Nos casinos é a ética que está em jogo


Como é possível que existam caixas multibanco nas salas de jogo dos casinos? Uma noite entre adictos deixa claro que a ética anda na roleta russa


Quando entro no casino do Funchal fico desiludida, é escuro, cheira a fumo e só vejo homens que, decididamente, não têm ar de James Bond. Aliás, nada aqui tem glamour, nem sequer a roleta, dividida das máquinas por um quase biombo… 

Insisti em vir porque guardava a memória de uma noite em que, há mais de 20 anos, joguei póquer numa máquina e senti a adrenalina das apostas, do arriscar, de ver o dinheiro a crescer para diminuir sempre, verdade seja dita. Agora já não há fichas que se comprem num balcão, constato, e a nota insere-se directamente na máquina, como quem compra um bilhete no metro. Aposto dez euros, mas não consigo concentrar-me, porque ao meu lado está um homem desnorteado que carrega nas teclas com violência, enquanto protesta e solta palavrões. Em segundos consome 20 euros, abre a carteira e põe mais 20, grunhe de novo e depois mais 20, e a seguir mais 20, e bate com cada vez mais desespero nas teclas. 

Sinto falta de ar. Tento lembrar-me que é adulto, que não tenho nada que me meter, e desviar o olhar. Mas para todos os lados onde olho só vejo rostos fechados, nervosos, dedos onde os cigarros ficam esquecidos e notas a saírem das carteiras como se fossem atraídas por ímanes gigantes. Constato com espanto que há alguns que jogam simultaneamente em mais do que uma máquina, ninguém dá uma gargalhada nem tão-pouco oiço exclamações de euforia. 

Tento concentrar-me mas, ao meu lado, agora o homem abana a carteira vazia e, tirando um cartão de crédito, dirige-se a uma máquina multibanco. Não tinha dado por ela, mas está ali à mão de semear, sem que se dê aos que agem sob impulso a oportunidade de ir lá fora arrefecer ideias, de conseguir alguma distância e, quem sabe, de se meter no carro e sair dali para fora. Apetece-me dizer-lhe que não seja estúpido, que ainda se vai enterrar mais, mas opto por vir eu embora, que fiquem lá os dez euros, ficavam de qualquer maneira. 

Pergunto a um responsável por um casino como é possível as máquinas de multibanco estarem dentro da sala de jogos, e ele justifica-se explicando que, apesar de tudo, é mais seguro do que deixar os viciados às mãos dos usurários que ali emprestam dinheiro. Fico consternada. Vou ao site Casino.pt e lá está o símbolo do multibanco — “usar o multibanco para jogar é muito simples”, “a partir do conforto do seu lar”, blá, blá. Fico enjoada.

Explica-me também que os jogadores que se assumam doentes podem assinar um documento em que se auto–excluem do casino (da black list constam mais de mil), mas reconhece que na realidade funciona mal, porque agora já não é necessária identificação à entrada, uma medida para tornar Portugal mais atraente para o turismo. O que significa que nem aqueles que o tribunal proibiu de frequentarem estes lugares acabam por ter o acesso vedado. O provedor de Justiça já alertou, directivas europeias foram transcritas, as multas aumentaram mas, na prática, tudo continua demasiado igual. 

Para apaziguar consciências, os casinos doam uma percentagem da receita para tratamento de jogadores viciados. Pois.

É claro que sei que qualquer um pode perder dinheiro onde quiser, mas os casinos são regulados por lei e 50% dos 267 milhões ganhos (ou devia dizer perdidos?) em 2014, número que este ano já vai em 214 milhões, revertem directamente para o Estado. Estado que é suposto ser pessoa de bem e proteger estes indivíduos de si mesmos (a pedido do próprio!), e estas famílias de quem as arruína compulsivamente. Decididamente, parece ser a ética que está ali em jogo.

