Há quem tenha quase desistido de viver e há quem tenha encontrado o amor. São idosos e estão nos lares da Santa Casa da Misericórdia de Alhos Vedros. Histórias de quem está a viver na última morada.
A rotina é sempre igual. Todos os dias no Lar São José Operário, na Baixa da Banheira, a partir das seis da manhã, é tempo de começar a dar banho aos idosos mais dependentes. “Pode parecer cruel começarmos tão cedo, mas de outra forma não seria possível tratarmos de todos a tempo do pequeno-almoço”, explica Sónia Sena, a directora do estabelecimento.
José Teles, de 85 anos, vai aproveitando os últimos momentos de preguiça debaixo dos cobertores. Dali a pouco chegará uma auxiliar para lavá-lo e vesti-lo. “Não é que não consiga tomar banho sozinho, mas prefiro assim”, conta entre sorrisos. “Há quem tenha vergonha, mas eu não me importo nada de me despir em frente a elas; a minha mãe também me dava banho em criança”. José partilha o quarto com a mulher, que chegou ao lar anos antes. Um dia achou que estava na hora que também tratassem dele. “Cheguei há dois meses e estou a adorar. Às vezes a minha mulher não me deixa dormir por causa da doença dela, mas sabe, estamos casados há 66 anos e nunca houve uma noite que nos deitássemos zangados”.
Nos corredores a azáfama começa a sentir-se. Enquanto umas auxiliares vão tratando da higiene dos idosos, outras vão tratando da primeira refeição do dia. Ouvem-se diálogos sem sentido, gritos, frases descoordenadas. Os mais lúcidos escutam e impacientam-se. “Passa o dia nisto, a tentar dar de comer à boneca”, conta Carolina Maia, 77 anos. Ao lado uma senhora vai vestindo uma boneca com um vestido vermelho. Dentro dele coloca uma bolacha Maria. Repete o gesto ininterruptamente, enquanto não se senta à mesa. Nessa altura partilhará a sua comida com a pequena amiga, por muito que a boneca não colabore.
“Carolina, o que queres comer hoje? Já tomaste os comprimidos?”, pergunta uma auxiliar. No Lar é habitual tratarem os idosos por tu. “Não é por falta de respeito, mas ao passarmos tanto tempo com eles, já são como nossa família”, conta um funcionário. Carolina já se habituou. Há nove anos decidiu mudar a sua vida e vir de livre vontade para o Lar. Mas só de segunda a sexta. “Depois de um cancro nos intestinos, fiquei muito fragilizada pela quimioterapia. E como sou diabética, achei por bem ter assistência médica perto de mim. A verdade é que também gosto muito da minha casinha e não abdico dela”. O marido não alinhou na decisão. “Ele gosta muito da liberdade dele, de ir ao café e fazer o que bem lhe apetece. Como foi militar, sabe fazer tudo em casa, graças a Deus”. Aos sábados vem buscá-la de automóvel, outras prefere fazer o caminho de meia hora a pé, enquanto vai observando as montras das lojas. “Tenho liberdade para sair daqui quando quero. E por vezes preciso de limpar a cabeça deste ambiente”, refere.
Até à hora de almoço, enquanto as auxiliares se encarregam da limpeza dos quartos e partes comuns, há doentes que necessitam de cuidados médicos mais exigentes. Há sempre fraldas para trocar, utensílio imprescindível a muitos dos 60 utentes da instituição. Alguns dos idosos são encaminhados para a sala de fisioterapia, onde não é permitido desistir dos movimentos básicos como andar. “Toca a mexer!”, ordena a fisioterapeuta. Movimentos de ginástica que tentam estimular a apatia em que muitos se encontravam antes de entrar para o Lar.
Numa sala contígua dezenas de idosos aguardam a hora de almoço sentados em frente à televisão. Os olhares são tristes, distantes, vazios. Como o de Fernanda Dinis, de 62 anos. “O que mais queria era voltar para Gondomar, para a minha terra”, avisa-nos. Há sete anos no Lar, sente-se totalmente abandonada pelos quatro filhos, que não vê desde essa altura. As lágrimas são inevitáveis, descontroladas. “Estou farta de sofrer. Tive uma vida miserável”. O sotaque não engana, é uma verdadeira mulher do norte. “Enterrei dois maridos, veja lá o meu azar. Em três semanas perdi o segundo e uma filha. Depois os outros culparam-me pela morte da irmã, veja lá você. Como se eu pudesse ser culpada pelo tumor que ela tinha na cabeça”, explica entre soluços. Fernanda fala com angústia do passado. A voz foge-lhe. “A melhor coisa que me aconteceu foi a morte do meu primeiro marido, pai dos meus filhos. Quando bebia, acertava-me sempre o passo. Levei muita bordoada. Quando ele morreu, consegui refazer a minha vida em Setúbal, terra do meu segundo marido, mas veja bem o meu azar: fiquei viúva de novo”. Tudo o que Fernanda mais queria era poder voltar para o Porto do seu coração, mas isso só seria possível se um dos seus quatro filhos se responsabilizasse por ela. Há 7 anos que nenhum a visita. “Nem um telefonema, estou para aqui abandonada, velha e cansada. Já estou apanhada do clima”.
