Francisco Seixas da Costa “Cavaco Silva foi uma desilusão, mesmo para quem votou nele”

Francisco Seixas da Costa “Cavaco Silva foi uma desilusão, mesmo para quem votou nele”


O embaixador critica os serviços secretos e lembra que a Assembleia da República não está a fazer o seu papel.


Tem histórias mirabolantes. Era embaixador em Nova Iorque no 11 de Setembro e, sem saber, dormiu no mesmo hotel que os terroristas. Terminou a sua carreira diplomática em Paris, a cidade europeia que parece ter-se tornado alvo preferencial dos radicais islâmicos, e onde foi pela primeira vez à boleia, aos 18 anos, desde a rotunda do Relógio, em Lisboa, mas que já sabia de cor. Francisco Seixas da Costa é mordaz e pragmático. Não perde uma oportunidade para alfinetar a direita, mas admite que o Partido Socialista falhou a vários níveis. Ainda assim, garante que a maior divergência com António Costa se fica pelo plano futebolístico e, apesar da surpresa que foi o novo ministro da Cultura – não é cargo onde visse João Soares –, acredita que “este governo vai querer provar que é possível ter socialistas no poder sem despesismo”. O embaixador que se confessa “gastrófilo” diz o que não pode faltar no cardápio deste governo e fala da azia provocada por Cavaco Silva.

As escolhas de António Costa para formar governo trouxeram surpresas? Marques Mendes tinha avançado o seu nome como ministeriável…
António Costa tem este governo na cabeça há muito tempo. Há, de facto, surpresas: Azeredo Lopes, na Defesa, uma figura do Direito Internacional e da geopolítica, que eu não sabia sequer ligada ao Partido Socialista, e João Soares, que foi um excelente presidente da Câmara Municipal de Lisboa, mas que não via no cargo de ministro da Cultura. Quanto à minha hipotética nomeação, é um equívoco antigo, porque ficou muito claro desde o início, quando colaborei com António José Seguro e com António Costa, que não estou disponível para quaisquer cargos de natureza oficial.
Porquê?
Porque a experiência política já é muito longínqua e a minha vida profissional mudou muito, estou no sector privado, no grupo Jerónimo Martins, escrevo em jornais, faço consultoria internacional em várias áreas. Não tenho nem disponibilidade, nem apetência para o exercício de quaisquer cargos políticos. Tenho isto assente há muitos anos. Além de que os diplomatas não têm peso político dentro dos governos e o MNE acaba por ser melhor servido quando tem personalidades políticas fortes a tutelá-lo. Isso é uma realidade insofismável. Noutros países, como o Brasil, não é assim e os ministros dos Negócios Estrangeiros são sempre diplomatas.
Este é o governo mais à direita que esta  esquerda podia arranjar. Estava à espera?
É um governo tipicamente PS: junta figuras partidárias e, na sua tradição, diversos independentes de qualidade reconhecida. Esquerda ou direita vê-se na maneira como os programas são executados, não na escolha das pessoas. Este governo pode ser um bom executor daquilo que é o programa do PS, que é manifestamente um programa de esquerda moderada, com alguns compromissos com uma outra esquerda, a chamada esquerda da esquerda, que o PS honrará sem pôr em causa o seu padrão.
Esperava que os resultados eleitorais fossem os de 4 de Outubro?
Há um ano olharíamos para estas eleições até na perspectiva de o PS ter maioria absoluta. A saída da troika e alguma cosmética em matéria de políticas, ajudada por alguma comunicação social bem oleada, acabou por criar à coligação um espaço de bem-estar que seduziu muita gente. É verdade que as pessoas passaram a viver melhor. É verdade que o PS não terá sabido interpretar, ao nível do discurso eleitoral, que esse mal-estar profundo já tinha desaparecido na sua versão mais radical e que o ambiente anti-austeritário já tinha tido melhores dias. Penso que o PS fará essa leitura interna, o discurso deveria ter sido mais para o futuro e menos sobre o passado e isso acabou por cansar as pessoas e não lhes dar o sopro de esperança que as levasse a votar e a dar-lhe a tal maioria absoluta. A coligação fez um bom percurso sob o ponto de vista da apresentação de resultados.
