A 30 de Outubro, José Fernandes e Fernandes foi acordado às sete da manhã pela Polícia Judiciária. As buscas em casa surgiram depois de uma denúncia anónima apontar o director do serviço de Cirurgia Vascular do Hospital Santa Maria (HSM) como autor de irregularidades na compra de próteses da aorta – materiais que podem chegar aos 30 mil euros cada. Era suspeito de ganhar milhares com a fraude, à conta do Serviço Nacional de Saúde (SNS). O médico fala agora, pela primeira vez, sobre o processo.
Foi apanhado de surpresa com as buscas da PJ? As suspeitas sobre irregularidades no HSM já vinham de há meses.
Quando o Dr. Miguel Oliveira da Silva, antigo director clínico do HSM, levantou algumas conjecturas, nós, directores de serviço de Cardiologia, Cervical-Torácica, Ortopedia e eu, de Cirurgia Vascular, pedimos ao Conselho de Adminstração (CA) uma auditoria. Isto, a 22 de Janeiro de 2015. OCA deu seguimento para a Inspecção-Geral das Actividades de Saúde.
Passam 11 meses e não acontece nada?
Nada. Até ao dia 30, dia das buscas, nunca mais tinha ouvido falar de nada.
E há duas semanas a PJ bate-lhe à porta.
Às sete da manhã, a PJ chega a minha casa e sou confrontado com a necessidade de fazerem buscas. Sei que vão, depois, ao HSM e à Faculdade de Medicina.
Falava-se em corrupção, falsificação de documentos, fraude…
Tudo o que citou vem na imprensa, mas não consta dos documentos oficiais. Não poderei fazer referências a eles [o processo está em segredo de justiça].
Tem ligações privilegiadas à empresa fornecedora de próteses Biosonda?
É totalmente falso. Nunca tive uma ligação pessoal, familiar, por interposta pessoa ou entidade com qualquer empresa fornecedora de material clínico a instituições públicas.
Como decorre todo o processo de escolha e compra das próteses?
O processo é muito claro. Os clínicos fazem a proposta, que passa através do grupo coordenador, que analisa e confirma. E depois é discutida na reunião clínica.
É depois disso que se encomenda?
Havendo consenso, o pedido é feito com uma semana de antecedência em relação à cirurgia, para dar tempo ao serviço de compras e à direcção clínica de se pronunciarem. Se a direcção clínica tem dúvidas, interpela-me. E a Prof. Maria do Céu Machado fazia-o, por vezes. Dei sempre todos os esclarecimentos.
Era questionado, nesse processo?
É o meu dever. Aquilo não é a minha casa, é um serviço público, e eu tenho uma responsabilidade pública. E assumo-a. Nunca foi recusado nenhum caso.
Em algum momento contornou os procedimentos de compra de material?
Conto-lhe um caso. Dia de Natal, estou a almoçar em casa e toca o telefone. “Professor, está aqui um rapaz que teve um desastre. Tem uma ruptura da aorta toráxica.” Todo partido. Não há stock no hospital, porque se está a monitorizar a introdução da inovação terapêutica.
O que se faz perante essa situação?
Telefona-se ao primeiro fornecedor que pode ter a prótese. Mandámos vir de Vila Nova de Gaia e salvámos uma vida. Talvez aí digam que o relatório foi feito a posteriori. Mas está lá tudo. Não há margem para falsificar o relatório.
Também há suspeitas de que tenha simulado urgências para cirurgia.
Houve duas situações, pontuais e muito claras, sobre casos urgentes. A direcção clínica levantou objecções sobre a urgência. Doentes com aneurismas da aorta com seis ou sete centímetros.
De grande dimensão, portanto?
É considerável. Eu disse: “Não dou alta a estes doentes. Se romperem [a aorta] enquanto esperam pela autorização para a prótese, estão dentro do hospital.” Escrevi isso. Eram situações urgentes. Nunca falsifiquei um relatório nem coloquei indicações urgentes que não fossem cientificamente fundamentadas. Tenho 40 anos de prática que respondem por mim.
Nunca favoreceu certas empresas?
Nunca. Em circunstância alguma.
Quantas pessoas intervêm na escolha das próteses?
Do ponto de vista médico, quatro a cinco. A responsabilidade última, como director do serviço, é minha.
Havia um grupo a assinar as encomendas? A investigação refere que certos nomes se repetiam nos documentos.
Havia um núcleo coordenador que via todos os casos e assegurava a homogeneidade dos procedimentos. Mas era sempre proposta do chefe de cada equipa clínica, e o serviço tem cinco.
Alguma vez colocou num doente uma prótese de que não precisava?
Nunca. Todos os casos tinham indicação para serem tratados. Não é possível colocar indicações a doentes falsificando doenças. Tem de ser demonstrado.
Porque é que a mesma empresa – a Biosonda – é mais requisitada que outras?
Porque tem uma prótese específica – e, até há pouco tempo, era a única empresa que as disponibilizava no mercado – ou porque era pedido de acordo com a preferência de cada um dos grupos.
Nunca se opôs a que um clínico usasse determinada prótese?
Nunca. A não ser que houvesse uma indicação que tivesse passado despercebida ao clínico e eu tivesse chamado a atenção.
Reencaminhou casos do Instituto Cardiovascular para o Hospital de Santa Maria em prejuízo do erário público?
