Os samples como ferramentas que nunca tinham sido usadas com esta pontaria; a consciência social e de grupo, traço comum no colectivo Native Tongues (que integrava outros como os De La Soul ou os Jungle Brothers); o cruzamento de talentos individuais raros; e Nova Iorque como inspiração perfeita para juntar tudo isto. Q-Tip, Phife Dawg, Ali Shaheed Muhammad e Jarobi White, os quatro que fizeram o primeiro álbum dos A Tribe Called Quest, “People’s Instinctive Travels and The Paths of Rhythm”, há 25 anos. O grupo influenciou a música urbana que viria depois, até hoje, e Bob Power (que já trabalhou com gente como D’Angelo, Erykah Badu ou The Roots) estava com eles em estúdio e fez agora uma nova remasterização do disco. Nós conseguimos estar à conversa com ele. Nada mau.
Como conheceu o grupo?
Trabalhava num estúdio no final dos anos 80, éramos uns quantos, tudo freelancers, se bem me lembro. Íamos fazendo trabalhos como técnicos nalgumas gravações, às tantas nem me lembro de tudo o que gravámos. Um dia estava a sair de uma sessão e os A Tribe Called Quest estavam a entrar. Na altura já tinham feito algumas coisas com o Shane Faber, algumas sessões. Noutras em que ele não pôde estar presente fui eu que o substituí e a coisa começou a correr bem logo de início. Trabalhámos os dois no primeiro álbum deles.
A primeira vez que ouviu a música dos A Tribe Called Quest, o que achou?
Não me lembro exactamente da primeira vez que ouvi o grupo… mas isso não quer dizer que não tenha sido marcante, atenção. A questão é que nesses tempos fazia três ou quatro sessões de gravação por dia. Sempre entre músicas diferentes, com pessoas diferentes, mas muitas vezes dentro daquela nova vaga de hip hop que se vivia na altura, todo o movimento Native Tongues. Podia ser com os De La Soul num dia, talvez a Queen Latifah noutro. Era tudo música, gostava de todos, até porque essa é uma das razões para aceitar um trabalho no estúdio, seja qual for.
No meio de tudo isso, como é que os A Tribe Called Quest se distinguiam?
Tinha trabalhado pouco antes com os Stesasonic, que vinham da primeira vaga do hip hop. Trabalhavam essencialmente com caixas de ritmos, com a 808, por exemplo, e não ligavam tanto a samples, não havia a reconstrução musical feita a partir de um sample, a combinação que trazia coisas novas. Os A Tribe Called Quest eram tipos incríveis. Assim que os conheci percebi isso, mas enquanto músicos eram muito inovadores, arriscavam tudo, queriam fazer as coisas de maneiras novas e diferentes. Isso na altura punha-os numa divisão diferente, hoje então ainda se percebe melhor a herança que deixaram. Tinham 17 ou 18 anos, por aí. Mas apesar de serem muito novos tinham uma visão abrangente de tudo o que os rodeava, tanto da arte em que trabalhavam como de um sentido humanista que é raro encontrarmos em pessoas mais velhas, quanto mais em adolescentes.
A produção e os samples, a forma como davam uso ao trabalho no estúdio distinguia o grupo. Como funcionava esse processo?
O Q-Tip e o Ali, eram eles que construíam as bases musicais de cada tema, eram eles que juntavam as diferentes peças. Tinham sempre uma ideia muito definida daquilo que queriam em cada canção. Nalguns dias chegavam ao estúdio com material que já tinha sido trabalhado, com sequências pré-produzidas. Usavam muito o SP12 para misturar os samples com os beats e depois levavam isso para as gravações. Ou então traziam discos, havia muitos no estúdio, a toda a hora, e fazíamos os samples ali no momento, montávamos o loop e estava feito. Nunca mais fiz nada como gravar os A Tribe Called Quest.
Como foi a reacção das pessoas quando o álbum foi editado?
Nunca prestei muita atenção a coisas como tabelas de vendas e isso, e quanto ao que as pessoas diziam na rua… bom, é preciso lembrar que tenho mais 20 anos que eles, naturalmente já na altura tinha. Não estava metido no meio da cena, não tinha bem ideia do que era cool ou não nas ruas. Mas lembro-me bem que se tornaram populares muito rapidamente, sobretudo graças a “El Segundo”, acho que foi esse single que os tornou conhecidos tão depressa. E depois havia todo o embalo do movimento Native Tongues. Através do uso que davam aos samples, estes grupos pareciam estar a fazer novas canções com as que já existiam. Literalmente, era isto que acontecia. E o rap que faziam estava bem distante de outras conversas, os temas eram diferentes daqueles que só se preocupavam com dizer coisas como “sou muito melhor rapper que tu” ou “vê bem o tamanho da minha arma”.
Os A Tribe Called Quest eram de Nova Iorque. Mas e se não fossem?
Bom, se não fossem aquela música nunca poderia ter acontecido assim. Era o eixo de todo o hip hop. Foram precisos mais alguns anos até que o hip hop da Costa Oeste começasse a ter um efeito mais notório. Claro que havia hip hop noutras cidades, mas foi ali que começou e era ali, naquela altura, que as coisas mais interessantes e inovadoras iam acontecendo. Havia uma competição especial entre os diferentes bairros de Nova Iorque e isso também servia de combustível para o que acontecia. Não sou um historiador especializado na área, longe disso, mas daquilo que vivi tenho a certeza que o hip hop era um fenómeno apenas em Nova Iorque. E o que os A Tribe Called Quest fizeram só podia ter acontecido ali. Claro, eles eram de Queens, muitos poderão dizer. Mas não era só isso, tinha a ver com a vontade criativa e com a forma como trabalhavam, que não se encontrava em mais lado nenhum.
E com o valor individual de cada um, certamente.
Nem vale a pena ir por aí. As personalidades do Q-Tip e do Phife eram as mais fortes, eram eles que carregavam a atitude do grupo e isso é fácil de perceber, basta ouvir a música, o rap de cada um deles é o espelho das pessoas que são, naturalmente. O Ali, por exemplo, era um tipo mais reservado. A não ser que o conheçamos bem ou que ele tenha algo para dizer, vai ficar sempre num plano mais secundário, é a cena dele. Ainda assim, e apesar de o Q-Tip se destacar já naquela altura, nunca diria que ele havia de seguir uma carreira a solo.
Tem um álbum favorito?
Gosto de todos os discos que fiz com eles, especialmente dos três primeiros, mas também porque trabalhei muito nessas sessões de gravação. O primeiro é especial exactamente por isso, porque é o primeiro, porque é raro aparecer uma estreia com aquela qualidade, porque tem um conjunto de canções incrível. Mas depois há o “Low End Theory”, que é uma espécie de Sgt. Pepper’s do hip hop, com diferentes elementos juntos numa combinação perfeita, cruzamentos que nunca ninguém pensou ouvir.
Para esta reedição qual foi a sua maior preocupação?
Talvez tenha sido manter o espírito original das gravações. Podia ter feito a remasterização de modo que tudo soasse relativamente mais contemporâneo, mas isso não faria sentido. Até porque o que é especial neste álbum é o som, é isso que faz a diferença, ainda hoje. O melhor de tudo é que fiz este trabalho de remasterização e voltei a ficar agarrado a estes temas, como aconteceu há 25 anos, tudo outra vez, e isso não é habitual.