Só não contava que se fizesse política…
Há uma coisa que me parece evidente em relação a estas eleições: o país está partido ao meio. Há um conjunto de pessoas, que se traduziu numa maioria negativa, é verdade, que se queria ver livre deste governo. É este o cimento da coligação de esquerda, o cansaço relativamente a uma coligação PSD/CDS que ganhou as eleições mas destruiu, ao longo dos últimos quatro anos, todas as pontes de diálogo à esquerda. E fê-lo de uma forma quase deliberada e ideologicamente motivada. Não era plausível pedir ao PS para dar o benefício da dúvida, para prolongar uma política com a qual se confrontou abertamente. Estaríamos num impasse que poderia obrigar a convocar novas eleições.
E agora não estamos?
O PS não vai governar sob o droit de regard do PC e do Bloco, deixou muito claras as cedências que faz. Dir-me-á que nada o garante para o futuro porque as circunstâncias podem mudar. É verdade. Só podemos trabalhar com base no cenário imediato e, aí, é possível garantir a passagem do programa do PS e do  orçamento.
Quais são as dúvidas?
Não sabemos se no futuro, nomeadamente em relação a novas exigências de natureza europeia, PC e Bloco acompanham o PS. Esta é a minha dúvida de sempre e foi a razão pela qual manifestei reticências relativamente a esta coligação desde o início. Agora os jogos estão feitos, este é o governo de Portugal. Espero, aliás, que mude o logótipo, porque “governo de Portugal” não é uma expressão tradicional na administração pública portuguesa. Espero que também desapareçam as bandeirinhas da lapela. 
Acredita que o PS vai cumprir, tal como estão agora definidos, os compromissos europeus?
Há uma coisa que para mim é clara, parece-me completamento descabido o debate que teve lugar nas últimas semanas, e que o senhor Presidente da República ajudou a agravar, sobre a possibilidade de o PS não cumprir os seus compromissos no plano internacional, nomeadamente europeu. Se há partido que em Portugal tem um historial que não pede meças a ninguém em matéria de respeito pelos compromissos internacionais, com a assinatura de diversos tratados, até complexos, é o Partido Socialista. O PS é o partido da Europa em Portugal.
A crítica ao PS não é tanto enquanto está no poder, é como o deixa…
O programa apresentado pelo grupo de economistas teve como objectivo mostrar que o PS, num período diferente daquela que foi a fase pré-troika, é capaz de apresentar um plano moderado, exequível, respeitando aquilo que são os objectivos, nomeadamente em matéria de défice.
Mário Centeno ainda não apresentou um orçamento, ninguém fez as contas.
Não tenho visto por parte dos economistas uma crítica estruturada àquilo que são as propostas do PS, a única crítica tem a ver com as dúvidas que se podem colocar relativamente aos efeitos sobre o crescimento da economia. Mas há um compromisso de manter o défice abaixo dos 3%. O povo português já não vai em fantasias e julgo, aliás, que essa foi uma preocupação de António Costa, não vale a pena escondê-lo: o Partido Socialista, tendo em atenção aquilo que se passou até 2011, vinha marcado por uma imagem de despesismo que é difícil reverter. Este programa é a tentativa de o PS provar que é possível ter os socialistas no poder sem uma agenda despesista.
Quais devem ser as prioridades do governo na diplomacia internacional?
O PS deve associar-se aos debates sobre as grandes políticas europeias, nomeadamente quanto à necessidade de reverter as lógicas austeritárias que prevaleceram nos últimos anos. Veremos em que medida é possível encontrar um terreno de progressão dentro do Eurogrupo e também, mais cedo ou mais tarde, discutir a questão do alívio da dívida a nível europeu, nunca só a nível nacional. Aqui o PS devia associar-se àqueles que procuram outro caminho. Até agora, o que se verificou por parte da coligação PSD/CDS foi um mero seguidismo daquilo que eram as leituras mais ortodoxas das políticas europeias: não questionar rigorosamente nada quanto a esse paradigma que lhes foi imposto. O PS, com a autoridade que só pode ganhar ao cumprir aquilo a que se comprometeu, pode vir a ter algum espaço para se ligar a um debate europeu mais alargado – veremos como são os equilíbrios no âmbito do Eurogrupo em função de eleições, inclusivamente sobre as despesas emergenciais, por exemplo, para a segurança, que são um debate novo, levantado pelo presidente Hollande. Percebo que tenha havido uma espécie de obsessão austeritária para tentar mostrar respeitabilidade através de um seguidismo quase inferiorizante para o país, mas Portugal tem de começar a ter uma voz mais activa. 