Jornalista e escritora 
Escreve ao sábado 

267 milhões é a receita bruta dos casinos portugueses

 

Nos casinos é a ética que está em jogo


Como é possível que existam caixas multibanco nas salas de jogo dos casinos? Uma noite entre adictos deixa claro que a ética anda na roleta russa


Quando entro no casino do Funchal fico desiludida, é escuro, cheira a fumo e só vejo homens que, decididamente, não têm ar de James Bond. Aliás, nada aqui tem glamour, nem sequer a roleta, dividida das máquinas por um quase biombo… 

Insisti em vir porque guardava a memória de uma noite em que, há mais de 20 anos, joguei póquer numa máquina e senti a adrenalina das apostas, do arriscar, de ver o dinheiro a crescer para diminuir sempre, verdade seja dita. Agora já não há fichas que se comprem num balcão, constato, e a nota insere-se directamente na máquina, como quem compra um bilhete no metro. Aposto dez euros, mas não consigo concentrar-me, porque ao meu lado está um homem desnorteado que carrega nas teclas com violência, enquanto protesta e solta palavrões. Em segundos consome 20 euros, abre a carteira e põe mais 20, grunhe de novo e depois mais 20, e a seguir mais 20, e bate com cada vez mais desespero nas teclas. 

Sinto falta de ar. Tento lembrar-me que é adulto, que não tenho nada que me meter, e desviar o olhar. Mas para todos os lados onde olho só vejo rostos fechados, nervosos, dedos onde os cigarros ficam esquecidos e notas a saírem das carteiras como se fossem atraídas por ímanes gigantes. Constato com espanto que há alguns que jogam simultaneamente em mais do que uma máquina, ninguém dá uma gargalhada nem tão-pouco oiço exclamações de euforia. 

Tento concentrar-me mas, ao meu lado, agora o homem abana a carteira vazia e, tirando um cartão de crédito, dirige-se a uma máquina multibanco. Não tinha dado por ela, mas está ali à mão de semear, sem que se dê aos que agem sob impulso a oportunidade de ir lá fora arrefecer ideias, de conseguir alguma distância e, quem sabe, de se meter no carro e sair dali para fora. Apetece-me dizer-lhe que não seja estúpido, que ainda se vai enterrar mais, mas opto por vir eu embora, que fiquem lá os dez euros, ficavam de qualquer maneira. 

Pergunto a um responsável por um casino como é possível as máquinas de multibanco estarem dentro da sala de jogos, e ele justifica-se explicando que, apesar de tudo, é mais seguro do que deixar os viciados às mãos dos usurários que ali emprestam dinheiro. Fico consternada. Vou ao site Casino.pt e lá está o símbolo do multibanco — “usar o multibanco para jogar é muito simples”, “a partir do conforto do seu lar”, blá, blá. Fico enjoada.

Explica-me também que os jogadores que se assumam doentes podem assinar um documento em que se auto–excluem do casino (da black list constam mais de mil), mas reconhece que na realidade funciona mal, porque agora já não é necessária identificação à entrada, uma medida para tornar Portugal mais atraente para o turismo. O que significa que nem aqueles que o tribunal proibiu de frequentarem estes lugares acabam por ter o acesso vedado. O provedor de Justiça já alertou, directivas europeias foram transcritas, as multas aumentaram mas, na prática, tudo continua demasiado igual. 

Para apaziguar consciências, os casinos doam uma percentagem da receita para tratamento de jogadores viciados. Pois.

É claro que sei que qualquer um pode perder dinheiro onde quiser, mas os casinos são regulados por lei e 50% dos 267 milhões ganhos (ou devia dizer perdidos?) em 2014, número que este ano já vai em 214 milhões, revertem directamente para o Estado. Estado que é suposto ser pessoa de bem e proteger estes indivíduos de si mesmos (a pedido do próprio!), e estas famílias de quem as arruína compulsivamente. Decididamente, parece ser a ética que está ali em jogo.

Jornalista e escritora 
Escreve ao sábado 

267 milhões é a receita bruta dos casinos portugueses