São os helicópteros mais famosos do país e pelas piores razões. Desde que os seis Kamov foram comprados pelo governo de José Sócrates – era António Costa ministro da Administração Interna –, as polémicas têm-se sucedido. O negócio foi celebrado em 2006, quando o Estado decidiu comprar aeronaves para combater os fogos florestais. À época, Portugal não tinha meios aéreos próprios e o objectivo era poupar, evitando o recurso constante ao aluguer.
Mas a poupança depressa foi por água abaixo. A Heliportugal, empresa escolhida para trazer os seis Kamov da Rússia por 42,1 milhões de euros, não entregou os helicópteros dentro do prazo estabelecido no contrato, o que obrigou, segundo uma auditoria do Tribunal de Contas (TdC), a gastos adicionais com o aluguer de outras aeronaves.
Em Julho do ano passado, o TdC fez uma auditoria às contas da Empresa de Meios Aéreos (EMA), criada em 2007 para gerir a frota de helicópteros do Estado, por ocasião da sua extinção. E as conclusões foram arrasadoras. Os juízes chegaram mesmo a “censurar” a actuação do antigo subsecretário de Estado da Administração Interna, o socialista Fernando Rocha Andrade, no processo de compra dos Kamov. Rocha Andrade, segundo o TdC, alterou e “aligeirou” o contrato com a Heliportugal num momento em que empresa já estava em incumprimento para com o Estado, não tendo “acautelado o interesse público”. Face a estas conclusões, o Tribunal de Contas enviou a auditoria para análise da Procuradoria-Geral da República (PGR). Mas, um ano e meio depois, ainda não houve qualquer decisão. Contactada pelo i, a PGR revela apenas que estão a correr no Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP)de Lisboa “três inquéritos” relacionados com os Kamov, escusando-se a revelar o que está em investigação.
Multas pequenas O antigo subsecretário de Estado Rocha Andrade, conta a auditoria do TdC, aceitou fazer aditamentos ao contrato inicial dos Kamov. E as alterações, dizem os juízes, terão sido propostas pela própria Heliportugal. Em Julho de 2007, Rocha Andrade flexibilizou as condições de entrega e antecipou o pagamento das aeronaves, embora estas já estivessem atrasadas: o primeiro Kamov deveria ter aterrado em Portugal seis meses antes, em Janeiro. Ainda assim, na revisão contratual, o Estado aceitou pagar mais cedo em troca de uma antecipação dos prazos de entrega – quando, na realidade, esses prazos já tinham sido ultrapassados. Também foi Rocha Andrade quem aceitou receber os helis “sob reserva”, sem um conjunto de requisitos técnicos necessários para que pudessem voar.
Os Kamov chegaram a Portugal com atrasos que variaram entre 997 dias e 1240 dias (dois a três anos a mais do que inicialmente contratado). Mas como vieram sem requisitos, a demora foi ainda maior, porque a Heliportugal precisou de mais 818 a 1102 dias (22 a 36 meses) para conseguir fazer a entrega definitiva. A empresa foi multada em 2,5 milhões de euros pelo atraso, mas o TdC considerou o valor baixo, tendo em conta que algumas das infracções cometidas foram “consideradas graves”. A multa aplicada, dizem os juízes, correspondeu a apenas 14,9% do valor que o Estado poderia ter cobrado.
As horas nunca voadas Além de ter intermediado a compra dos Kamov, a Heliportugal ficou responsável pela operação e manutenção dos helicópteros russos. E a auditoria do TdC também arrasa os contratos de manutenção programada que o governo aceitou assinar. Por, segundo os juízes, preverem um número mínimo de horas de voo “exageradas e em média quase o dobro das horas voadas”, elevando os custos com a manutenção.
Os contratos eram celebrados sempre da mesma maneira: era pago pelo Estado um valor fixo anual que incluía um conjunto de horas de voo, findas as quais era preciso pagar um valor adicional por hora voada. Mas o Estado comprava pacotes com horas a mais (ver tabela). Em 2008, por exemplo, a EMA pagou por 2312 horas de voo, mas os helicópteros só voaram 1269 horas – gastando-se assim 5,4 milhões de euros a mais. E até 2013, o Estado pagou sempre demasiadas horas. Em sete anos, os Kamov voaram 9562 horas, mas foram pagas à Heliportugal 14 531 – o que representou uma despesa de 22 milhões em horas nunca voadas. O TdC criticou a “falta de iniciativa” da EMA em renegociar estes contratos, que eram renovados anualmente.
os Ajustes directos ilegais O contrato para a chegada dos Kamov, que seria faseada, foi assinado a 22 de Maio de 2006 e previa que o primeiro helicóptero aterrasse em Portugal a 22 de Janeiro de 2007. O segundo e o terceiro chegariam a 22 de Julho de 2007; o quarto e o quinto a 22 de Agosto, e o sexto a 22 de Setembro. Por isso, e atendendo a estas datas, não seria difícil ao governo antever que os Kamov nunca estariam disponíveis a tempo de apagar os incêndios do Verão de 2007. Mesmo assim, o MAI não lançou um concurso “normal” para alugar meios aéreos e preferiu, segundo o TdC, invocar “urgência” e celebrar ajustes directos.