E o que deve dizer essa voz?
Dou o exemplo de toda a agenda que o Reino Unido colocou sobre a mesa relativamente à chamada devolução de poderes. Não temos rigorosamente nada a ver com aquilo que é a lógica subjacente às posições britânicas e não tenho ouvido isto por parte dos dirigentes políticos portugueses. Devemos pronunciar-nos. Não temos nenhuma vantagem em nos associar a um mecanismo que procure derrogar ou diminuir a densidade das políticas europeias e que vá no caminho da transformação da União Europeia num mero mercado interno. Nós, independentemente dos problemas que tenhamos agora com as questões securitárias, não temos nenhuma vantagem em ligar-nos a políticas que ponham em causa a livre circulação de pessoas, nomeadamente que afectem os trabalhadores. Portugal é o país com mais emigrantes, cidadãos sem restrições, nomeadamente em termos de direitos sociais. E isto afectará decisivamente os seus interesses. O governo português tem de falar, alto e bom som, desde o primeiro momento, deixando muito claro que não aceitará recuos, que são por unanimidade nesta matéria. 
Que tipo emigração temos hoje?
Neste momento Portugal está a retribuir os fundos comunitários que recebeu com mão-de-obra altamente qualificada ou muito bem qualificada, que está dar de mão beijada ou chave na mão a vários países europeus. Isto é um ponto importante, não estamos a exportar trabalhadores não qualificados, como fazíamos para França para o bâtiment. É gente muito bem formada ao serviço desses países, a quem não tiveram de pagar as universidades. A primeira mão-de-obra que Portugal exporta é sempre não qualificada, fui embaixador em França e vi chegar muita gente assim, até montámos uma espécie de observatório. Mas o que vimos depois, foi um surto de profissionais com cursos superiores, que foi para a Alemanha, para o Reino Unido e até para fora da União Europeia. Aliás, com uma espécie de bênção oficial, altamente chocante para muita gente. Hoje, no Reino Unido, estão enfermeiros, médicos, que têm vindo a qualificar a imagem de Portugal no exterior e são uma mais-valia para o país onde se encontram, Portugal não pode associar-se a políticas que vão no sentido de retirar direitos sociais a cidadãos que estão a dar o melhor ao serviço de países estrangeiros. Isto sem prejuízo de tentar perceber o senhor Cameron e os seus problemas – alguns dos quais criou a si próprio ao defender o referendo. Seria trágico se o RU abandonasse a UE.
Mas o RU está a sair-se bem com as suas opções, essa é a questão.
Por isso, já não está no euro, não está em Schengen, já fez opting-outs variados. O que não podemos é tornar a União Europeia à la carte, uma estrutura à medida de cada um. Há elementos de natureza global que se perdem caso a UE passe a ser uma espécie de menu em que cada um escolhe aquilo que lhe dá jeito em determinado momento. Essa é a ideia dos antieuropeus.
As resistências nacionais devem ou não ser acomodadas?
As resistências nacionais têm de ser acomodadas, percebo isso, mas também convém que os líderes europeus tenham a capacidade de saber gerir o seu dia-a-dia sem ser com base nas sondagens e naquilo que são os sentimentos pontuais dos seus cidadãos. Isto não é uma Europa que deva ser medida à luz dos inquéritos de opinião. Os dirigentes políticos têm de ser capazes de fazer uma pedagogia junto das suas opiniões públicas sobre os valores europeus, mas a maioria das vezes verificamos que encontram na Europa o bode expiatório para as suas debilidades e reagem de uma forma altamente populista àquilo que são as políticas europeias no âmbito nacional e não são capazes de explicar as vantagens da Europa  – ou as desvantagens da não Europa. Seria uma surpresa para as gerações mais novas perceber que muito do que hoje beneficiam desapareceria de um dia para o outro se regressássemos à Europa tradicional.