Como? Imagine que recebo um cliente no consultório, que quer ser tratado por mim. Pergunta-me quanto custará a operação e diz que não tem dinheiro para ela. Tenho o cuidado de lhe dizer que vir ao meu consultório não lhe dá direito de passar à frente de outros doentes. Mas, como cidadão português, tem direito ao SNS. Portanto, é referenciado para a consulta externa.
Quanto tempo se espera por consulta?
Um doente prioritário espera duas ou três semanas. Ora, se é uma situação urgente que vai ao meu consultório ou de um colega qualquer e não pode ser tratado na medicina privada, é referenciado para a urgência do hospital. Não posso pegar num doente e pô-lo dentro de um serviço.
Houve mais transferências dessas?
Alguém que está a ser tratado no instituto e esgota o plafond do seguro. Interrompe-se o tratamento? Não, encaminha-se para o público. Ou quando há uma intercorrência clínica que requer recursos que não há no privado. Recebemos doentes de vários serviços e não os recusamos. Não há nenhum benefício pessoal para mim.
E nunca cobrou no privado honorários de trabalho no público?
Nunca, nunca aconteceu isso, nunca fiz isso. Em circunstância alguma.
Como delimita esses dois âmbitos?
Há a fronteira da honestidade e do carácter. Eu tenho confiança em mim próprio. Nunca recebi. E provem que recebi, que alguém foi ao meu consultório pagar fosse o que fosse. Nunca aconteceu.
Usou próteses do HSM na sua clínica?
É totalmente impossível que isso possa acontecer. Para a prótese ser paga pelo SNS, o doente, o procedimento e os exames são identificados. O caso recebe a assinatura do CA e, depois, é monitorizado.
Em algum momento foi interpelado pelo ex-director clínico do hospital?
Nunca me questionou. Quando saiu a entrevista escrevi-lhe um mail, com cópia para todos os colegas, dizendo estar disponível para esclarecimentos.
Foi falta de conhecimento?
Ele não estaria integrado, mas também não pretendeu esclarecer.
Referia-se que não havia “caderno de encargos” para estas cirurgias.
Percebo a estratégia do anterior CA, continuada pelo actual, de monitorizar caso a caso até se demonstrar que a experiência está a ser bem conduzida e bem-sucedida. Fazem-se previsões de consumo ao ano. Sei, pelos membros da logística, que se conseguiu negociar vantagens muito significativas com os fornecedores.
Como encara estas suspeitas?
Foi um tiro com chumbo. Creio que não foi adequado. Não era assim que se conduzia a investigação. Era indispensável que o director clínico falasse individualmente com as pessoas para perceber o que se passava. Isso nunca aconteceu.
Como reagiram as equipas?
Houve um sentimento de mal-estar na casa. A esmagadora maioria dos directores de serviço – 30 e tal – escreveram ao CA dizendo que não se reviam na actuação do director clínico.
Até ao momento, é o único visado neste processo. Tem uma explicação para isso?
É claro que tentaram atingir-me pessoalmente. A minha honorabilidade, a credibilidade, o carácter. Porquê, não percebo. Mas não só a mim. Tentaram atingir toda uma equipa e um serviço que lidero e que é marcante, não só no país como lá fora.
Foi dito que o HSM está cercado de interesses da Maçonaria, Opus Dei, partidos políticos. Isto faz-lhe sentido?
Não faz sentido. Surpreendeu-me que o estudo tivesse sido tão superficial. Na actividade científica, quando nos confrontamos com algo inesperado, não tiramos uma conclusão imediata. Vamos comprovar com um estudo adicional. Não foi feito.
Fala-se em relações privilegiadas, uma teia de influência…
Não sei se há. Os presidentes dos CA são nomeados pelos ministros. Se há factores de natureza política ou não, não me compete avaliar. Eu não pertenço a nenhum partido político.
Será mais difícil perceber a relação com sociedades secretas.
Nunca escondi que pertenço à Maçonaria. Também nunca escondi que sou católico. Não são coisas que interfiram entre si. E nunca transpus os interesses de uma instituição para a minha actividade.
E isso acontece com os seus colegas?
Não faço a menor ideia. Eu não faço. Sempre respeitei a meritocracia. Tive uma educação muito rigorosa nesse sentido. A minha vida foi feita prestando provas. Quando aderi, já era professor catedrático e director da faculdade. Não foi a instituição que me projectou. Estou muito à vontade nesse aspecto.
Como olha para o futuro?
Isto põe uma mancha numa carreira impoluta, reconhecida internacionalmente. O meu passado fala por mim. Isto é uma mancha numa fase da vida – vou fazer 69 anos – que serve para destruir a pessoa, quando ela já não tem muito tempo para actuar. Mas é mais que isto. Isto é uma visão da vida académica e profissional que se pretende atingir, é a continuidade de uma acção num serviço que foi reformulado. E uma visão da universidade. Tenho consciência de que fiz isso. E estamos num processo de remodelação muito grande na área cardiovascular no Santa Maria. Não sou só eu quem está em causa. É a continuidade destes projectos cruciais. Há algum mal em reconhecer o mérito e incorporá-lo? Tudo é verificável. É a nossa obrigação por tudo aquilo que recebemos do Estado. Será uma dor imensa se isto for travado. É uma oportunidade que se perde. O lorde Rutherford escreveu: “Because we are poor, we have to be inteligent.” Não podemos, por teimosia, por inveja, por outros sentimentos menos nobres, destruir as oportunidades que vamos criando. Esse é um erro histórico muito grave.