Tens Portugal no pensamento?


Voltou? Sim, estive 8 anos em Inglaterra. E voltou? Agora? Está toda a gente a ir embora e você volta.


É o dia 20 de Agosto de 2013.

Entre, André. Em que posso ajudá-lo? Venho inscrever-me. Estou desempregado e quero fazer parte da estatística deste país. Assim quando alguém falar de percentagens de desemprego saberei que também falam de mim. Como aquele jogador de futebol quando marca um golo e diz que está ali, eu quero também dizer que estou aqui. Quero atenção, que validem a minha existência, como um piromaníaco ou um assassino em série. Quero sentir que pertenço, que tenho lugar na sociedade, mesmo que seja através de um número estatístico partilhado. Mesmo que seja um número. 

Plim. Senha 207, Suba ao 3º andar. 

Entre. Cartão de Cidadão. Aqui tem. Posso sentar-me? Os seus dados no cartão não correspondem ao seu registo aqui no IEFP. É que eu estive muito tempo fora. Voltei faz hoje uma semana na verdade. Voltou? Sim, estive 8 anos em Inglaterra. E voltou? Agora? Sim. Mas teve algum problema? Não, a minha vontade foi voltar. Voltar para onde?  Para o quê? Está toda a gente a ir embora e você volta. Não ouviu o que o Primeiro-Ministro disse? Eu não ajo conforme o que esse, sou interrompido pela minha experiência profissional inserida no computador deste técnico do centro de emprego. Nesta sala abafada tudo está na iminência de derreter, tecla a tecla. Assine aqui. Ok, está inscrito, pode ir. E agora? Agora se surgirem trabalhos na sua área vamos avisá-lo. Mas o senhor nem me perguntou o que quero fazer. Isso não interessa se está à procura de trabalho. Tenho então só mais uma pergunta antes de ir embora. Aliás, é bastante importante. Diga. Eu trabalhei em Inglaterra, mas voltei a Portugal sem receber o subsidio de desemprego lá ou qualquer outro benefício, contudo segundo a Lei do trabalhador-migrante dentro da União Europeia posso fazer esse pedido cá. Sim pode, o primeiro passo era inscrever-se aqui como acabou de fazer, o segundo será ir à Segurança Social e apresentar o seu caso, mas digo-lhe já: isso é impossível. Impossível? Mas acabou de dizer como devo proceder. Pois, mas não devia ter voltado, acha que pode fazer o que quer? Imagine se fizéssemos todos o que queremos.

Enquanto espero pelo elevador, o técnico aparece de novo à espreita no corredor e diz:

"Ao ver escoar-se a vida humanamente
em suas águas certas, eu hesito, 
e detenho-me às vezes na torrente 
das coisas geniais em que medito."

Sabe quem disse isto? Aperto os olhos com os músculos da cara. O elevador ainda não chegou. Diz Mário de Sá-Carneiro e volta à sua sala, tecla a tecla. 

Pst, chegue aqui. Pssst. Ouço uma voz. Duma sala, além. Venha cá. Sigo o chamamento. Eu ouvi tudo. Entro, sento-me e devolvo um sorriso à dona da invocação. Não ligue ao meu colega, ele não está bem, está um bocado deprimido. Não é fácil. Falar todos os dias com tanta gente desesperada por um trabalho, já imaginou? Eu tinha a porta aberta e não consegui deixar de ouvir a sua história e fez-me lembrar uma rapariga assim da sua idade que passou aqui há uns tempos, vinda da Noruega exactamente na situação que descreveu. Por isso lhe digo: Impossível não é, mas vai ser muito difícil! 

A senhora não sabe, mas eu chego a Portugal com a força imparável de uma onda atlântica. Desfaço-me de qualquer dificuldade como se de um castelo de areia se tratasse. Sinto nas costas o mesmo sopro oceânico que há 500 anos atrás levou os nossos antepassados caçadores, camponeses e pescadores a enfrentar tudo e mais alguma coisa para poderem deixar a pobreza extrema do país arriscando-se em caravelas e cascas de noz para ir povoar terras longínquas onde já estavam outros caçadores, camponeses e pescadores, estes que até viviam sem problemas de maior ou de fé, sem pobreza nem caravelas. E desde aí partimos sucessivamente em vapores, em clandestinidade, em aviões enfrentando todos os perigos menos o escorbuto que esse ficou resolvido no final do século XVIII. E por isso lhe digo, o momento maior do nosso país não é a descoberta deste ou daquele lugar mas sim o contínuo caudal de migração portuguesa que dura há cinco séculos! É uma corda que se vai fortalecendo com todas as viagens e descobertas interiores de cada um de nós que ousou partir. De Lisboa para Londres, do Funchal para Lisboa, de Bragança para Paris, da Lousã para o Porto, da Terceira para Boston. De todo o mundo para todo mundo. Vidas entrelaçadas umas nas outras. A história de vida deste influenciando a daquele. A história de cada um de nós, incluíndo aqueles que a vida inteira não saem do mesmo sítio e aqueles que viajam nos seus quartos, debruçados nas suas janelas com vista para outras janelas com vista para o mar. Estamos todos em viagem. Aqueles que como eu, emigram para longe apenas beneficiam da escala geográfica para melhor ilustrar as suas aventuras e traçar a linha da sua trajectória. É por isso que eu sou a história do nosso país, não são as estátuas, nem as igrejas com talha dourada a mais, nem as universidades centenárias a menos. Sou eu. Eu sou a ponta da corda a que outros irão agarrar-se antes de se tornarem também eles história. 