Os recentes ataques terroristas em Paris serviram para unir a Europa?
O Estado Islâmico não tem adeptos públicos e essa é, entre aspas, uma vantagem. Se olharmos para o que era o discurso do terrorismo no passado, havia um sublinhar dos factores de natureza conjuntural que atenuavam ou davam espaço para discutir causas de raiz subjacente. O Estado Islâmico, pela sua barbaridade e pelo modo como actua, não dá espaço para negociação. As pessoas ou são fanáticas e estão com o Estado Islâmico ou estão contra ele. E a esmagadora maioria da população europeia está contra. Isso pode ser um cimento para as políticas de natureza securitária, que devem ser ponderadas à luz da cultura europeia de liberdades, mas também para ajudar a reflectir sobre o que vamos fazer no futuro. É verdade que pode trazer consequências, como o retomar de fronteiras, redefinir limites às liberdades aqui ou ali, mas estou mais calmo na Europa agora do que nos Estados Unidos no 11 de Setembro.
Estava em Nova Iorque na altura…
Assisti ao que foi a evolução da política americana no pós 11 de Setembro. Tenho a certeza que o apego europeu às liberdades está muito mais enraizado e torna-a mais imune a uma deriva securitária radical e ao modo como vai desenvolver essas políticas do que aquilo que se passou nos Estados Unidos. Por isso é importante este debate, mais até para a esquerda, que não convive bem com as questões da segurança, porque privilegia a dimensão liberdades. 
Há muitas diferenças entre a maneira como se viveu o pós 11 de Setembro nos EUA e a forma como a Europa vive depois dos ataques em Paris?
É diferente a situação francesa e a situação, aí sim, de pânico e instabilidade profunda que atravessou depois a sociedade americana. Os americanos não estavam habituados a actos terroristas no seu território, enquanto a França, como o Reino Unido, tem um histórico que faz com que, independentemente da dimensão bárbara destes atentados, as pessoas relativizem os efeitos. Nos EUA os ataques deram origem a retaliações, algumas cobertas pela comunidade internacional, como o ataque aos centros de Bin Laden, no Afeganistão, a tragédias como a invasão do Iraque, com sequelas que ainda estamos a sofrer e a pagar. Espero que a França tenha uma actuação diferente.
Lembra-se onde estava, do antes e do depois?
Na antevéspera dormi em Boston, no mesmo hotel que os terroristas, no The Westin. Por coincidência, estive dois dias em Boston e eles estavam nesse mesmo hotel, veio depois a saber-se. Foi uma experiência altamente traumática pela dimensão da tragédia e pela insegurança subsequente, colocava-se a dúvida sobre se haveria dirty bombs, ataques químicos e durante semanas viveu-se uma vida terrível de desconfiança em relação a tudo o que era fisicamente diferente. Marcou a América para sempre.
Que leitura faz das sondagens que colocam Donald Trump na presidência dos EUA?
O discurso caricatural e perigoso do senhor Donald Trump mostra-nos o que é uma certa América, que é aquela que deu uma Sarah Palin, o Tea Party. Uma América profunda, que existe e que normalmente não consegue uma emergência em matéria de poder em Washington, mas que marca muito a agenda dos candidatos e da política americana. Há muitos congressistas que vêm desses sectores e representam esses sectores, não podemos esquecer isso. É essa América com que temos de contar e que durante muitos anos tinha uma profunda rejeição a tudo quanto era estrangeiro – lembro-me que durante anos 60% ou 70% dos congressistas americanos não tinham passaporte porque não viajavam, a América chegava-lhes como mundo. Hoje as coisas são diferentes, mas ainda há uma América preparada para ouvir o senhor Trump. Mas também temos uma França preparada para ouvir a senhora Marine Le Pen. Há sempre uma parte do eleitorado que é seduzida por agendas radicais mais populistas, menos controladas, até culturalmente, mas que são democraticamente representativas.
Isso é aflitivo?
Claro que é. Mas a única maneira de tentar travar isto é reforçar as agendas moderadas.
Falou nas liberdades que não gostaria de ver comprometidas. Quais?
