Javier Urra. “As crianças são chantagistas desde que nascem”

Javier Urra. “As crianças são chantagistas desde que nascem”


O seu livro “O Pequeno Ditador” bateu recordes de vendas em Portugal, indo já na 18ª edição. Os anos passaram, os pequenos ditadores cresceram, e Javier Urra conseguiu finalmente inaugurar o Recurra Ginso, um centro para educar pais e filhos a amarem-se. O psicólogo e pedagogo esteve em Portugal para apresentar o seu mais recente livro,…


Há filhos com problemas que tenham pais sem problemas?

Não. O meu centro, aliás, nasce do pressuposto que se trabalha com os filhos mas também com os pais. Os miúdos é que ficam internados, mas os pais têm de vir, no mínimo, três vezes por mês visitar-nos. Mesmo que vivam nas Ilhas Canárias. Fazem terapia individual, terapia de casal e terapia de grupo. Trabalhamos com os pais de forma diferente da que trabalhamos com os miúdos, mas eles também estão obrigados a mudarem e a entenderem os filhos.

Parte dos problemas entre pais e filhos têm a ver com o conceito de culpa?

Isso é fatal. Nós não nos focamos na culpa. Para nós, a frase central é: “o importante não é o eu, mas o tu”. Assumimos que há um problema e que a solução tem de partir de cada um. Nós somos apenas incentivadores da solução.

Qual o retrato das famílias que recorrem ao seu centro?

Temos famílias tradicionais, famílias reconstituídas, famílias monoparentais… E temos uma percentagem elevada de filhos adotados, mais de 20%, sobretudo do leste da Europa, jovens que nasceram com síndroma de alcoolismo fetal e outros que estiveram institucionalizados e não receberam amor. Temos miúdos provenientes de famílias de classe muito alta, alta, média, baixa e muito baixa. As pessoas chegam a pedir hipotecas para tratar os filhos. Temos muitos filhos de médicos, muitos mesmo.

E os miúdos?

Os miúdos que tenho não são psicopatas. Têm problemas com os pais, mas não perderam a capacidade de amar. Trabalhei em reformatórios, com violadores, homicidas… e aí há casos que não sei se não terão perdido a capacidade de amar. Têm seguramente uma capacidade de odiar o mundo e querem fazer mal aos outros. Mas estes miúdos, não! Por isso trabalho a patologia do amor. Estes pais e estes filhos querem amar-se, mas por vezes não têm as ferramentas para o fazerem. Já vi todos os miúdos que temos no centro chorar. E quase todos têm fotos das famílias na parede. Por vezes tapam a cara de um dos pais e quando pergunto porquê dizem que não querem saber deles. É mentira. Se não quisessem nem os tinham na parede. Os miúdos adotados, por exemplo, quando vieram de sítios onde não foram bem tratados, tendem a massacrar os pais adotivos. Querem levá-los a um ponto que lhes permita perceber: “Faça o que fizer, vais continuar a gostar de mim?”.

Os miúdos tendem a ser chantagistas?

Sim. Já tivemos um miúdo diabético que dizia aos pais que, se eles não lhe comprassem o que ele queria, não tomava a insulina. As crianças são chantagistas desde que nascem. Mas os idosos também. É um ciclo que se completa.

Falou de vários tipos de famílias. Têm recebido crianças ou jovens que vivam com casais homossexuais?

Não.

Esta é uma discussão muito atual aqui em Portugal.

O único estudo feito em Espanha sobre adoção homossexual foi dirigido por mim. Num universo de 29 casais homossexuais, que nos deixaram entrar nas suas casas, não encontrámos qualquer característica que distinguisse estas crianças de crianças que tivessem sido adotadas por casais heterossexuais. Eu sou religioso, e este estudo saiu-me muito caro, a Igreja disse-me que eu e a minha instituição tínhamos terminado para eles, mas o resultado foi este. Claro que o estudo tem um problema: 29 famílias é uma amostra curta. Queria, a longo prazo, perceber como estão estes miúdos, que percentagem é homossexual, por exemplo. Podem dizer que isto é homófobo, mas não é. Também quero saber quantos filhos de um casal multirracial casam com pessoas de outras raças. Isto é ciência, não é preconceito. Se me perguntam se os homossexuais têm direito de adotar? Não. Se os heterossexuais têm direito de adotar? Não. A criança é que tem o direito de ser adotada. Este é um tema muito interessante. E muito polémico, sobretudo em países católicos, como Portugal e Espanha.