A senhora não respondeu, talvez porque eu não disse isto realmente. Mas acredito que tenha tido efeito, pois de dentro dela 12 vozes soaram como se saídas da cabeça quebrada de Ésquilo e em coro disseram:

O André tem razão, é possível receber o subsídio de desemprego em Portugal tendo trabalhado noutro país da União Europeia e vice-versa. Vai ter de iniciar um processo moroso com a Segurança Social que começa com um pedido aos serviços sociais ingleses por um documento chamado U2, só essa parte pode demorar meses e o processo todo mais de um ano.

A senhora não sabe mas por minha iniciativa comecei esse tal processo ainda em Inglaterra e já tenho esse documento. Mas isso é fantástico, não imagina os meses que poupou, não imagina mesmo, mas não se deslumbre, vai passar por imensas dificuldades. Quais? Não lhe sei dizer quais ao certo pois não sei bem como a Segurança Social funciona, mas não desista. Tem de estar preparado. Tem de estar consciente dos obstáculos que vai encontrar, vai julgar que está tudo perdido mas lute sempre, sempre, mesmo quando achar que esgotou todas as possibilidades. Boa sorte e aqui tem o meu cartão se precisar de alguma coisa. Obrigado. Adeus. Ah, espere! Num último suspiro, do coro ouvi: Terá de provar que durante o seu tempo fora de Portugal manteve o país no seu centro de interesses. Perdão? É essa a expressão que eles usam. Chegará uma altura em que terá de provar que Portugal esteve sempre no seu pensamento.

Tens Portugal no pensamento?


Voltou? Sim, estive 8 anos em Inglaterra. E voltou? Agora? Está toda a gente a ir embora e você volta.


É o dia 20 de Agosto de 2013.

Entre, André. Em que posso ajudá-lo? Venho inscrever-me. Estou desempregado e quero fazer parte da estatística deste país. Assim quando alguém falar de percentagens de desemprego saberei que também falam de mim. Como aquele jogador de futebol quando marca um golo e diz que está ali, eu quero também dizer que estou aqui. Quero atenção, que validem a minha existência, como um piromaníaco ou um assassino em série. Quero sentir que pertenço, que tenho lugar na sociedade, mesmo que seja através de um número estatístico partilhado. Mesmo que seja um número. 

Plim. Senha 207, Suba ao 3º andar. 

Entre. Cartão de Cidadão. Aqui tem. Posso sentar-me? Os seus dados no cartão não correspondem ao seu registo aqui no IEFP. É que eu estive muito tempo fora. Voltei faz hoje uma semana na verdade. Voltou? Sim, estive 8 anos em Inglaterra. E voltou? Agora? Sim. Mas teve algum problema? Não, a minha vontade foi voltar. Voltar para onde?  Para o quê? Está toda a gente a ir embora e você volta. Não ouviu o que o Primeiro-Ministro disse? Eu não ajo conforme o que esse, sou interrompido pela minha experiência profissional inserida no computador deste técnico do centro de emprego. Nesta sala abafada tudo está na iminência de derreter, tecla a tecla. Assine aqui. Ok, está inscrito, pode ir. E agora? Agora se surgirem trabalhos na sua área vamos avisá-lo. Mas o senhor nem me perguntou o que quero fazer. Isso não interessa se está à procura de trabalho. Tenho então só mais uma pergunta antes de ir embora. Aliás, é bastante importante. Diga. Eu trabalhei em Inglaterra, mas voltei a Portugal sem receber o subsidio de desemprego lá ou qualquer outro benefício, contudo segundo a Lei do trabalhador-migrante dentro da União Europeia posso fazer esse pedido cá. Sim pode, o primeiro passo era inscrever-se aqui como acabou de fazer, o segundo será ir à Segurança Social e apresentar o seu caso, mas digo-lhe já: isso é impossível. Impossível? Mas acabou de dizer como devo proceder. Pois, mas não devia ter voltado, acha que pode fazer o que quer? Imagine se fizéssemos todos o que queremos.