Não gostaria de ver evoluir as redes de Intelligence e de protecção de dados para níveis que possam comprometer a privacidade absoluta dos cidadãos. Tenho a certeza que esta preocupação atravessa o governo francês, sendo a França a pátria das liberdades. Além da tragédia ter sido em Paris, fico contente que seja a França a liderar este processo de combate ao terrorismo e de preservação das liberdades porque tenho a certeza que é dos países europeus onde mais dificilmente se cometerão exageros, tem uma opinião pública muito atenta, como se viu por ocasião dos ataques ao “Charlie Hebdo”. Há aqui um grande momento de unidade europeia e espero que os líderes europeus sejam capazes de tirar conclusões em termos de políticas comuns.
Há muito que se diz que a Península Ibérica está vulnerável. O que é possível fazer?
Espanha teve os ataques de Atocha, nenhum país está a salvo, particularmente neste tipo de terrorismo. Uma coisa é um terrorista que quer escapar com vida, outra é o terrorista que não se importa de se imolar no processo. Só podemos fazer a prevenção possível e colaborar na troca de informações. Houve erros e falhas nessa articulação que se revelaram fatais, mas tudo indica que foram evitados vários atentados, só que no dia em que um é conseguido esquecemo-nos do resto.
Os serviços secretos portugueses preocupam-no e as declarações públicas do ex-director do SIED – Serviço de Informações Estratégicas de Defesa, que veio dizer que 90% do modus operandi é ilegal?
Preocupam-me muito e penso que é um sinal muito mau não só para nós mas também para a credibilidade destas instituições junto dos seus contrapartes estrangeiros. Os serviços secretos vivem muito da confiança que criam e independentemente de saber o estado actual do SIED, depois da saída desse senhor, estou extremamente preocupado com a credibilidade global dos serviços de informações portugueses à escala internacional e isso fragiliza-nos. Como, aliás, já aconteceu no passado. Portugal convive mal com os seus serviços de informações, muito tempo ligados à imagem da PIDE – Polícia Internacional e de Defesa do Estado [1945-69] e dos serviços secretos da ditadura, que tinham uma dimensão repressiva. Durante algum tempo os serviços secretos estiveram na mão dos militares, o que lhes dava alguma neutralidade, e a área externa teve já vários diplomatas a chefiá-la – e não posso deixar de notar que nesse tempo as crises por que passaram não tiveram a ver com os diplomatas que os chefiaram. Depois houve a passagem para as mãos civis, o normal em qualquer parte do mundo, mas não foi feito de forma suficientemente cuidadosa.
O que é que falhou?
Em particular há uma coisa que falha flagrantemente, que é o controlo parlamentar sobre os serviços de informações. Fica a sensação de que aos parlamentares encarregados dessa matéria, que são gente qualificada e respeitável, só é dada alguma da informação e, pelos vistos, não chega ao seu conhecimento aquilo que são as práticas comuns desenvolvidas por alguns desses serviços. Esta questão devia ficar muito rapidamente esclarecida e de uma vez por todas é preciso que os serviços de informação percebam que em primeiro lugar devem respeitar a Constituição e os direitos dos cidadãos e não pode haver uma justificação de eficácia que sobreleva a necessidade de respeitar a lei.
Um ex-responsável pode fazer declarações destas e ficar tudo na mesma?
Espero que a justiça funcione, tenho esperança nisso e fico contente por a nova ministra vir da Procuradoria-Geral da República.
Voltando a França é à questão da liberdade. A França foi fundadora das duas coisas: da liberdade e do medo…
Em todas as revoluções há momentos trágicos, mas penso que o terror foi há muito ultrapassado pela cultura da liberdade, igualdade e fraternidade, e não é uma marca da cultura política francesa.
Quando foi a França pela primeira vez?
