiado, mas cuja vitória faz todo o sentido num festival com a vocação europeísta como o de Berlim provou que continua a ter, ao lembrar-nos nesta edição os valores da velha Europa, que ainda há 30 anos ali se dividia por um muro.

Lembrar a velha europa O Urso de Ouro foi para “Fuocoammare” (“Fogo no Mar”), um documentário do italiano Gianfranco Rosi sobre a crise dos refugiados na Europa – um vencedor que já se antecipava, dada a atenção dada ao tema ao longo de todo o festival. Para os refugiados, houve estágios especiais e bilhetes grátis para as sessões, além de terem sido montadas caixas para donativos nos vários locais que acolheram o festival e de a célebre fachada do Konzerthaus ter sido revestida pelo famoso artista chinês Ai Weiwei com 14 mil coletes salva-vidas, os mesmos que usam todos os dias os homens e mulheres que continuam a tentar atravessar o Mediterrâneo.

Rosi, que nasceu na Eritreia e passou vários meses em Lampedusa a fazer o filme, onde acompanhou várias missões de socorro da guarda costeira a barcos que chegavam maioritariamente da Líbia, dedicou o prémio a “todos os que abrem o seu coração a outros povos”. Ao lado de Meryl Streep, que lhe entregou o troféu (depois de também na última edição de Cannes ter vencido “Dheepan”, sobre o drama dos refugiados do Sri Lanka nos subúrbios de Paris), o realizador italiano disse esperar que esta distinção traga mais “consciência” à Europa. “Não é aceitável que pessoas morram a atravessar o mar a tentar escapar a tragédias”, afirmou o realizador que em 2013 venceu o Leão de Ouro em Veneza com “Sacro GRA”.

Através do olhar de um rapaz de 12 anos e de um médico locais, “Fuocoammare” é um documentário sobre a crise dos refugiados que chegam à Europa, que a atriz que presidiu ao júri qualificou como um “cinema urgente, imaginativo e necessário”, que ao mesmo tempo que nos faz refletir sobre “o que um documentário pode fazer”, “exige o seu lugar à frente dos nossos olhos e obriga-nos a um compromisso e à ação”.