Um memorando datado de 5 de Maio de 2007, redigido pela chefe de gabinete de Rocha Andrade, justificou a decisão de partir para os ajustes: “Os meios aéreos permanentes do Estado contratados em 2006 têm prazos contratuais de chegada em 2007, na generalidade posteriores ao encerramento da fase Bravo [que começa em Maio e se prolonga até ao final de Junho]. […] Todavia, a empresa adjudicatária tem indicado que poderá proceder à entrega de parte dos meios contratados antes dos prazos contratualmente definidos”, diz o documento, em que Marta Rebelo acrescenta que a Heliportugal se tinha comprometido a fornecer meios de substituição a partir de 1 de Julho e que “a fase Bravo é marcada por uma clara incerteza quanto ao concreto grau de risco existente entre Maio e Junho.”
A 10 de Maio de 2007, a seis dias de abandonar o cargo de ministro da Administração Interna para se candidatar à Câmara de Lisboa, António Costa dava aval positivo ao memorando. E a 24 de Maio eram consultadas cinco sociedades constituídas por empresas de aviação: a Aeronorte, a Helibravo, a Heliportugal, a Helisul e a Vilsense. Cinco dias depois, o secretário de Estado da Protecção Civil autorizava vários ajustes directos, “fundados na urgência imperiosa, incompatível com os prazos do procedimento de concurso público […] decorrente do atraso de última hora na entrega dos meios aéreos em aquisição pelo Estado”. A Heliportugal, que ainda não tinha entregue sequer o primeiro Kamov, foi a empresa escolhida para receber a maior fatia do ajuste directo: quase 700 mil euros (sem IVA).
Meses depois, em Dezembro de 2007, o Tribunal de Contas enviou um ofício à Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC) questionando “por que razão não foi lançado, atempadamente, o procedimento concursal exigido”. Os juízes consideravam que houve tempo para fazer concursos normais, dado que já se sabia desde 2006 que os Kamov não chegavam a tempo da fase Bravo. A ANPC justificou-se dizendo que tinham sido feito “contactos informais” com a Heliportugal, obtendo garantias de que os Kamov chegariam antes do tempo previsto no contrato. Mas o acórdão 35/2008 do TdC concluiu que não houve “motivos de urgência imperiosa”: o Estado já sabia, desde o ano anterior – quando assinou o contrato com a Heliportugal –, que não ia haver aviões para a fase Bravo. “É absolutamente incompreensível do ponto de vista do interesse público que, no contrato de aquisição de aeronaves, celebrado a 22 de Maio de 2006, o Estado […] não tivesse tido em conta os prazos de obtenção de licenças necessárias às aeronaves no espaço nacional, nem à necessidade de formação de operadores para as mesmas”, lê-se no acórdão, que continua no mesmo tom: “É absolutamente incompreensível” que o Estado “tenha alimentado expectativas de que as aeronaves seriam entregues antes dos prazos contratualmente definidos […] através de contactos informais” que nunca tinham sido “reduzidos a escrito” e, como tal, “podiam não ser cumpridos”.
O verão de 2005 ficou caro Já antes de os Kamov chegarem a Portugal havia problemas na contratação de helicópteros para os fogos. Em 2005, por exemplo, o governo teve de anular dois concursos públicos internacionais. O primeiro porque a única proposta a concurso, da Aeronorte e da Helisul – as empresas que tinham fornecido os aviões nos três anos anteriores –, foi considerada inaceitável. Era de 7 milhões de euros, mais 89% que o valor inicial. Mais tarde, a Autoridade da Concorrência provou que as duas empresas – que tiveram de pagar uma multa de 310 mil euros – formaram um cartel. Quanto ao segundo concurso, foi anulado devido à seca: as aeronaves contratadas não conseguiriam abastecer-se nas albufeiras.
Assim, e com os dois concursos anulados, o governo teve de fazer ajustes directos para garantir que no Verão de 2005 (um dos piores de sempre em matéria de incêndios, com uma área ardida de 338 mil hectares) havia meios aéreos para apagar os fogos. O TdC não deixou de notar, no entanto, que quando o governo lançou o segundo concurso, em Fevereiro de 2005, “já era conhecida a informação climática que apontava para uma situação de seca (a mais grave de sempre desde 1990)”. Ou seja, o Estado deveria ter-se precavido e poderia ter lançado concursos públicos para outro tipo de helicópteros que pudessem abastecer-se de água em períodos de seca.
Não foi isso que aconteceu: o governo fez um ajuste directo para a contratação de meios aéreos em meados de Junho de 2005 – em cima da época de incêndios. E o contrato foi assinado com as mesmas duas empresas, entretanto condenadas por cartel, por um valor apenas 26% mais baixo que os 7 milhões apresentados inicialmente. Assim, e em 2005, Portugal pagou mais de 30,5 milhões de euros pelo aluguer de 49 aviões. Um acréscimo, apontava o TdC no seu relatório de 2007, de 134% face ao ano anterior.