Alice no país das portas de embarque


De Férias. Para casa.


Tudo corre bem. Estar longe não é assim tão mau. Consegui um trabalho sério na minha área profissional, se calhar fico mais um tempo. Ganho o suficiente para que os tons cinza de Londres comecem a ter o seu encanto. E provo assim que o dinheiro compra mesmo quase tudo, até a pigmentação da felicidade.

Também compra vôos. Para todo o lado. Estou na porta de embarque para casa. Londres é uma interrupção na ordem natural das coisas. Lisboa é a minha cidade. Chegando as férias, variam as possibilidades, varia a hora mas não o destino. Posso ir de férias para casa? Queres arroz de polvo quando chegares? De férias. Para casa. Aquilo a que chamo férias na verdade é um pequeno teatro de algumas semanas em que faço reconstituições dos melhores momentos da vida pré-emigração. É um paraíso de praia, jantares, esplanadas e atenção constante.

Duas semanas de férias. Uma sabe a pouco, três fica demasiado difícil partir. Duas semanas é o ideal. Duas semanas em que sou o centro das atenções de todos. Hoje não dá André. Quase todos. Não entendo, estamos na mesma Lisboa, são os mesmos amigos, mas agora têm compromissos, trabalhos, filhos e menos cabelo. Não faz sentido. Esta era a cidade onde nada acontecia. 

Trim. Trim. Vamos ao cinema? Ah! eu sabia que não me ias deixar mal.

Estás igual. Que sensação boa, o mesmo cinema, as mesmas cadeiras, a mesma luz fosca enquanto não começa o filme. Aviso o meu amigo, que estão uns conhecidos dele a chamá-lo do fundo da sala, mas ele não faz caso. Um grupo estranhamente grande começa a chamá-lo pelo nome. Que coincidência, tantos amigos dele e eu não reconheço nem um. Há algum problema? Porque não falas com aquele pessoal? Eu não os conheço André, eles devem ver o programa. Qual programa? O que eu faço todos os dias na televisão. Mas alguém vê isso? Sim, ao que parece o país inteiro. E o meu amigo transforma-se num caso sério de sucesso e afastamento. E tudo isto do nada. Porque enquanto estou fora, o país pára até ao meu regresso. 

Que sorte que tiveste. Bem eu não diria sorte, enviei mais de 200 currículos até aparecer algo assim. Sim mas sempre foste sortudo. A perseverança, o espirito de aventura, o enfrentar de perigos, monstros, dificuldades e ventos árcticos também é sorte? Não entendes as dificuldades de estar fora? Achas que aqui é melhor, já te esqueceste porque partiste? E já agora como é que conseguiste esse trabalho feito por medida? Como toda a gente; procurei, candidatei-me, enviei o CV, fui a um par de entrevistas e fui contratado. Mas um trabalho desses. Não conhecias lá ninguém? Ninguém mexeu cordelinhos? É assim tão difícil de acreditar que me contratem simplesmente, sem cunhas na porta? Aqui é. 

Não percebo este país, esta cidade, os meus amigos, esta gente, tornou-se tudo tão difícil como entrar pela primeira vez numa casa que desconhecemos. Quando passo numa rua e reparo que no lugar de uma antiga loja uma nova abriu sinto uma imediata aversão à mudança de cenário no meu Truman Show privado. Então de onde é pergunta-me o taxista. De onde sou? Está a brincar comigo? Sou daqui, alfacinha de gema. É que o seu sotaque. Parece ser lá do norte. Do norte? Da Europa. It's one euro for the coffee. Um euro? Aumentou! Ah é português? Não parece nada. Respira André, respira e olha para o Castelo de São Jorge, tão bonito, tão mouro, tão estrangeiro.

Estou na porta de embarque. Lisboa é uma interrupção na ordem natural das coisas. Londres é a minha cidade. E é assim com a delicadeza de uma pavimentadora a pressionar asfalto, que passo para o outro lado. Sinto vontade de ir para casa. A minha casa na Norroy Road, na Carslake Road, na Fordwych Road, na Wootton Street, na Middleton Road. Sou estrangeiro onde quer que esteja. Distante à força. Uma força cada vez menos forçada. Sou nativo da república das portas de embarque, como uma Alice em permanente trânsito de um lado para o outro do espelho. 