Alhos Vedros: “Aqui é para morrer”
Todas as terças feiras o Lar de Alhos Vedros proporciona uma manhã diferente para alguns dos seus utentes, os que se encontram em melhor condição física: natação na piscina municipal. Manuel Silva, de 74 anos não perde uma aula. Emigrado na Alemanha durante 40 anos, manteve sempre o gosto pela natação. “Aquilo lá que era, grandes instalações, boas piscinas, não é como aqui, que a água é morna. Tenho muitas saudades de Frankfurt, onde vivia. Após onze anos de ausência, no ano passado voltou, para matar saudades dos filhos e netos. “A viagem foi um espectáculo, com 270 pessoas a entrarem para o avião. Antes eram só mulheres, mas agora até há homens a servir um gajo durante o vôo”. À hora de almoço todos têm o seu lugar marcado nas mesas. Os primeiros a comer são os mais dependentes, confinados a uma cama. Há quem tenha de ser alimentado através de sondas, sem noção de quem são, onde estão.
Lucindo Rito tem 78 anos e as ideias bem definidas. “Uma pessoa está aqui é para morrer, não tenha dúvidas. Aqui não há consideração, nem respeito pelas pessoas. Há correntes de ar, o chão às vezes está por aí molhado, que é meio caminho andado para cairmos, enfim. Ninguém nos liga, só a televisão”. No ecrã, Manuel Luís Goucha e Cristina Ferreira vão tentando entreter, sem saberem, os idosos de Alhos Vedros. Como Palmira Vicente, que depois da morte do marido e de um filho, não quis sobrecarregar a filha. “Ela queria que eu fosse para lá, mas eu não tinha o direito de lhe dar mais trabalho, principalmente depois do que lhe aconteceu”, refere com convicção. A tragédia voltou a bater à porta de Palmira. Sem razão aparente, um dos netos suicidou-se. Aí tomou a decisão: estava na altura de trocar a solidão da sua casa pela companhia de pessoas da sua idade. Estava na altura de permitir que cuidassem de si. “Em casa tomava banho sozinha, mas muitas vezes ficava depois horas enrolada na toalha, sem forças para me vestir. Aqui todos têm muita atenção e cuidados comigo. Estou bem comigo mesma. O luto não me pesa, mas a dor fica para sempre”, diz por entre lágrimas.
Abrigo do Tejo: “A vida é bela”
No Lar Abrigo do Tejo, na Moita, o jantar é servido às seis da tarde. Melitina Canelas vai distribuindo a refeição a todos, com a medicação obrigatória. Trabalha no Lar há oito anos depois de ter cuidado até à morte da avó, da mãe e do irmão. “Depois disso decidi tratar o curso de geriatria e fazer disto profissão. Para tratar de idosos é preciso sermos muito humanos, acima de tudo. Depois ter muita paciência, claro. É um trabalho muito cansativo, tanto ao nível físico, como psicológico. Mas adoro o que faço”. Antes de trabalhar no Abrigo do Tejo, Tina já tinha a componente prática aliada à teórica. O seu profissionalismo é reconhecido carinhosamente pelos utentes. “Temos de compensar os afectos que muitos não têm. Há familiares que nunca aparecem”. Antes de apanhar o “autocarro das nove”, Tina desdobra-se em viagens desde o salão de refeições até aos quartos. Há que começar a deitar os mais dependentes. Tina despe-os, troca-lhes a fralda, veste-lhe os pijamas, retira-lhes as placas dentárias. Antes de apagar a luz, há ainda tempo para um beijinho de boa noite. “Dorme bem, Manel”.
Virgínia Carrasquinha já está pronta para se enfiar na cama. Quem a vê não lhe dá os 82 anos que o bilhete de identidade lhe confere. É totalmente independente e não precisa que a mandem dormir. “Isto é muito mau de gramar. Mal de quem venha parar a um sítio destes”, conta com a tristeza estampada no rosto. “Prefiro estar aqui sozinha no meu quarto, do que lá dentro na sala. Lá está quase tudo maluco”. Virgínia passou pelo drama de perder um peito devido a um tumor. Depois do cancro, a morte do marido. Aí o filho não a quis sozinha. A palavra “lar” sempre a assustou, mas há dois meses passou a fazer parte do seu quotidiano. “Passo noites a chorar, com saudades do meu filho e netinhos. E sabe, a nossa casa é a nossa casa”.
No quarto ao lado, a confirmação que o amor não escolhe idades. Nem fronteiras. Adelaide Ferreira e José Valente conheceram-se no Lar e quis o destino que aqui vivessem o grande amor das suas vidas. “Pedimos namoro um ao outro, foi espontâneo”, conta Adelaide, 86 anos. “Nós é que temos de fazer a felicidade, com a ajuda de Deus. Não desconsidero ninguém, mas não há pessoa aqui mais feliz que eu”. José Valente deixa-a falar, com a cumplicidade de quem ama, de quem não precisa de acrescentar nada para dizer o mesmo. “Às vezes custa-me que as pessoas não saibam que a vida é tão bela”, graceja Adelaide. “Sou feliz em todo o lado, não me falta nada”.
Amanhã a rotina repete-se. Os dias passam iguais. O relógio não pára. Lucindo andará de um lado para o outro nos frios e desconfortáveis corredores. Ele e todos só têm uma certeza: “uma pessoa está aqui é para morrer”. Todos tiveram vidas diferentes. Todos sorriram, sofreram e amaram. Mas todos, sem excepção, sabem que um dia tudo acaba. Tal como nos filmes, surgirão no ecrã as palavras “The End”.