A partir da infância parece sempre mais fácil abarcar o mundo inteiro. A palavra é ainda um signo instável, que apalpa as coisas, aprende a caçar com uma fome espantada, é essa que é a vantagem da criança sobre o adulto, uma atenção desgovernada, a imaginação torna-se uma febre e um balanço, a realidade não se acaba e nela parece caber tudo. As ilustrações que conquistaram o prémio da Ilustrarte – Bienal Internacional de Ilustração para a Infância, são da espanhola Violeta Lópiz, uma investigação onde se deixa pressentir a deambulação entre as sete colinas.
Natural de Ibiza e residente em Berlim, a ilustradora mudou-se temporariamente para Lisboa, procurando expandir o campo de visão de um texto do escritor, músico e palhaço paulista Cláudio Thebas. Num português do Brasil, burilado, só aparentemente simples, brincando com a nuance, ele marca o campo num terreno muito familiar, num livro que se chama “Amigos do Peito” (Bruaá, 2014). Mas a amizade não é só feita das pessoas, mas dos lugares, e por isso Thebas diz às tantas que “os amigos não têm apelido, têm endereço”. Ele disse também que no seu trabalho multifacetado e dirigido a diferentes públicos, chegou à conclusão de que “existem duas literaturas: a feita para todo o mundo, e aí estão incluídas as crianças, e a para adultos, com uma linguagem que a criança não conseguiria entender”. Na sétima edição da Ilustrarte o mundo não tem do que se queixar. O trabalho de selecção foi feito a partir das candidaturas de 1700 ilustradores de 72 países. São 50 os finalistas, que têm agora, e até ao dia 17 de Abril, em exposição ao público no Museu da Electricidade, em Lisboa.
Coube novamente à dupla de arquitectos Pedro Cabrito e Isabel Dinis conceber um recreio que ajudasse à festa, e assim o projecto expositivo ajudou à relação de vizinhança entre os trabalhos desta meia centena de “putos esvoaçantes”, num bairro em que os módulos que acolhem os originais das ilustrações são pequenas casas, estruturas que se erguem daquelas que são as primeiras linhas pelas quais a infância começa a desenhar uma paisagem habitada. A casa na sua redução ideal: “um quadrado, uma janela, um telhado e uma chaminé”, como referiu Eduardo Filipe, que partilha a curadoria com Ju Godinho. Os trabalhos são apresentados no “chão da casa”, o tampo da mesa. O curador adiantou ao i que a proposta dos arquitectos foi feita ainda antes de ser anunciado o vencedor desta edição da Ilustrarte. E Violeta Lópiz logo deu pela feliz coincidência, o casamento entre o bairro da exposição e aquele a que as suas ilustrações deram cor e detalhe sem saltar o muro da infância.
Entre os artistas seleccionados as casas são um dos mais fortes lugares em comum. Símbolos partilhados numa amostra de resto “extremamente ecléctica”, como sublinha Eduardo Filipe. E se a atmosfera urbana marca o trabalho de Lópiz, que não evita uma discreta homenagem à capital portuguesa, o curador diz que é possível perceber que nas grandes linhas da ilustração contemporânea, e apesar da diversidade de perspectivas, os últimos anos têm revelado um particular interesse no retrato dos ambientes urbanos.
O júri este ano foi composto pelo francês Serge Bloch, o espanhol Juanjo Oller, a alemã Johanna Benz (vencedora da edição anterior) e a designer portuguesa Joana Astolfi. Além do prémio para Lópiz, foram atribuídas menções honrosas à belga Ingrid Godon, ao espanhol Jesus Cisneros e à italiana Claudia Palmarucci.
Portugal surge bem representado entre os finalistas, com Teresa Lima a ser novamente seleccionada, ao lado de Catarina Sobral, Joana Estrela e do artista plástico Daniel Moreira. Eduardo Filipe lembra que se vive hoje um momento muito bom na ilustração portuguesa, com os ilustradores nacionais “entre os mais cotados a nível internacional”. Para o responsável pela exposição é importante referir o “grande mérito” de um conjunto de pequenas editoras empenhadas em alargar os horizontes da literatura infantil no nosso país, editoras como a Bruaá, Pato Lógico, Planeta Tangerina ou a colecção Orfeu Mini da editora Orfeu Negro. O curador orgulha-se de uma vez mais a exposição ter marcado passo, cimentando uma iniciativa que a cada dois anos tem sido capaz de oferecer uma “panorâmica muito boa” da arte de ilustração e, aliando, a importância nacional e internacional ao sucesso a nível de público, com 25 a 30 mil visitantes em cada edição, números “muito bons para Lisboa”.
A par com “o espaço dedicado aos livros de Alice Vieira, uma das mais importantes escritoras portuguesas para a infância e juventude”, Eduardo Filipe realça ainda a exposição sobre a obra de Serge Bloch, um dos nomes maiores da ilustração e design internacionais. Autor de “Eu Espero…”, com Davide Cali (Bruaá), o convidado especial desta edição do Ilustrarte, numa entrevista ao “Diário de Notícias” falou na alegria com que recebeu o convite para revisitar Lisboa, cidade que conheceu quando tinha 18 anos, em 1974. “Soube que tinha havido uma revolução na Europa e vim ver.” Bloch partilha a memória da descoberta imensa de uma cidade que, por aqueles dias, era “uma loucura”, “cheia de pinturas pós-modernas”. Lembra-se do 1º de maio, das muitas manifestações e do desfile de soldados com cravos. “Foi lindo.”
Ambiciosa na tentativa de historiar o enorme percurso e as facetas do traço deste artista, a exposição dedicada a Bloch consegue capturar em alguns passos a imensidão de um artista que desenha regularmente para as páginas dos campeões da imprensa (“The Washington Post”, “Wall Street Journal”, “The Los Angeles Times”, “The New York Times”, “Time”, “New Yorker”, “national Geographic”, “Libération”, uma lista que nunca mais acaba). Além das ilustrações para imprensa, os mais de 300 livros em que colaborou, há as capas de revistas, cartazes publicitários e desenhos que estiveram na origem de duas séries de animação.
Mas Serge Bloch não se limitou a aparecer e deixar-se agraciar. Numa parede do Museu da Electricidade desenhou um homem gigante a passar por uma porta e a enquadrar uma das televisões, e produziu ainda uma instalação com dois conjuntos de cubos gigantes. O seu trabalho é exemplar de uma arte que se aplica em criar novas linguagens para o pensamento, a um nível subliminar. Modesto, descreve a sua arte como uma arte menor. Mas o seu estilo, que resulta de um traço rápido mas que vem embalado num evidente esforço reflexivo, reconhece-se instantaneamente. Umas poucas linhas, as suficientes. Muitas vezes recorre também ás colagens. Fácil de copiar, é impossível de imitar. Porque o que há nele é uma frescura, uma inteligência que não precisa de muito para animar uma página, construir uma embrulhada, contar uma história. Um humor que não tem nada de espampanante, que prefere a subtileza, o cuidado que abre um sorriso entre a distância que vai da infância à idade adulta.