Alice no país das portas de embarque


De Férias. Para casa.


Tudo corre bem. Estar longe não é assim tão mau. Consegui um trabalho sério na minha área profissional, se calhar fico mais um tempo. Ganho o suficiente para que os tons cinza de Londres comecem a ter o seu encanto. E provo assim que o dinheiro compra mesmo quase tudo, até a pigmentação da felicidade.

Também compra vôos. Para todo o lado. Estou na porta de embarque para casa. Londres é uma interrupção na ordem natural das coisas. Lisboa é a minha cidade. Chegando as férias, variam as possibilidades, varia a hora mas não o destino. Posso ir de férias para casa? Queres arroz de polvo quando chegares? De férias. Para casa. Aquilo a que chamo férias na verdade é um pequeno teatro de algumas semanas em que faço reconstituições dos melhores momentos da vida pré-emigração. É um paraíso de praia, jantares, esplanadas e atenção constante.

Duas semanas de férias. Uma sabe a pouco, três fica demasiado difícil partir. Duas semanas é o ideal. Duas semanas em que sou o centro das atenções de todos. Hoje não dá André. Quase todos. Não entendo, estamos na mesma Lisboa, são os mesmos amigos, mas agora têm compromissos, trabalhos, filhos e menos cabelo. Não faz sentido. Esta era a cidade onde nada acontecia. 

Trim. Trim. Vamos ao cinema? Ah! eu sabia que não me ias deixar mal.

Estás igual. Que sensação boa, o mesmo cinema, as mesmas cadeiras, a mesma luz fosca enquanto não começa o filme. Aviso o meu amigo, que estão uns conhecidos dele a chamá-lo do fundo da sala, mas ele não faz caso. Um grupo estranhamente grande começa a chamá-lo pelo nome. Que coincidência, tantos amigos dele e eu não reconheço nem um. Há algum problema? Porque não falas com aquele pessoal? Eu não os conheço André, eles devem ver o programa. Qual programa? O que eu faço todos os dias na televisão. Mas alguém vê isso? Sim, ao que parece o país inteiro. E o meu amigo transforma-se num caso sério de sucesso e afastamento. E tudo isto do nada. Porque enquanto estou fora, o país pára até ao meu regresso. 

Que sorte que tiveste. Bem eu não diria sorte, enviei mais de 200 currículos até aparecer algo assim. Sim mas sempre foste sortudo. A perseverança, o espirito de aventura, o enfrentar de perigos, monstros, dificuldades e ventos árcticos também é sorte? Não entendes as dificuldades de estar fora? Achas que aqui é melhor, já te esqueceste porque partiste? E já agora como é que conseguiste esse trabalho feito por medida? Como toda a gente; procurei, candidatei-me, enviei o CV, fui a um par de entrevistas e fui contratado. Mas um trabalho desses. Não conhecias lá ninguém? Ninguém mexeu cordelinhos? É assim tão difícil de acreditar que me contratem simplesmente, sem cunhas na porta? Aqui é. 

Não percebo este país, esta cidade, os meus amigos, esta gente, tornou-se tudo tão difícil como entrar pela primeira vez numa casa que desconhecemos. Quando passo numa rua e reparo que no lugar de uma antiga loja uma nova abriu sinto uma imediata aversão à mudança de cenário no meu Truman Show privado. Então de onde é pergunta-me o taxista. De onde sou? Está a brincar comigo? Sou daqui, alfacinha de gema. É que o seu sotaque. Parece ser lá do norte. Do norte? Da Europa. It's one euro for the coffee. Um euro? Aumentou! Ah é português? Não parece nada. Respira André, respira e olha para o Castelo de São Jorge, tão bonito, tão mouro, tão estrangeiro.

Estou na porta de embarque. Lisboa é uma interrupção na ordem natural das coisas. Londres é a minha cidade. E é assim com a delicadeza de uma pavimentadora a pressionar asfalto, que passo para o outro lado. Sinto vontade de ir para casa. A minha casa na Norroy Road, na Carslake Road, na Fordwych Road, na Wootton Street, na Middleton Road. Sou estrangeiro onde quer que esteja. Distante à força. Uma força cada vez menos forçada. Sou nativo da república das portas de embarque, como uma Alice em permanente trânsito de um lado para o outro do espelho.