Andrei Tarkovski. Esse perfecionismo enlouquecido

Andrei Tarkovski. Esse perfecionismo enlouquecido


Para ver a partir da próxima semana no Espaço Nimas, que faz uma retrospetiva integral da obra do realizador soviético.


Diz-se, numa daquelas histórias que ficarão para sempre na incerteza das coisas que tanto podem ter sido verdade como mito, que um dia Tarkovski pediu a uma mulher que lhe lançasse as cartas para ver o seu futuro e ela lhe disse que faria apenas sete filmes em toda a sua vida. Como apenas sete? Vão ser sete. Mas vão ser sete muito bons. Não foram sete, foram 12, contando com as primeiras curtas e “O_Rolo Compressor e o Violinista”, que fez ainda enquanto estudante, antes de em 1962 se ter apresentado em Veneza com a sua primeira longa metragem, “A Infância de Ivan”, que lhe deu um Leão de Ouro e o lançou para o seu filme seguinte, “Andrei Rubliov” (1966), proibido na União Soviética até aos anos 70 e exibido no último dia do Festival de Cannes às quatro da manhã, não fossem dar-lhe um prémio – que de qualquer modo acabou por receber.

Quanto ao que veio depois disso, o presságio não acertou, mas por pouco. Andrei Tarkovski estava lançado para se tornar o nome mais relevante do cinema soviético depois de Eisenstein. Uma obra a que vamos poder regressar a partir da próxima semana, no Espaço Nimas, que faz uma retrospetiva integral da obra do realizador soviético, que inclui alguns filmes que nunca tinham tido exibição comercial em Portugal, como é o caso de “O_Rolo Compressor e O Violino”.

“Todos os filmes dele estão ao mesmo nível, em qualidade e em intensidade”, diz Alberto Ruiz de Samaniego, docente de estética na Universidade de Vigo e escritor, além de comissário da exposição “Luz Instantânea – Fotografias, Itinerários e Saudades de Andrei Tarkovski”, que esteve em 2011 no CCB. “É possivelmente o cineasta mais reconhecido mundialmente dos últimos 40 anos e é um realizador com muita influência em realizadores mais jovens, creio que é pelo caráter tremendamente autêntico que têm as suas imagens.”

Era o próprio realizador que dizia que toda a vida tinha andado a fazer o mesmo filme, sobre o homem em busca de um ideal, Samaniego vê a sua obra em duas partes, representada por dois filmes essenciais: “O Espelho” (1975), na sua vertente mais “intimista, sonhadora, carregada de nostalgia e melancolia”, a que se podem juntar os últimos filmes, “Nostalgia” de “O Sacrifício”; e “Stalker” (1979), um filme de ficção científica, “uma distopia em torno de um território de contaminação”, que, com “Solaris” ou “Andrei Rubliov”, surge numa outra linha de “caráter mais filosófico, simbólico, mesmo político”.

Já agora, sobre “Stalker” há muito que contar, esse filme cuja versão que conhecemos é completamente diferente da primeira, tudo porque Tarkovski decidiu filmá-lo inteiro uma segunda vez, depois de um problema na revelação da película. “É um formalista extremo, cuida todos os detalhes de uma maneira extrema, a ponto de ser capaz de repetir um filme inteiro ou de realizar sequências uma atrás da outra, repetidas, até chegar ao que queria.” Daí que “além da carga de autenticidade, as imagens de Tarkovski sejam também de uma perceção formal extraordinária”.

Sobre isso nada melhor do que recordar outra história, essa de certeza verdadeira, ocorrida durante filmagens de “Nostalgia”, o primeiro filme que faz fora da União Soviética, em Itália, para o qual constrói o interior de uma casa de família, em tamanho real, para filmar tudo e no final decidir que afinal é preciso mudar a casa toda meio metro e voltar a filmar. O_plano não resultava, dizia.

“Era um cineasta de um perfecionismo enlouquecido. O que o diferencia de outros realizadores muito formais, como Kubrick, por exemplo, é o caráter tremendamente afetivo da sua obra, que afeta o espectador.” Aí já a transportar-nos para um universo bergmaniano – o cineasta sueco é, aliás, uma das suas referências, a par de Robert Bresson. “realizador muito focado num cinema de caráter transcendente, que é outro traço importante de Tarkovski, não num sentido estritamente religioso”. Mas vamos ao que disse Bergman: “Para mim, Tarkovski é o melhor. Inventou uma nova linguagem, fiel à natureza do cinema, que captura a vida como um reflexo, a vida como um sonho.”

claudia.sobral@ionline.pt