As ruas limpas de Fallujah


Parece haver infelizmente emprego garantido na área da segurança e defesa para as próximas décadas. Como poderia ser de outra maneira, perante o sangue espalhado nas nossas ruas? 


França, no rescaldo dos novos atentados, declara-se em guerra, vive em estado de emergência e prepara, segundo Hollande, uma revisão constitucional e um (novo) pacote legislativo de autodefesa contra o terror do extremismo islâmico.

O autodenominado Estado Islâmico, como antes a Al-Qaeda, têm dramaticamente vencido a Europa e o Ocidente, passo a passo, na redução de direitos e liberdades que pareciam inatacáveis há poucos anos e na mudança de quotidianos e prioridades. O papa fala mesmo de novos episódios numa terceira guerra mundial. E pode ser que no futuro se veja de facto este nosso tempo como um tempo de guerra em permanência, aquele tipo de guerra longa do passado que nenhum homem hoje vivo experimentou, em que as populações podiam estar anos sem a sentir por perto, mas que as cronologias históricas baptizaram como tempo de guerra, de guerras de décadas, de séculos de reconquista.

Até lá, seguramente não daqui por muitos anos, estaremos a colocar chips de localização em suspeitos considerados administrativamente perigosos a troco de uma nacionalidade ou de uma autorização de residência ou de entrada no território europeu. E este trade off será aceite a bem da segurança e da ordem pública. Ou estaremos a enclausurar física e tecnologicamente, para a vida, comunidades inteiras, a bem até da sua própria segurança e reputação. E estaremos a transformar a internet e as redes sociais mais ainda numa grande redoma de vigilância total, um novo panóptico em que, como o velho, a certeza da vigilância anula a vontade do mal, queimando tudo à sua volta. E não deixaremos de usar o poder máximo do Estado, o poder de punir e usar a força para criminalizar intenções, dúvidas, críticas, discórdias. Afinal aquilo que sempre caracterizou a fragilidade de qualquer poder.

Parece haver infelizmente emprego garantido na área da segurança e defesa para as próximas décadas. Como poderia ser de outra maneira, perante o sangue espalhado nas nossas ruas? 
Porque nas ruas dos outros, em cidades como Raqqa ou Mossul, para alguns são apenas os velhos ditadores e os velhos regimes a ser substituídos por outros novos. A confiar em relatos que chegam ao Ocidente, o novo Estado até por vezes é mais “estado” que o antigo: as ruas agora andam mais limpas, diz-se em Fallujah. 
Este Estado Islâmico, um califado em progresso instalado no Iraque e na Síria e nascido também das ruínas do cruzamento de muitos interesses ocidentais, financia-se pelo saque, por donativos e por taxas impostas aos habitantes dos territórios ocupados, mas também porque vende a alguém muito petróleo e gás no mercado negro. Quem doa? Quem compra? As respostas são difíceis, a todos os níveis. Mas nelas também reside o único antídoto capaz de nos libertar do nosso próprio medo e da nossa deserção perante o que construímos.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira 

As ruas limpas de Fallujah


Parece haver infelizmente emprego garantido na área da segurança e defesa para as próximas décadas. Como poderia ser de outra maneira, perante o sangue espalhado nas nossas ruas? 


França, no rescaldo dos novos atentados, declara-se em guerra, vive em estado de emergência e prepara, segundo Hollande, uma revisão constitucional e um (novo) pacote legislativo de autodefesa contra o terror do extremismo islâmico.

O autodenominado Estado Islâmico, como antes a Al-Qaeda, têm dramaticamente vencido a Europa e o Ocidente, passo a passo, na redução de direitos e liberdades que pareciam inatacáveis há poucos anos e na mudança de quotidianos e prioridades. O papa fala mesmo de novos episódios numa terceira guerra mundial. E pode ser que no futuro se veja de facto este nosso tempo como um tempo de guerra em permanência, aquele tipo de guerra longa do passado que nenhum homem hoje vivo experimentou, em que as populações podiam estar anos sem a sentir por perto, mas que as cronologias históricas baptizaram como tempo de guerra, de guerras de décadas, de séculos de reconquista.

Até lá, seguramente não daqui por muitos anos, estaremos a colocar chips de localização em suspeitos considerados administrativamente perigosos a troco de uma nacionalidade ou de uma autorização de residência ou de entrada no território europeu. E este trade off será aceite a bem da segurança e da ordem pública. Ou estaremos a enclausurar física e tecnologicamente, para a vida, comunidades inteiras, a bem até da sua própria segurança e reputação. E estaremos a transformar a internet e as redes sociais mais ainda numa grande redoma de vigilância total, um novo panóptico em que, como o velho, a certeza da vigilância anula a vontade do mal, queimando tudo à sua volta. E não deixaremos de usar o poder máximo do Estado, o poder de punir e usar a força para criminalizar intenções, dúvidas, críticas, discórdias. Afinal aquilo que sempre caracterizou a fragilidade de qualquer poder.

Parece haver infelizmente emprego garantido na área da segurança e defesa para as próximas décadas. Como poderia ser de outra maneira, perante o sangue espalhado nas nossas ruas? 
Porque nas ruas dos outros, em cidades como Raqqa ou Mossul, para alguns são apenas os velhos ditadores e os velhos regimes a ser substituídos por outros novos. A confiar em relatos que chegam ao Ocidente, o novo Estado até por vezes é mais “estado” que o antigo: as ruas agora andam mais limpas, diz-se em Fallujah. 
Este Estado Islâmico, um califado em progresso instalado no Iraque e na Síria e nascido também das ruínas do cruzamento de muitos interesses ocidentais, financia-se pelo saque, por donativos e por taxas impostas aos habitantes dos territórios ocupados, mas também porque vende a alguém muito petróleo e gás no mercado negro. Quem doa? Quem compra? As respostas são difíceis, a todos os níveis. Mas nelas também reside o único antídoto capaz de nos libertar do nosso próprio medo e da nossa deserção perante o que construímos.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira