Quando se olha para ele, assim estreitinho, franzino, sorridente, não imaginamos o que acontece quando sobe a um palco. Faustin Linyekula, 41 anos, é um homem com histórias para contar, histórias que são suas, do seu país, o Congo. Histórias que lhe saem em simultâneo da cabeça e do coração, e que falam de política, de liberdade, de igualdade. Histórias que fazem com que, o tal homem franzino, desapareça em cima de um palco, apenas para dar lugar a um gigante.
Depois de Anne Teresa de Keersmaeker e Tim Etchells, Faustin Linyekula é o protagonista da terceira edição da bienal Artista na Cidade. O coreógrafo e bailarino congolês, criador dos Studios Kabako, fará de Lisboa a sua cidade até ao final de 2016, trabalhando com parceiros como o CCB, a Culturgest e os teatros Maria Matos, D. Maria II e São Luiz.
O arranque desta bienal acontece já no próximo dia 14 de janeiro no Teatro Camões, com “Portrait Séries: I Solo”, uma coreografia que Linyekula criou propositadamente para o bailarino da Companhia Nacional de Bailado, Miguel Ramalho, e onde celebra encontros e partilhas. Da Kisangani de Faustin; ao Barreiro de Miguel. Pelo meio, Lisboa, a cidade a que o congolês chama de “casa”.
A primeira vez que veio a Lisboa foi também a primeira vez na vida que gozou férias…
Foi em setembro de 2002. Foi a primeira vez na vida que tive umas férias, que era um conceito estranho para mim. Onde eu cresci ter férias não fazia parte das nossas vidas. Mas quando conheci a minha companheira, tirar férias era algo que fazia parte da vida dela. E foi ela que sugeriu que, nas nossas primeiras férias, viéssemos a Lisboa. O simples facto de tirar férias já era especial para mim, mas quando estávamos a aterrar aqui vi um avião, um pouco afastado da zona central do aeroporto. E esse avião tinha pintada a bandeira do Zaire e dizia Republique du Zaire. De repente vieram todas as minhas memórias de infância. Como criança, no Zaire, só tínhamos um canal de televisão e todo o dia as notícias falavam do presidente. Todo o nosso espaço mental era ocupado por ele, o pai da nação. E muitas vezes mostravam imagens daquele avião, que era uma espécie de Air Force 1. Cinco anos depois do colapso do regime de Mobutu, vir a Lisboa pela primeira vez, nas primeiras férias da minha vida, e ver ali aquele avião abandonado…
Foi um momento de consciência de que estamos todos mais próximos uns dos outros do que tendemos a achar?
Exatamente. O Congo é uma invenção europeia. Nunca nenhum africano se sentou e disse que iríamos ter estes estados e estas fronteiras. Foi tudo decidido em 1884/1885, em Berlim, quando os europeus decidiram partilhar África. Mas o primeiro europeu a chegar ao meu país foi um português, o Diogo Cão, em 1482. Isto aprendi ainda criança, porque quando vivemos numa antiga colónia africana, assim que começamos a ir à escola, a Europa faz parte do que nos ensinam.
Mas faz parte com um discurso negativo, ou o discurso da relação de África com uma Europa colonizadora é, hoje em dia, um discurso pacificado?
É algo que faz parte. Como algo que se ensina a uma criança quando se está a ensinar a história de um país. Quando começamos a estudar, a história do colonialismo está muito presente. Não de uma forma antagonista, mas antes de uma forma ‘é isto que somos, é isto que fez este país’. Quando falamos da Bélgica, que foi o poder colonizador do meu país, referimo-nos a eles como os nossos tios. É uma família. E como em todas as famílias há discussões que por vezes podem ser muito violentas. Mas não podemos ignorar que estamos ligados. Por vezes, para quem vem de África, chegar à Europa, e ver que cada vez mais África está a desaparecer da memória coletiva dos europeus, que outrora foram colonizadores, faz-nos pensar se esta história comum é realmente partilhada por ambos.
Essa memória está a desaparecer ou a ideia de África é incómoda para os europeus, que tendem, por isso, a apagar África da memória?
Acho que é uma amnésia intencional. Stuart Hall, um intelectual inglês, de origem jamaicana, deu uma entrevista na qual dizia que, a primeira vez que foi a Inglaterra, em 1951, lhe perguntaram: ‘por que está aqui?’. E ele respondeu que estava ali para completar a história colonial que os europeus começaram no século XV. E disse: ‘Vocês lixaram-me a vida, por isso agora vim olhar-vos nos olhos’. Por vezes decidimos esquecer, é mais conveniente olhar para as antigas colónias como algo que está ali e não como algo que faz parte. Mas a verdade é que estamos neste barco juntos.
Temos de parar de achar que os países africanos estão lá longe?
Sim. É um sistema e os sistemas estão sempre interligados. Se, como está a acontecer agora, todas as florestas do Congo desaparecerem, devido ao abate ilegal, a Europa também vai sofrer, diretamente através do clima, mas também porque haverá refugiados devido ao clima. Temos de começar a sentirmo-nos responsáveis por toda a humanidade e aqueles que têm mais poder devem ter um maior sentido de responsabilidade.
Essa ideia de união e diálogo está muito presente no seu trabalho?
A razão por que trabalho é fundamentalmente para não estar só. Trabalho para buscar aliados, pessoas com quem possa sonhar em conjunto. Começa com os artistas com quem colaboro, mas também quero criar um espaço com aqueles que se dão ao trabalho de ir aos teatros ver o meu trabalho. Isso vai ainda mais além do que o diálogo, é procurarmos criar pontes. Mas tudo isto começa comigo. Na maior parte do tempo somos pressionados pelas contingências do dia-a-dia e perdemos contacto com aquilo que somos. O meu trabalho serve para me reaproximar daquilo que sou.
É por essa necessidade de auto encontro que as suas obras denotam sempre um processo criativo intelectualizado, no sentido em que têm sempre uma mensagem, sem no entanto ignorarem um lado mais visceral?
O Jean Genet dizia algo do género: ‘mesmo a mais política das artes só faz sentido se for profundamente íntima’.
A sua abordagem politizada à arte, quer coreográfica quer teatral, tem-lhe trazido problemas no Congo?
Apesar de o país se chamar República Democrática do Congo, não é nem uma democracia nem uma república. Não podemos dizer o que queremos. Mas há uma coisa que estudar história me ensinou: a censura está sempre atrás da poesia, mas raramente a apanha. Temos de ser mais espertos do que a censura. Mas é um risco que tenho de correr.
E nunca se sente vencido pelo medo?
É humano. Mas tenho de me assegurar que não me torno um mártir do nada. Não ajuda ninguém se eu for preso ou morto pelas minhas ideias. E sim, no Congo é possível ser morto por ter ideias. E como ainda não decidi sair do país, tenho de saber contornar estes problemas. É como pegar no carro e conduzir. Podemos ter um acidente, mas tentamos sempre ser cautelosos.
Quando decidiu ter uma carreira nas artes, imaginava que poderia vir a ser tão difícil?
Não. Comecei nas artes ainda adolescente, a escrever. E comecei com uma ideia muito clara do que outros negros tinham escrito antes de mim. Poetas e pensadores que estavam muito presentes na minha vida de adolescente. Quis sempre honrar a minha herança. Nesse sentido sabia que tinha uma tarefa dura. Mas não tinha consciência das implicações políticas de trabalhar em artes num país como o Congo. Ao fim de uns anos de escrita e de trabalho artístico, percebi que isto não tinha a ver com poesia e arte, tinha a ver com pôr a vida em risco.