Em Portugal temos cerca de 220 mil crianças medicadas para a hiperatividade. Vivemos tempos em que a solução fácil é a mais utilizada?

Tenho muita dificuldade em acreditar que essas crianças todas precisem de ser medicadas. É certo que vivemos numa sociedade stressada e o stress também atinge os miúdos. Não lhes damos tempo para brincarem, queremos é que aprendam espanhol, inglês, chinês, que toquem violoncelo, façam desporto. Ainda assim, a maioria dos miúdos que nos chegam com diagnóstico de hiperatividade não se confirma esse diagnóstico. Os pais, até podem negar, mas o que querem mesmo é que os filhos sejam diagnosticados com algo e, a partir daí, tudo o que aquela criança faça, a culpa é da doença. Mas se damos comprimidos a uma criança, ela vai aprender o facilitismo desde pequena. E a partir daí, perante qualquer problema, vai tomar comprimidos. A verdade é que há muitas modas também nestas áreas, e de há uma década para cá todas as crianças são disléxicas, hiperativas e agora bipolares… Mas muitas destas crianças hiperativas, se lhes puserem um desenho animado que adoram, elas ficam uma hora e meia quietas em frente ao televisor. Como podemos dizer que são hiperativas?

Ainda tenciona abrir um centro em Lisboa?

Sim. O problema é que este tipo de centro é muito caro. Somos um centro privado, mas em Espanha o ministério da saúde ajuda-nos. Não somos um centro educativo, nem um centro social, somos um centro terapêutico. O que estamos a tentar em Lisboa, é que o ministério da saúde ou da solidariedade nos ajude, porque se for para pagar de maneira privada, os pais não vão poder. Estamos a estudar as hipóteses.

Ultimamente fala-se muito de imaturidade. Andamos a educar eternas crianças?

Sim, e a consequência disso é grave. Há pessoas de 40 anos que continuam a ser muito imaturas. Digo sempre que, se plantarmos a semente de uma árvore, ela nasce e cresce, mas se nos pusermos a cortar um tronco aqui e outro ali, de repente temos um bonsai. Isto é sobreproteção. A vida tem de ser liberdade, criatividade, risco. As crianças e os adolescentes têm de sair.

Mas também têm de ter regras?

Claro, têm de ter regras e deveres. Sobretudo para gerar consciência, que é algo muito importante. Uma criança, quando nasce, acha que é tudo para ela. Mas aos sete anos começa a entender o que é o outro, o que é a cooperação. E por isso há crianças e jovens muito generosos, porque se gerou neles uma consciência de generosidade, que é muito importante. Não estou a dizer que temos de criar samaritanos, mas temos de educar as consciências. Por isso digo, por exemplo, que os pais devem levar os filhos a visitar um hospital. E devem explicar que algumas daquelas crianças não sairão dali. Sobreprotegemos as nossas crianças sob o argumento que queremos que sejam felizes. Mas a vida é dura, as nossas crianças e adolescentes vão-se cruzar com a droga, com pessoas más, vão ter de trabalhar, e têm de saber ser felizes no meio de tudo isto.

A tendência de um pai é proteger o filho.

Sim. E não há pais perfeitos. Nem filhos perfeitos. Não nos podemos esquecer que, muitas vezes, quando os pais pensam que não entendem os seus filhos, eles próprios também não se estão a entender. Às vezes gritamos, enervamo-nos. Mas pais e filhos devem combinar não se atacarem. Não devem dizer nada que seja para ferir propositadamente. E depois têm de saber dar um beijo. Castiguei muito os meus filhos, mas de seguida dizia-lhes sempre: “Gosto muito de vocês. Se vos castigo é porque gosto muito de vocês”.