Fui a França a primeira vez à boleia, desde a rotunda do Relógio até Paris, onde cheguei a 4 de Agosto de 1967. Mas sabia o centro de Paris de cor, andei no dia seguinte a mostrar tudo a um amigo que encontrei, porque tinha um mapa da cidade em minha casa, nos guias franceses, e conhecia os monumentos todos, a Étoile, os Champs-Élysées, a Place de la Concorde, La Madeleine, a Opéra, a Place de Vandôme, tinha todo esse imaginário, cheguei a Paris e parecia sempre tinha vivido lá. Depois percebemos que há todo um país que acabamos por nunca conhecer e ainda hoje não conheço tudo. Mas era assinante do semanário “L’Express” desde os 18 anos e a esmagadora maioria dos livros que tinha então era em francês, hoje já não. Tenho grande pena que a cultura francesa tenha desaparecido, mas é natural, tem a ver com o peso dos EUA no quadro global. O meu pai dizia uma frase, já não sei de quem é: todos temos duas pátrias, a nossa e a França. Sou francófilo por natureza, faço parte de uma geração muito dependente da cultura francesa. Salgado Zenha dizia que os portugueses viviam entre dois santos: São Bento para o poder e Santa Apolónia para partir para Paris. E ainda fui duas vezes só para ver eleições, que não havia cá. Assisti em Paris à segunda volta das presidenciais, em 15 de Junho, ganhas por Georges Pompidou, e às legislativas de 4 e 11 de Março de 1973 – estive em Paris de 3 a 12. A direita ganhou folgadamente, mas essa eleição marca o início de um processo de diálogo entre os socialistas, os comunistas e os radicais de esquerda, com base no chamado “Programa Comum”, que acabará, em 1981, com a vitória de Francois Mitterrand e a subsequente entrada dos comunistas no governo. Depois, vim de Paris e fui para a tropa. Mas lembro-me de ver os cartazes eleitorais, tudo aquilo, era uma espécie de substituto da liberdade organizada. Essa França fez-me sempre falta.
Ser embaixador em Paris foi uma opção sentimental? 
Na altura podia escolher entre Madrid e mais um ou dois postos. Fui complementar a minha experiência do Brasil, uma comunidade mais antiga, as pessoas deixaram de emigrar para o Brasil quando começaram a emigrar para França, para a Suíça e para o Luxemburgo. Essa comunidade diz-me muito, é nortenha, também transmontana mas essencialmente minhota. O meu pai é minhoto e a minha mãe transmontana, eu sou de Vila Real. No Brasil dominava uma comunidade transmontana e em França a comunidade minhota, de patriotismo absolutamente arreigado. Mas também há notas negativas sobre isto, parte dessa comunidade, embora não significativa, tem uma reacção anti-árabe forte.
Alguma vez foi chamado a intervir, teve de gerir conflitos?
Várias vezes me confrontei com tensões entre sectores da comunidade portuguesa e sectores da comunidade muçulmana em França, momentos que não foram os mais interessantes da minha estada lá. A comunidade portuguesa é muito bem integrada, bastante mais próxima do mainstream da sociedade francesa. Tive uma situação em que uma associação recém criada estava muito próxima de uma associação árabe muçulmana e o maire da cidade veio pedir a minha intervenção. Por duas vezes tive algum choque com membros da comunidade portuguesa por comentários que ouvia relativamente a muçulmanos e achava que não era o modo e a tolerância tradicionais que os portugueses devem ter. Costumo citar um exemplo único, um primeiro-ministro francês, Manuel Valls, que aos vinte anos tinha apenas nacionalidade espanhola. Isto em Portugal era completamente impossível. A França tem uma capacidade fantástica de integração. E eu sou um fanático de orgulho pelo facto de Lisboa ser uma sociedade muito diversa, gosto da noção de porto que Lisboa tem, da noção antiga, como diria Fernão Lopes, “de muitas e desvairadas gentes”.  Tenho muito orgulho em dizer aos meus amigos estrangeiros que Portugal está no top em matéria de integração de cidadãos estrangeiros, porque isto traduz o que somos como país e como povo. Saber viver com a diferença é o que traduz uma sociedade civilizada.
E agora que falamos em coisas civilizadas é a altura perfeita para lhe falar no Sporting…
O Sporting é um clube essencialmente católico, só ganha se Deus quiser.
Agora é se Jesus quiser.
Para reforçar, agora temos Jesus connosco. Não sendo eu um grande fã de Jesus, nem como figura, nem como presidente do Sporting, devo reconhecer que está a fazer um trabalho notável pelo meu clube. Até porque Jesus é um espectacular treinador do ponto de vista técnico – confesso que o registo de expressão pessoal não é o meu estilo preferido.