Enquanto espero pelo elevador, o técnico aparece de novo à espreita no corredor e diz:

"Ao ver escoar-se a vida humanamente
em suas águas certas, eu hesito, 
e detenho-me às vezes na torrente 
das coisas geniais em que medito."

Sabe quem disse isto? Aperto os olhos com os músculos da cara. O elevador ainda não chegou. Diz Mário de Sá-Carneiro e volta à sua sala, tecla a tecla. 

Pst, chegue aqui. Pssst. Ouço uma voz. Duma sala, além. Venha cá. Sigo o chamamento. Eu ouvi tudo. Entro, sento-me e devolvo um sorriso à dona da invocação. Não ligue ao meu colega, ele não está bem, está um bocado deprimido. Não é fácil. Falar todos os dias com tanta gente desesperada por um trabalho, já imaginou? Eu tinha a porta aberta e não consegui deixar de ouvir a sua história e fez-me lembrar uma rapariga assim da sua idade que passou aqui há uns tempos, vinda da Noruega exactamente na situação que descreveu. Por isso lhe digo: Impossível não é, mas vai ser muito difícil! 

A senhora não sabe, mas eu chego a Portugal com a força imparável de uma onda atlântica. Desfaço-me de qualquer dificuldade como se de um castelo de areia se tratasse. Sinto nas costas o mesmo sopro oceânico que há 500 anos atrás levou os nossos antepassados caçadores, camponeses e pescadores a enfrentar tudo e mais alguma coisa para poderem deixar a pobreza extrema do país arriscando-se em caravelas e cascas de noz para ir povoar terras longínquas onde já estavam outros caçadores, camponeses e pescadores, estes que até viviam sem problemas de maior ou de fé, sem pobreza nem caravelas. E desde aí partimos sucessivamente em vapores, em clandestinidade, em aviões enfrentando todos os perigos menos o escorbuto que esse ficou resolvido no final do século XVIII. E por isso lhe digo, o momento maior do nosso país não é a descoberta deste ou daquele lugar mas sim o contínuo caudal de migração portuguesa que dura há cinco séculos! É uma corda que se vai fortalecendo com todas as viagens e descobertas interiores de cada um de nós que ousou partir. De Lisboa para Londres, do Funchal para Lisboa, de Bragança para Paris, da Lousã para o Porto, da Terceira para Boston. De todo o mundo para todo mundo. Vidas entrelaçadas umas nas outras. A história de vida deste influenciando a daquele. A história de cada um de nós, incluíndo aqueles que a vida inteira não saem do mesmo sítio e aqueles que viajam nos seus quartos, debruçados nas suas janelas com vista para outras janelas com vista para o mar. Estamos todos em viagem. Aqueles que como eu, emigram para longe apenas beneficiam da escala geográfica para melhor ilustrar as suas aventuras e traçar a linha da sua trajectória. É por isso que eu sou a história do nosso país, não são as estátuas, nem as igrejas com talha dourada a mais, nem as universidades centenárias a menos. Sou eu. Eu sou a ponta da corda a que outros irão agarrar-se antes de se tornarem também eles história. 

A senhora não respondeu, talvez porque eu não disse isto realmente. Mas acredito que tenha tido efeito, pois de dentro dela 12 vozes soaram como se saídas da cabeça quebrada de Ésquilo e em coro disseram:

O André tem razão, é possível receber o subsídio de desemprego em Portugal tendo trabalhado noutro país da União Europeia e vice-versa. Vai ter de iniciar um processo moroso com a Segurança Social que começa com um pedido aos serviços sociais ingleses por um documento chamado U2, só essa parte pode demorar meses e o processo todo mais de um ano.

A senhora não sabe mas por minha iniciativa comecei esse tal processo ainda em Inglaterra e já tenho esse documento. Mas isso é fantástico, não imagina os meses que poupou, não imagina mesmo, mas não se deslumbre, vai passar por imensas dificuldades. Quais? Não lhe sei dizer quais ao certo pois não sei bem como a Segurança Social funciona, mas não desista. Tem de estar preparado. Tem de estar consciente dos obstáculos que vai encontrar, vai julgar que está tudo perdido mas lute sempre, sempre, mesmo quando achar que esgotou todas as possibilidades. Boa sorte e aqui tem o meu cartão se precisar de alguma coisa. Obrigado. Adeus. Ah, espere! Num último suspiro, do coro ouvi: Terá de provar que durante o seu tempo fora de Portugal manteve o país no seu centro de interesses. Perdão? É essa a expressão que eles usam. Chegará uma altura em que terá de provar que Portugal esteve sempre no seu pensamento.