É nesta matéria que se entende bem com António Costa?
Devo dizer-lhe que apesar de ele ser benfiquista, nessa matéria também estivemos sempre bem. Até nos governos de que ambos fizemos parte, quando fui secretário de Estado dos Assuntos Europeus, os sportinguistas estavam em maioria. É verdade, chegámos a fazer uma contagem à volta de uma mesa. O primeiro-ministro, António Guterres, é que também é do Benfica.
O país está agora mais parecido com o Sporting, com mais hipóteses de vencer? 
O país tem uma oportunidade de dar um salto em frente. No entanto, tem conseguir rapidamente condições de natureza interna para consensualizar uma estratégia nacional e isso é uma das coisas que mais me angustia. Faço parte de alguns think tanks e há uma espécie de sentimento geral: precisamos de encontrar um desiderato comum para projectar o país e garantir uma estabilidade mínima que tem a ver, em primeiro lugar, com a criação de condições para o investimento directo estrangeiro. É fundamental trazer investimento directo produtivo que crie emprego e qualifique mão-de-obra em sectores importantes para o futuro.
Como?
Tem de haver previsibilidade fiscal.
A Jerónimo Martins [Biedronka] vai ter agora um problema na Polónia com os impostos?
É um problema resolúvel, vai continuar a ser o maior empregador e vive bem com o respeito pelas leis polacas, não há o mais leve problema. Para poder investir em Portugal é preciso não ter uma surpresa na esquina seguinte, que pode vir por razões fiscais, burocráticas, excesso de legislação ou controlos de natureza administrativa. Vou diz uma coisa que, se calhar, pode parecer não ter sentido: o Presidente da República é a entidade que, por provir de votos vindos de vários sectores, pode em início de mandato ter um papel agregador nesta matéria e impulsionador esta agenda para o investimento. Se não, tudo isto será mais um período de conflitualidade interna. Embora possa admitir que a maioria dos agentes económicos estaria mais confortável com os agentes da coligação do que com um governo socialista – basta olhar para as pessoas que o senhor Presidente da República seleccionou criteriosamente para ouvir, quer em matéria de empresários, quer em matéria de economistas, para perceber par aonde vai o sentido maioritário. Só espero que o governo socialista lhes possa criar uma boa surpresa.
Quem seria o presidente para apoiar essa agenda?
Não sei e ainda não sei em quem vou votar.
Já estão todos os candidatos?
Acho que já estão todos, por muita incomodidade e comichão que a direita tenha com as traquinices do professor Marcelo Rebelo de Sousa. Mas qualquer deles, Marcelo, Maria de Belém, Sampaio da Nóvoa, tem perfil para poder fazer a tal agenda e lançar o debate. Em particular, penso que o novo presidente deveria mobilizar mais a sociedade civil. O país continua demasiado marcado pelas agendas partidárias, cuja capacidade imaginativa é muito limitada.
Se tivesse de fazer uma daquelas notas diplomáticas para explicar a alguém o mandato de Cavaco Silva, como o definiria?
Não posso esconder que sou profundamente crítico da maneira como o presidente da República se tem comportado, nos últimos anos em particular. Em primeiro lugar, mesmo perante as pessoas que votaram nele, o presidente Cavaco Silva foi uma desilusão, porquanto se pensava que, tendo em conta a sua experiência económica, a sua experiência como primeiro-ministro, teria uma capacidade de influência e de magistratura muito superior, particularmente em tempos de crise. Senti falta de um presidente isento nos últimos anos. Custa-me muito dizer isto e não quero afectar o respeito que me é devido à figura do presidente, mas penso que Cavaco Silva tomou partido por uma parte do país contra a outra e não soube representar em momentos muito difíceis o sentimento global e as angústias de milhares de portugueses. Tenho pena que isso tenha acontecido e que o presidente se tenha colado a uma agenda sectária e isso reflecte o saldo global da sua presidência. São dez anos dos quais não sai bem.
Se tivesse de usar uma palavra para definir esta presidência, qual seria?
Triste.